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Capitulo II As Categorias de Análise na Perspectiva Freiriana

4. Conscientização e seus Processos

É importante a sustentação de um movimento como o feminista. E não é a quantidade o que o define ou lhe dá seu conteúdo específico, mas principalmente as práticas sociais que origina os novos espaços de questionamento que abre e os processos de consciência que põe em marcha (JULIETA KIRKWOOD apud TORNARÍA, 1990, p. ?).

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Quando situada nos moldes da educação problematizadora.

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Os grifos são do autor.

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Esta é uma polêmica que merece uma ligeira explicação. Percebendo a confusão que o termo estava causando, Paulo Freire anunciou, no México, seu abandono do termo e do conceito de “conscientização”. No entanto, continuou o utilizando. Para comprovar basta compulsar sua obra publicada posteriormente a este anúncio de renúncia.

Composta na relação dialética entre a denúncia e o anúncio, em que se vivenciam situações-limites81 e se atua para as possibilidades do inédito-viável, a consciência crítica emerge como poderosa arma de transformação.

Bauer observa que a distinção entre os tipos de consciências – bojo onde se insere a consciência crítica – pode ser entendida:

(...) na relação que se estabelece na realidade histórico-cultural, como manifestação, por excelência, da chamada superestrutura, e as condições sociais, políticas e econômicas, como manifestações da infraestrutura. [A caracterização do estágio de consciência parte, portanto, da análise das] estruturas sociais como expressões infraestruturais (2008, p. 52).

Romão completa esta ideia ao dizer que para Freire, “o desenvolvimento da consciência critica não se dá apenas em decorrência de condições infraestruturais favoráveis (...). É necessário um processo pedagógico ‘adequado às circunstâncias’” (2002, p. 30).

Freire denomina, em Educação como prática da liberdade, o termo “consciência intransitiva”. Neste grau, a consciência de homens e mulheres não se compromete com a história, ou seja, seus interesses e suas percepções da realidade voltam-se aos interesses biológicos, vitais.

Contudo, Romão registra que Freire, desde seu primeiro livro82, afirma que não podemos admitir “a existência de um(a) homem (mulher) totalmente não comprometido(a) diante de sua ‘circunstância’” (FREIRE apud ROMÃO, 2002, p. 30). Romão, ao ressaltar esta ideia, considerando a mínima transitividade da consciência intransitiva, trata-a como “intransitividade relativa”. O autor parte, ao definir o termo, da própria teoria freiriana:

o ser humano nunca é absolutamente ‘intransitivo’, por mais alienado que seja, porque sua essência ontológica de ser histórico o torna aberto às

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Freire afirma que as situações limites “(...) se apresentam aos homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra alternativa, senão adaptar-se” (FREIRE, , P. 2003 P. 220). Este conceito é originário de Jaspers. Contudo, assim como o conceito de inédito viável, Freire extrai de Álvaro Vieira Pinto sua significância. Pinto analisou a ‘situação limite’ esvaziando-a do pessimismo encontrado em sua primeira definição.

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Educação e atualidade brasileira, 1959, reeditado pelo Instituto Paulo Freire e pela Editora Cortez.

relações e, portanto, ‘transitivo’ (...). Paulo não esquece que cada ser humano é dinâmico, dentro de sua circunstância (ROMÃO, id., p. 29).

Já Bauer (op. cit., p. 52) trata este primeiro grau de consciência como “consciência semi-intransitiva”, termo utilizado por Freire em outros escritos, como Pedagogia da indignação e Pedagogia da esperança. Diante desta polêmica, preferiu- se, nesta dissertação, a expressão adotada por Bauer (2008), “consciência semi- intransitiva”.

Na consciência semi-intransitiva, as preocupações e interesses são muito restritos; há uma alienação profunda resultante da cultura do silêncio. O horizonte é extremamente curto, limitado. Mulheres e homens ostentam um estado de imersão, uma postura mágica diante do mundo e dos fatos, pois não enxergam a real causalidade dos eventos.

Oliveira e Carvalho (2007) enfatizam que esta situação de consciência semi- intransitiva não destrói, em mulheres e homens, a abertura fundamental ao ser-mais, sempre potencializando a passagem para o estado de transitividade. Freire explica esta capacidade de o ser humano ser aberto, qualquer que seja seu o estado:

O que pretendemos significar com a consciência ‘intransitiva’ é a limitação de sua esfera de apreensão. É a sua impermeabilidade a desafios situados fora da órbita vegetativa. (...) Na medida, porém, em que amplia o seu poder de captação e de resposta às sugestões e às questões que partem de seu contorno e aumenta o seu poder de dialogação, não só com (outros seres), mas com o seu mundo, se ‘transitiva’ (FREIRE, 2008, p. 68).

A consciência semi-intransitiva, quando provocada, instigada à visão de mundo83, leva à permeabilidade, significando um “quase” compromisso com a existência. Assim, passa-se da consciência semi-intransitiva para a consciência transitiva.

Na consciência transitiva, há a ampliação de relações. Há, aí, mais diálogos, maiores relações entre o ser humano, seus semelhantes e o contexto em que vivem. O homem e a mulher permitem uma maior abertura para uma melhor inserção no mundo e

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Para Romão (2002, p. 83), visões de mundo são “conjuntos de sistemas simbólicos específicos de classes sociais e portadores de um projeto de sociedade, a ser mantido ou transformado”.

na realidade. Consequentemente, ao introduzir-se nas novas relações que descobre, começa-se a conhecer e a ter maior significação no mundo.

Nesta fase de “percebimentos” e descobertas, há dois caminhos a seguir: o da busca pela conscientização via consciência transitiva ingênua, ou o da alienação – ainda mais profunda que a intransitividade relativa –, com a consciência fanatizada.

Este primeiro estado da consciência transitiva – consciência transitiva ingênua – proporciona a ampliação do poder de observação e de trocas com o contexto, contudo, apesar de estarem mais abertos(as) aos estímulos, homens e mulheres carregam ainda um pouco daquela visão mágica, o que os(as) torna distantes de um diálogo profundo, de uma verdadeira interpretação dos problemas. Como consequência, suas afirmações e argumentos são desprovidos de senso crítico.

Não há uma investigação, um agir consciente, quando homens e mulheres estão predispostos à massificação. Oliveira e Carvalho explicam que a expressão “homem massa” – termo utilizado por Freire (2008, p. 69) – significa a condição de homens e mulheres “que têm o seu agir determinado por forças sociais. (...) não intervêm substancialmente na vida social (...) não criam a sua identidade, mas vivem a que é atribuída pelas forças determinantes da sociedade” (2007, p. 222).

Freire explica que é na massificação que o ser humano se faz “mais incomprometido” com a existência, sendo este incomprometimento ainda maior que na consciência semi-intransitiva: “A possibilidade de diálogo se suprime ou diminui intensamente”, o ser humano “fica vencido e dominado sem sabê-lo, ainda que se possa crer livre. (...) É um conduzido. (...) É objeto e não sujeito” (FREIRE, 2008, p. 71).

Quando a consciência transitiva-ingênua não consegue a superação da ingenuidade pela consciência crítica, há sempre a possibilidade da massificação. Ocorre aí o que Freire chama de transitividade fanatizada84, que é preponderantemente irracional, inexistindo a possibilidade de um diálogo real.

Neste caso, mulheres e homens restringem-se a explicações fabulosas. Interpretam os problemas pela visão que estão fadados, que assumem. Uma visão pronta, acabada, acomodada à estrutura.

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Segundo Romão (2002, p. 31), esta é uma “expressão que colheu no filósofo existencialista cristão, Gabriel Marcel. Certamente se escrevesse sobre este tema hoje, Paulo a trataria como “consciência fundamentalista”.

Para se compreender melhor os níveis de conscientização e os termos utilizados neste capítulo, ilustra-se, com base nas leituras de Freire (2000a, 2000b, 2003, 2008), em seu diagrama “Esquema da conscientização” (Freire apud Romão, 2002, p. 31) e no quadro “Tendência das consciências”, estruturado por Romão (2002, p. 32), o seguinte quadro:

Quadro I

Consciências e suas Inclinações

Fonte: FREIRE (2000a, 2000b, 2003, 2008) e ROMÃO (2002)

Percebe-se, nesta figura, o posicionamento de alguns termos utilizados neste capítulo. Estes termos não são imóveis, estáticos. Eles podem variar de acordo com sua relação com a realidade. Por exemplo, o “magicismo” pode fazer parte da consciência transitiva fanatizada, como da transitivo-ingênua ou consciência ingênua, dependendo do grau em que está envolvido.

Uma expressão utilizada por Freire e que deve ser destacada é a “oprimido(a) sem horizonte”, considerado(a) por ele como aquele(a) que desistiu da luta pela mudança, renunciou à resistência, acomodando-se na desesperança.

Consciência semi- intransitiva Consciência fanatizada Consciência transitivo ingênua Consciência crítica Tomada de consciência Determinismo Sectarismo Elitismo Razão positivista Conservadorismo Passividade Oprimido(a) sem horizonte Visão restrita Alienação profunda Impermeabilidade Massificação Simplismo Acomodação Ajustamento Magicismo Fabulismo Pronunciamento do mundo Curiosidade epistemológica Razão dialética Práxis Historicidade Politicidade

Conhecimento como luta Inquietação

Rebeldia Radicalidade Busca por ser-mais

Submetido[a] de tal maneira à asfixia da necessidade, que inviabiliza a aventura da liberdade e a luta por ela, e que tem, no discurso da acomodação, um instrumento eficaz de sua luta – a de obstacularizar a mudança (FREIRE, 2002, p. 41)85.

Não seria inadequado atribuir esta expressão às(aos) professoras(es) que, mesmo descontentes no e com mundo, não enxergam e não buscam outras possibilidades. Eclipsam a própria inteligência (consciência) pelas cartilhas e apostilas, pelas regras e palavras esvaziadas da leitura de mundo, inserindo-se em uma educação bancária. Neste “não engajar-se”, nesta falta de horizonte, impõem-se, de um lado, a realidade da opressão do sistema capitalista, e, de outro, a da acomodação, da desistência, do entregar-se à imobilidade, do fatalismo que considera o mundo naturalizado e, portanto, impossível de ser mudado.

Como ficou explícito no quadro I, a consciência semi-intransitiva pode rumar para a consciência transitivo-ingênua ou para a fanatizada. Já da consciência transitivo- ingênua pode-se chegar à consciência crítica.

Cabe ainda destacar duas reflexões relativamente aos dados do quadro I. Primeiramente, a que diz respeito à possibilidade de a consciência transitivo-ingênua tornar-se uma consciência fanatizada. O próprio Freire conclui que a distorção da consciência transitivo-ingênua, se não levada à consciência crítica, pode fluir para a transitividade fanatizada (FREIRE, 2008). Em segundo lugar, cabe salientar a necessidade da consideração sobre a diferença entre tomada de consciência e conscientização. A tomada de consciência é insuficiente para a passagem da consciência transitivo-ingênua para a consciência crítica. Aí, a conscientização é imprescindível, pois a tomada de consciência é apenas uma constatação da realidade do mundo, enquanto a conscientização implica a tomada de consciência transformada em instrumento de uma intervenção mais qualificada no mundo, portanto, a tomada de consciência carregada do espírito crítico que exige a transformação do mundo. Este para evoluir à consciência crítica deve ser operado em meio ao agir, no diálogo com outras(os), nunca de forma individualista ou de caráter intelectualista, mas, sim, travando, no e com o mundo, relações de transformação (FREIRE, 2003). Nestas relações, o ser humano supera o conhecimento, antes apenas sensível, de visão parcial, e

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se descobre em uma totalidade, na e com a realidade, onde ocorre a ação transformadora. Ou seja, se se desvela coletivamente a realidade, ultrapassando a mera percepção presencial dos fenômenos e se se identifica um sistema, no qual se encontram os nexos profundos de uma totalidade de relações, chega-se à transitividade crítica (id.)

Na transitividade crítica, às vezes tratada apenas como consciência crítica, chega-se ao pronunciamento do mundo. E “pronunciar o mundo” é mais do que “ler o mundo”: é identificá-lo como mutável, mudando-o; é demonstrá-lo histórico, transformando-o. A consciência crítica não existe sem a práxis transformadora da realidade.

Miguel Escobar, em uma conferência de 200986, explicou que a passagem da transitividade ingênua para a consciência crítica supõe a transformação de uma estrutura mental “rígida, inflexível e dogmática” em uma estrutura “dinâmica, ágil e dialética”, possibilitadora de uma “ação transformadora da realidade e dela mesma”.

Para a verdadeira passagem da consciência transitivo-ingênua para a consciência crítica, Freire (2008, p. 97) afirma a necessidade de uma educação problematizadora, ativa e dialogal, que possibilite às mulheres e aos homens a responsabilidade em seu agir pessoal, social e político. Em nenhum momento, Paulo Freire esconde a necessidade da rebeldia:

(...) para que, consciente deles, ganhasse[m] a força e a coragem de lutar, (...) Educação que o[a] colocasse em diálogo constante com o[a] outro[a]. que o[a] predispusesse a constantes revisões. A análise crítica de seus ‘achados’. A uma certa rebeldia (...) (id., ib.).

A rebeldia intrínseca à consciência crítica parte da inquietação, do ouvir, do perguntar, do investigar. Como diz Fiori (2003, p. 9), “a pedagogia dominante, é a pedagogia das classes dominantes”. Contudo esta realidade, que está em constante processo de transformação, não pode ser vista como determinada, mas como algo que está sendo, convocando à interação, à apresentação e a elaboração, à mudança.

Para as elites dominadoras, a rebeldia da(o) oprimida(o) é ameaça e, por isso, sujeita à criminalização e à dominação pela força, feita em nome de uma “certa” liberdade, da ordem e da “paz social que, no fundo, não é outra senão a paz privada

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dos[as] dominadores[as]” (FIORI, 2003, p. 66). No entanto, as ações rebeldes que oprimidas(os) assumem, na busca pela liberdade, são vistas por Freire como o momento da luta política, portanto, jamais criminalizada, porque pertencente à ordem político- ideológica.

Muitas vezes, dizia ainda Paulo Freire, estas ações podem implicar “numa tomada de consciência apenas e, não, ainda numa conscientização – desenvolvimento da tomada de consciência” (id.,ib., p. 63). Ou seja, a rebeldia está presente na tomada de consciência como indagação, como problematização, no acordar para o ser crítico. A rebeldia desperta na tomada de consciência e é intrínseca à consciência crítica; é necessária como oposição ao discurso domesticador, como transgressão à realidade injusta, compreendendo a história como possibilidade, jamais estática e determinada, sendo sinônimo de resistência e de luta.