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Mulheres, Organizações de Esquerda e a Educação Física

Capítulo III Mulheres de Atenas

3. Mulheres, Organizações de Esquerda e a Educação Física

No início da década de 1960, a ação dos(as) estudantes pela reforma universitária desencadeia a luta ferrenha do movimento estudantil no campo político dos dois maiores centros urbanos do país e em muitas outras capitais.

Com o golpe militar de 1964, os movimentos de massa são silenciados pela repressão policial-militar, ficando o período de 1968 a 1973 conhecido como “os anos de chumbo”, quando a censura proibia toda e qualquer tipo de exibição em território nacional de filmes, músicas, notícias e reportagens de rádio, televisão e jornal que remetessem aos tumultos envolvendo estudantes e as denúncias de opressão.

Ao transgredir o espaço destinado às mulheres, pode-se dizer que a participação delas na luta armada, nas organizações de militância política, remete à constituição da mulher enquanto sujeito político, adentrando em um espaço destinado ao homem, ao espaço público, de lideranças.

No entanto, mesmo infringindo os códigos morais da época, não se pode afirmar que debates de caráter feminista surgiram nos grupos revolucionários (FERREIRA,1996 e COLLING,1997 apud NASCIMENTO et. al., 2004), apesar de ser colocado em evidência o processo de libertação da mulher proporcionado pela contestação à ordem estabelecida:

é que junto com o projeto de derrubar o regime também estava o de revolucionar os costumes, os valores e as relações sociais e afetivas, que deveriam ser mais igualitárias (...) A participação feminina nas organizações de militância política pode ser tomada como um indicador das rupturas iniciais que estavam ocorrendo nos papéis tradicionais de gênero (RIDENTI,1990, apud NASCIMENTO et. al., 2004, p. 24).

“Putas e comunistas” (COLLING, 1997, p. 91): Assim eram vistas, tratadas e nomeadas as mulheres que participavam da militância política107, não apenas por

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Colling (2009) afirma que as mulheres, assim interpretadas pela elite dominante não raramente eram vistas dentro dos próprios partidos de esquerda como “putas camaradas”. Como se daria, para essas mulheres, os postos de comando? E as atividades que exigiam a força e a coragem do homem? Por isso, em muitos filmes, como em “O que é isso companheiro” (1997) e “Zuzu Angel” (2006) e em fotos da época, temos as mulheres masculinizadas e estereotipadas.

participarem de um movimento revolucionário, por serem atuantes em uma política de esquerda – desviante para homens e mulheres – mas, principalmente, por desafiarem a oposição entre o público e o privado, por saírem de casa e ir às ruas, sendo o público ainda considerado lugar das mulheres “promíscuas”.

Nessa mesma época, inaugurava-se no país o debate acadêmico sobre os benefícios da Educação Física, que antes girava em torno da purificação da raça e da higienização. Obviamente, devido ao período político apresentado, a Educação Física então passava a ser discutida em nome do desenvolvimento, da “modernização” – mote da ditadura militar – e, enfim, do controle social. Assim, professores(as) e cientistas assumem esse caráter de absoluto moralismo, em que o esporte representava “um mundo de competição, concorrência, liberdade, vitória, consagração. Sugerido de forma exclusiva pelos órgãos oficiais para a educação física escolar, ele carregava toda a simbologia de um mundo de lutadores e vencedores” (OLIVEIRA, 2004, p. 13).

Aprovada a obrigatoriedade da Educação Física no ano de 1961108 para o ensino primário e para o médio, em nenhum momento se cogitava estendê-la ao ensino superior. Até que, em julho de 1969, a obrigatoriedade109 é estendida a todos os tipos e níveis de escolarização. Atento às entrelinhas da legislação escolar brasileira, em principal as relativas à Educação Física escolar, Castellani sublinha que coube a este componente curricular “colaborar, através de seu caráter lúdico-esportivo, com o esvaziamento de qualquer tentativa de rearticulação política do movimento estudantil” (1994, p. 121).

A pedagogia tecnicista era hegemônica nas aulas de Educação Física na década de 1970. Respaldada pelos mesmos princípios do método anterior – racionalidade, eficiência e produtividade – e com conteúdo esportivista fortalecido, agora ela se vê pautada por uma neutralidade científica, o que reforça seus princípios, tornando as aulas até mesmo mais objetivas e racionais (COLETIVO DE AUTORES, 1992). É neste mesmo caminho que a Legislação Federal, por intermédio do Decreto 69.450 de 1971, legitima as turmas separadas por sexo e, preferencialmente, por nível de aptidão. Esta lei vai contribuir ainda mais para uma Educação Física voltada essencialmente à seleção de atletas e de meninos jovens, que servissem como força militar de reserva (SOUZA, 1994).

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Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 4.024/61, artigo 22).

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Pinto et. al. (2007), ao retratar as representações na RHQ Dedinho110, afirma que naquele período as mulheres sempre aparecem em menor número nas histórias, sendo que nunca nas competições finais, e que as meninas eram repreendidas com práticas machistas. Nem mesmo com protestos, os insultos não desaparecem das histórias. Um dos personagens, Poeta, o galanteador da turma, chega a dizer: “mulher só complica” (PINTO, 2007, p. 07).

É ressaltado frequentemente, pelas regras esportivas e alguns personagens masculinos nessa cartilha, que a mulher deve participar de apenas alguns esportes, sendo “que as competições masculinas deveriam ser praticadas em separadamente das femininas” (id.). O autor ainda afirma:

Quando não estão participando das discussões e aventuras da turma, somente elas [as meninas] aparecem cuidando dos afazeres domésticos ou brincando de boneca, enquanto que os meninos são apresentados lendo ou construindo brinquedos (id.).

A lei vigente, que restringia a participação de mulheres nas práticas esportivas111, retratada no RHQ Dadinho, também é vista na escrita de Stella Guérios, em seu livro Educação Física feminina:

Não podemos, também, negar à mulher o direito de tomar parte nas manifestações de vitalidade, praticando, no momento oportuno, os jogos e desportos então, aconselháveis e com regras especiais adaptadas à sua constituição(GUÉRIOS, 1974, p. 9).

Guérios, já em uma década de ascensão do feminismo, ainda vincula às mulheres a responsabilidade pela produção de uma raça bela e forte:

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Esta Revista em Quadrinhos fazia parte da Campanha Nacional de Esclarecimento Desportivo (CNED), que tinha por objetivo “conscientizar o país para a importância da prática de atividade física integrada à educação, ou seja, criar e desenvolver uma mentalidade favorável à Educação Física que poderíamos denominar – mentalidade desportiva” (MEC, 1971, apud PINTO et al., 2007, p. 03). “Nessa Campanha foram investidos cerca de 4 bilhões de Cruzeiros, reajustados até o ano de 1985. Os recursos foram aplicados para editar 11.600.000 peças gráficas (cadernos técnicos e didáticos, revistas em quadrinhos, desportes, revistas cientificas, folders etc.), além da produção de filmes técnicos, filmetes de divulgação em TV, exposições, frases veiculadas em rádios e televisão e palestras. No Brasil, não há conhecimento de investimento em uma política de tal envergadura para a Educação Física e no esporte antes desta” (idem).

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Volta-se a mencionar aqui a Deliberação número 7, de 1965, que restringia a participação de mulheres em diversos esportes já citados.

Não há, portanto, como deixar de concluir que, cultivando o valor biopsicofísico, social e espiritual da mulher, toda raça será melhorada porquanto ainda é a mulher forte que faz uma raça forte e são as mulheres belas as responsáveis pela beleza de uma raça forte (id., ib., p. 10).

Mesmo que este fosse o pensamento hegemônico inculcado na sociedade daquela época, a multiplicação de denúncias das minorias112 sexuais e étnicas começa a ganhar força e visibilidade ao apontar as formas de opressão social, sua insatisfação e o inconformismo com uma realidade tomada pela repressão das falsas democracias, nitidamente autoritárias.

Entre esses grupos surge a “segunda onda do movimento feminista”, que tornou a questionar não apenas a opressão machista, os modelos de comportamento da sociedade de consumo e os códigos da sexualidade feminina (RAGO, 2003), mas, principalmente – nesta fase onde as mulheres inseriam-se fortemente no mercado de trabalho –, relacionar essas questões com o conceito político, enquanto elemento da esfera pública, levando-o a confundir-se com a esfera privada. Questionavam, portanto, o modelo formal de poder e política e o modo de exercê-los (COSTA, 2005).

Na emergência do “feminismo organizado”, embalado por intelectuais das camadas médias, o país vivia um intenso paradoxo. Se, de um lado, a ditadura militar acabava com os espaços de interação social, de outro, brotavam novas formas de produção cultural vinculadas aos mais variados pensamentos políticos, indo das(os) que eram “a resistência” até àquelas(es) que apoiavam a ditadura. Um exemplo disso são os espaços destinados à prática corporal desportiva e cultural. Em um extremo, tinham-se os(as) adeptos(as) do culto ao corpo; na outra ponta, surgiam os(as) que praticavam formas “alternativas” de ser e “inspirados[as] pelos orientalismos, recorriam à ioga, aos relaxamentos terapêuticos, à alimentação macrobiótica e naturalista” (RAGO, 2003, s/p.).

Colling (1997) afirma que, no início deste movimento, a sexualidade ainda era considerada um tabu reforçado pela Igreja e pelas parcelas conservadoras da sociedade

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A expressão minoria não é referente a uma quantidade numérica, mas, sim, a uma atribuição valorativa que é imputada a um determinado grupo a partir da ótica dominante.

brasileira. No entanto, a pílula anticoncepcional113 abre espaço para a revolução no campo da sexualidade, acompanhada de revisões sobre os bons modos de comportamento.

De acordo com Rago, as questões relativas ao corpo, à sexualidade, ao desejo e à saúde da mulher, que anteriormente eram postas como secundárias, são incorporadas à esfera pública pelo movimento feminista, nos anos de 1980. A autora cita Maria Rita Kehl que, com um olhar crítico aos padrões de beleza veiculados pela mídia, questionava “a aceitação/negação machista do corpo feminino, aceito apenas enquanto expressão de um determinado padrão estético” (2003, s/p.):

Se os homens afirmam que vêm na mulher antes de mais nada belos contornos, considero isso como um empobrecimento de sua capacidade de olhar e ver. Estou convencida de que nosso olhar sabe encontrar no homem sinais do que ele é, além dos contornos de sua musculatura (KHEL, 1982, p.14-15 apud RAGO, 2003, s/p.).

Ao citar novamente Khel (1982), Rago expõe o modo como essa feminista critica “as bonecas de luxo de antigamente”, época em que a necessidade de consumir muito mais era ditada por um ideal de beleza feminino – “ágil, limpo, magro, cheiroso e rígido” – aos olhos do “mundo masculino”. Nisso, Khel sugere de forma radical “a subversão de nossos conceitos estéticos”:

A maior beleza é a do corpo livre, desinibido em seu jeito próprio de ser, gracioso porque todo ser vivo é gracioso quando não vive oprimido e com medo. E’ a livre expressão de nossos humores, desejos e odores; é o fim da culpa e do medo que sentimos pela nossa sensualidade natural; é a conquista do direito e da coragem a uma vida afetiva mais satisfatória; é a liberdade, a ternura e a autoconfiança que nos tornarão belas. É essa a beleza fundamental (id.).

Ao mencionar o caráter cultural do feminismo dos anos 1970 e 1980, há de se destacar que grande parte das teóricas feministas radicais provinha da esquerda marxista. No entanto, sendo discriminadas, em grande parte, dentro do próprio

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movimento de esquerda, algumas destas mulheres travaram um enfrentamento veemente com o próprio Marxismo.

É deste modo que surgem, nessa época, elaborações que ressoam com um significado distante do Materialismo Dialético: “as mulheres como classe social, as elaborações sobre exploração econômica do trabalho doméstico ou as da reprodução como exploração de uma classe sobre a outra” (D´ATRI; ASSUNÇÃO, 2009, p. 21).

Se na primeira onda do movimento feminista, as feministas da classe operária se dirigiram contra o movimento revolucionário burguês, questionando seus parâmetros de cidadania e direitos humanos, na segunda onda, a discussão tenta adentrar também, o interior do marxismo, abordando questões como a “relação entre opressão e exploração, a reprodução dos valores patriarcais no interior das organizações de esquerda e o fracasso dos denominados 'socialismos reais'”(id., ib.).

Contudo, o feminismo radical acaba por perder-se no momento em que a tarefa política fundamental passava a ser “mudar a si”, no intuito de conseguir a mudança da sociedade. A consigna do feminismo na década de 1970 que enfatizava “o pessoal é político” acaba por adquirir o formato de que “o político é o pessoal”. Em suma, a revolução cultural era a “ordem do dia” e somente desta forma poderia se afirmar que o mundo mudaria. O fato é que para as mulheres marxistas esta reação tinha motivo:

enquanto grande parte dos intelectuais de esquerda fechava os olhos às barbaridades cometidas em nome do socialismo, evitou-se combater – entre outras coisas – a opressão contra as mulheres operárias ou a situação das mulheres que se encontravam dentro do bloco dos países da União Soviética. (…) o aborto voltou a ser proibido, a prostituição e a homossexualidade foram criminalizadas (…) o casamento civil havia tornado a se instituir obrigatoriamente para legalizar as uniões diante do Estado (D´ATRI; ASSUNÇÃO, op. cit., p. 22).

Em se tratando do regime da burocracia stalinista, a opressão das mulheres vai muito além do retratado. Contudo, aprofundar este assunto foge aos limites deste trabalho. O que se quer enfatizar é o fato de o feminismo radical na segunda onda, ter alavancado sua luta, distanciando-se equivocadamente do marxismo revolucionário.

Voltando os olhares à Educação Física, foi a partir da década de 1980 que se iniciou uma profunda crise de identidade – já mencionada neste estudo – onde inúmeras

teorias questionavam o cunho “esportivista” da área, até então visto como promotor do esporte de rendimento114.

Ao se atentar para os estudos de gênero na Educação Física, percebe-se, somente no final da década de 1980, a partir dos estudos bio-fisiológicos, trabalhos estabelecendo “diferenças e semelhanças nas capacidades físicas e nos movimentos do homem e da mulher” (LUZ JÚNIOR, 2000).

Já nos anos 1990, pesquisas da área, motivadas pelo ativismo feminista, passam a denunciar as formas de opressão da mulher.

Se anteriormente se apontou que no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 a Legislação Federal restringia mulheres da participação em algumas modalidades esportivas e dizia que a prática da Educação Física deveria ser em turmas separadas por sexo, o que se vê, na atualidade, em termos de documentos oficiais, são os Parâmetros Curriculares Nacionais enfatizando a convivência entre meninas e meninos nas aulas de Educação Física escolar:

A proposição por parte do professor, de momentos de convivência e de trabalho com alunos de ambos os sexos, pode ajudar a diminuir a hostilidade entre eles, além de propiciar observação, descobertas e tolerância às diferenças. Essa convivência, mesmo quando vivida de forma conflituosa, é também facilitadora dessas relações, pois oferece oportunidades concretas para o questionamento dos estereótipos associados ao gênero (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2000, p. 146).

Obviamente não se pode partir destes documentos para afirmar de forma pontual que há a problematização de gênero, muito menos da opressão das mulheres no espaço da Educação Física escolar. No entanto, entende-se que embora se tenha trilhado um longo e tortuoso caminho ao dar visibilidade à relação de opressão das mulheres, pode- se observar, tanto nas turmas em que as aulas são separadas por sexos, quanto nas turmas onde a aula se dá de forma conjunta, uma multiplicidade de relações opressoras,

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Em 1979, o Conselho Nacional de Desportos revogou a deliberação n.º 7/65 que restringia a prática das mulheres em diversos esportes – e os estudos científicos desmentem a ideia de que as mulheres estão mais propensas às lesões esportivas. Ainda assim, pode-se perceber, pelos programas esportivos na televisão, “que eles continuam, de maneira geral, estreitamente ligados à imagem masculina: destacam-se a beleza das atletas, suas qualidades femininas, sempre frisando que são atletas, mas continuam mulheres” (ALTMANN, 1999, p. 58).

refletindo o pensamento hegemônico e, também, de rebeldias denunciantes dessas relações, o que cimenta a ideia de que as mulheres constituem um grupo policlassista.

Porém, o que deve ser frisado é que as meninas “não são vítimas de uma exclusão masculina. Vitimá-las significaria coisificá-las, ‘aprisioná-las pelo poder’, desconsiderando suas possibilidades de resistência e também de exercício de dominação” (ALTMANN, 1999, p. 59).

A lógica do capital vai de encontro ao processo de emancipação da mulher, visto que é necessidade deste sistema de dominação a preservação do trabalho feminino pelos mecanismos estruturais que geram a subordinação da mulher.

Diante de um momento histórico em que o sistema do capital se encontra em crise estrutural115, dar visibilidade às injustiças cometidas contra as meninas na Educação Física e ao modo de subverter tal ordem é revelar as amarras de seu sóciometabolismo, para o qual a opressão e a exploração da mulher se fazem fundamentais. Assim, atravessar a teoria freiriana e o feminismo radical à Educação Física sugere a tensão das relações que se estabelecem neste espaço no propósito de trazer à baila as formas sutis camufladas, incorporadas na rotina da Educação Física na escola as quais serão analisadas no capítulo a seguir.

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