• Nenhum resultado encontrado

Pronunciamento do Mundo, Ser-Mais e Dialogicidade

Capitulo II As Categorias de Análise na Perspectiva Freiriana

1. Pronunciamento do Mundo, Ser-Mais e Dialogicidade

Freire define “existir humanamente” como “pronunciar”. Para ele, a existência é sinônimo de comprometimento com a circunstância, ou, como diz Romão (2002, p. 30), “Paulo avisara que não há como admitir ‘a existência de um homem totalmente não comprometido diante de sua circunstância’”67.

Um diálogo que não se esgota na relação eu-tu; é antes interação, intersubjetividade. Portanto, sendo relação de interação, o eu e o mundo significante de cada eu carregam diferentes visões, resultantes de suas trajetórias sociais, políticas e culturais.

Marx (1987) explica que “O primeiro pressuposto de toda a história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fator a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o

66

Marxista polonesa, nascida em 1871, foi uma das mais importantes revolucionárias do século XX. Para Rosa "a massa não é objeto da ação revolucionária; é, sobretudo, sujeito". No conhecido O Folheto Junius, publicado em 1915, Rosa falava sobre a guerra: "A demência não terá fim, o sangrento pesadelo do inferno não vai parar até que os operários da Alemanha, da França, da Rússia e da Inglaterra despertem de sua embriaguez, se apertem fraternalmente as mãos e afoguem o coro brutal dos agitadores belicistas e o grito das hienas capitalistas no poderoso grito do trabalho - 'Proletários de todo o mundo, uni-vos!´".

67

Romão (2002, p. 9) cita Paulo Freire na “Contextualização” que faz de Educação e atualidade brasileira.

resto da natureza.”(MARX & ENGELS, 1987, p. 27). De uma perspectiva marxista é destituída a ideia de que o sujeito pensa o mundo de forma isolada. Assim é de fundamental importância, para o próprio pensar, a dimensão do “estar no mundo”. Logo, o diálogo não conduz à síntese das ideias de duas pessoas, nem de um grupo; nem sempre gera um consenso, mas tece uma trama de significados, opiniões e concepções, formados na ação e na reflexão, exigindo, então, um novo pronunciar. Aqui, mais do que a ideia de sujeito coletivo, implicaria considerar a existência de um “sujeito transindividual”, de acordo com a concepção de Lucien Goldmann, desenvolvida em várias de suas obras68.

Assim, o diálogo não é depósito de ideias impostas, doação de pensamentos, pura troca de informações, ou ideias a serem consumidas. O diálogo de mulheres e homens que pronunciam e recriam o mundo deve ser humilde, de forma horizontal, pois “o diálogo é o encontro dos [as] homens [mulheres] para Ser Mais” (FREIRE, 2003, p. 82).

Na teoria freiriana o ser-mais é vocação ontológica e histórica de homens e mulheres69. É a contínua busca, como seres inconclusos e inacabados, por sua humanização. Para o autor, “o sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na História” (FREIRE, 2000a, p. 54).

Romão afirma que a insatisfação com a inconclusão, a incompletude e o inacabamento atua de forma dialética70, como “mola propulsora” para a construção da utopia e da esperança, na busca do ser-mais:

(...) é essa consciência da incompletude que nos lança na aventura da eterna busca da completude, da plenitude, da conclusão, tornando-nos seres ontologicamente esperançosos, utópicos e, por isso mesmo, pedagógicos! (...) Nossa “curiosidade inata” é um dos sinais dessa insatisfação permanente,

68

Para Goldmann, o sujeito transindividual não é a mera soma dos sujeitos individuais, interagindo e “interpensando” (dialogando); mas um novo sujeito, qualitativamente superior. Para melhor distingui-lo de um sujeito meramente coletivo, Goldmann dá a imagem de várias pessoas tentando levantar um móvel pesado, aplicando, sem sucesso, a soma de suas forças em um mesmo ponto do objeto a ser levantado. Para levantá-lo, efetivamente, precisam somar suas forças e aplicá-las em pontos diferentes do móvel. Somente neste último caso, ter-se-ia o sujeito transindividual (v. GOLDMANN, 1970, 1972a e 1972b).

69

Idem.

70

Oliveira, Almeida e Arnoni (2007, p. 91) dizem que “na lógica dialética, o todo e as partes não são fixos, estão em movimento, eles se modificam de acordo com as relações que estabelecem entre si”.

gerada na consciência de nossa não-conclusão, e impulsionadora de nossa busca de plenificação (ROMÃO, 2002, p. 44).

Esta busca deve-se – como diz Romão – à insatisfação com a incompletude, sendo esta tensão humana impulsionada pela esperança, ou seja, é esta esperança existente na busca por ser-mais que caracteriza a capacidade de aprender, e é nesta passagem do ser para o ser-mais, que se pronuncia o mundo e se encontra a educação. De fato, quem é e quer ser mais, acreditando que pode ser mais do que é, concebe um processo de transformação de si mesmo, do que é para o que não é, portanto, por meio de um movimento educacional e pedagógico. A transformação de si mesmo(a), ainda que por um processo próprio, ainda que por um movimento de motor próprio, é um movimento pedagógico-educacional, uma vez que a pessoa pensa nos princípios, nos conteúdos, nos procedimentos necessários para a autotransformação, mobilizando-os. O que é isso, seja por um processo heteronômico, seja por um processo autonômico, senão uma reflexão pedagógica e uma ação educacional?

Ao considerar o termo “diálogo”, Bauer observa que ele não é uma simples técnica instrumental, “ou diretriz acadêmico-pedagogizante, que venha a constar no universo educacional; é mais do que a adoção de uma metodologia, por mais importante e significativa que essa possa ser: é uma atitude diante do mundo e da vida” (BAUER, 2008, p. 32). Para este autor, o diálogo surge:

como uma crítica ao exercício de relações hierárquicas, desumanizadas e monologais, presentes nas perspectivas educacionais dos que se esforçam para não permitir uma inserção crítica e participativa dos educandos nas transformações da realidade, na luta contra a instauração de relações sociais baseadas na exploração do trabalho humano, desprovidas de solidariedade, nas quais a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante” (ib. id, p.33).

Deve-se frisar ainda que o diálogo, excluindo o conflito, a discussão, acaba por cair em um diálogo ingênuo, sem profundidade, afastando-se da evidência da sociedade classicista vivenciada. Outras vezes, a concepção de diálogo é utilizada pelo antagônico decorrente de um pensar não ingênuo, mas dotado de intencionalidade de tornar obscuro o seu sentido verdadeiro. Freire adverte:

Até que ponto o humanismo sustentado pela pedagogia tradicional, que valoriza excessivamente o diálogo, não é uma maneira de esconder a luta de classes, as disparidades sócio-econômicas, o antagonismo, os interesses escusos da classe dominante? A tradição humanista da nossa educação parece justificar tal hipótese (FREIRE, 1979, p. 6).

O que se pretende enfatizar é que há a necessidade do conflito para a construção do verdadeiro diálogo. Ou seja, é, dialeticamente, na relação entre classes que os(as) oprimidos(as) desenvolvem sua força enquanto coletivo. Destarte, Freire aponta que não se parte de um diálogo romântico entre oprimidos(as) e opressores(as), mas do “diálogo entre os[as] oprimidos[a]s para a superação de sua condição de oprimidos[as]. Esse diálogo supõe e se completa, ao mesmo tempo, na organização de classe, na luta comum contra o[a] opressor[a], portanto, no conflito” (FREIRE, 1979, p. 6).

Assim, o diálogo não é possível entre antagônicos; entre eles, somente os “acordos” – como menciona Freire na epígrafe inicial. O dialogo, somente é possível entre iguais e diferentes. Contudo, afirma, peremptoriamente, que a indignação é um componente intrínseco à construção do diálogo e substancial à educação dialógica em Freire.