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Capitulo II As Categorias de Análise na Perspectiva Freiriana

2. Educação Problematizadora

Para a melhor identificação das evidências da educação bancária na realidade educacional brasileira, a pesquisa de que resultou esta dissertação buscou seu objeto em uma instituição escolar concreta, para pô-las em confronto com as propostas da educação problematizadora da teoria freiriana.

Ao adentrar o ambiente escolar dominado por uma educação bancária, percebe- se, imediatamente, se se está familiarizado com a denúncia e o anúncio de Paulo Freire, as categorias (ou anti-categorias?) do pseudodiálogo71, do conhecimento como “doação” ou transferência dos que tudo sabem (docentes) às(aos) que nada sabem (estudantes). Nesta concepção, o(a) educador(a) exerce sempre um papel ativo – muitas vezes alienado –, enquanto o(a) educando(a) se limita a uma recepção passiva. Aí, não há preocupação com a vocação ontológica do ser, que quer sempre ser-mais; ao contrário,

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nessa educação opressora, o ser humano é entendido como “instalado em seu aparato”72, como “(...) autômato, que é a negação de sua ontológica vocação de ser mais” (FREIRE, 2003, p. 61).

Pode-se dizer que esta educação “dos depósitos” (id., p. 135) está ancorada na domesticação, no enquadramento, na dominação, por via do conhecimento pronto, “empacotado” e imposto. Quanto mais imersos(as) neste mundo de adequação, mantendo a ingenuidade de homens e mulheres alienadas, mais “educados(as)” estarão para uma formação social opressiva, pois a opressão é a essência desta concepção de educação.

A libertação, pautada pela autorreflexão e pela ação refletida, enfim, orientada pela práxis de mulheres e homens conscientes, requer uma educação problematizadora, na qual a consciência é “(...) intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens [e das mulheres] em suas relações com o mundo” (id., p. 67).

Assim, em oposição à educação bancária, Freire desenvolveu a concepção de “educação problematizadora”73, na qual o conhecimento é construído pelo próprio(a) educando(a), mediatizado pelo mundo. Freire não escreveu “mediatizado pelo currículo”, nem “pelo(a) professor(a)”, mas “mediatizado pelo mundo” (FREIRE, 2003, p. 59). E o que isto quer dizer? Se se lê o parágrafo cuja conclusão é esta expressão, compreende-se porque o autor afirma, peremptoriamente, que “ninguém educa ninguém”. Ou seja, somente quando homens e mulheres “se sintam sujeitos de seu pensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestada implícita ou explicitamente, nas suas sugestões e nas de seus companheiros” (id., ib., p. 120) é que ocorre o processo de educação problematizadora.

Na educação problematizadora, a situação gnosiológica tem como objeto cognoscível o mundo, ou seja, a realidade histórico-social, que é o mediatizador dos sujeitos cognoscentes, educador(a) e educandos(as). Esta educação só pode ser dialógica e o trabalho coletivo, dialogado, entre as diversas culturas que se confrontam no círculo,

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Expressão que era muito cara a Freire, para caracterizar os seres que não têm consciência do devir, nem têm esperança, ou seja, os seres vivos não-humanos.

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Talvez, a preferência de Freire pela expressão de “educação problematizadora”, em lugar de “educação libertadora” (que ele usou menos) resultasse dessa tendência incoercível de Freire para os processo autonômicos. A educação problematiza; mas é o(a) educando(a) que se liberta a si mesmo(a).

transformando a curiosidade ingênua em curiosidade crítica74, para, melhor se aproximando do objeto a ser conhecido, tornar-se, finalmente, curiosidade epistemológica. Portanto, para Paulo Freire, educar é instigar o(a) educando(a) – sujeito cognoscente, como seus(suas) educadores(as) – a intervir no mundo, apreendê-lo, comunicar o apreendido, nele também se reconhecendo, para pronunciá-lo, como construtor de sua prática cognoscitiva (FREIRE, 1992b, 2000a, 2003).

Nesse ato de conhecer, o diálogo pedagógico dá-se tanto por meio da razão de ser do objeto cognoscível, quanto por sua exposição, realizada pelo(a) educador(a). Desta forma, o objeto e a educação não podem ser desvinculados de suas implicações político-ideológicas resultando na não-neutralidade dos sujeitos envolvidos na “leitura do mundo”.

A existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos (...) implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra (FREIRE, 1992b, 2000a, 2003, p. 78).

Não neutra, a educação escolar é considerada como parte essencial para a busca pela consciência crítica75 do ser humano; por isso, a necessidade de o(a) educador(a) posicionar-se por meio de uma interpretação crítica e política sobre o objeto. Esta interpretação do objeto estudado descarta o raciocínio técnico, inerte e nulo do “não posicionamento”, ou seja, de apenas transmitir de forma “lisa”, “sem interferências” o conteúdo programático.

Bauer diz que a educação para Freire não é neutra “ou apenas perversamente reprodutivista”. Pelo contrário, a educação “(...) é capaz de submeter a uma visão crítica o saber e a vida social tal como são organizados na sociedade capitalista” (BAUER, 2008, p. 83). Encontra-se, aí, o papel da educação problematizadora: iluminar a realidade para estimular o desvelamento crítico da lógica de exploração e opressão, situando o sistema do capital e do patriarcado. Porém, Freire adverte que:

Numa sociedade dividida em classes antagônicas não há condições para uma pedagogia dialogal. O diálogo pode estabelecer-se talvez no interior da escola, da sala de aula, em pequenos grupos, mas nunca na sociedade global.

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Estes conceitos serão discutidos mais adiante, nesta dissertação.

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Dentro de uma visão macro-educacional, onde a ação pedagógica não se limita à escola, a organização da sociedade, é também tarefa do educador. E, para isso, o seu método, a sua estratégia é muito mais a desobediência, o conflito, a suspeita do que o diálogo. A transparência do diálogo é substituída pela suspeita crítica. O papel do educador de um novo tempo, do tempo do acirramento das contradições e do antagonismo de classe, o educador da passagem, do trânsito, é mais a organização do conflito, do confronto do que a ação dialógica (FREIRE, 1979, p. 6).

Como sublinha Freire, “Numa sociedade de classe toda a educação é classicista”. Isso implica afirmar que, nas distintas classes, concepções conspícuas de educação são preconizadas, sendo então as(os) oprimidas(os) submetidos à educação ditada pela classe burguesa. Nas palavras de Marx:

Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o podermaterialdominante numa sociedade é também a potência dominanteespiritual.A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual; de tal modo que o pensamento daqueles a quem é recusado os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante. Os pensamentos dominantes são apenas a expressão ideal das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias e, portanto, a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; dizendo de outro modo, são as ideias do seu domínio (MARX, 1987, p. 55-56).

Contudo, como foi sublinhado, para educar dentro de uma ordem classista, cabe ao(à) educador(a) acirrar as contradições, ou seja, “educar, no único sentido aceitável, significa conscientizar e lutar contra essa ordem, subvertê-la” (FREIRE, 1979, p. 6). Assim, a rebeldia que compõe o “pronunciar o mundo”, sinônimo de existência, de questionamento, de uma adaptação ativa para investigar e agir e não para acomodar-se é, portanto, ação necessária à mudança.