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1.3 O ESVAZIAMENTO DO ESPAÇO PÚBLICO

1.3.2 Conseqüências da fuga da política: o mal-estar pós-moderno

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BAUMAN, Zigmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 12.

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Este esvaziamento do espaço público traz como conseqüência um mal- estar que se caracteriza por medo e frustração que vêm a reboque de uma sensação de angústia e insegurança. Isto se dá porque a sensação de segurança era corolário da idéia de comunidade, da idéia de espaço público construído para definição de objetivos comuns e para a proteção da sociedade frente a perigos conhecidos. A existência do Estado como realidade e ao mesmo tempo ficção encarnava esta compreensão de instrumento de enfrentamento de medos e males. O Estado, enfim, dotava a sociedade de sensação de segurança porque ele controlava ou era o próprio poder.

A inexistência de um espaço público relevante mitiga a sensação de proteção em benefício de uma sensação de leveza e liberdade que é meramente virtual. As apreensões são multiplicadas exatamente por que os avanços das conexões hiper-complexas não mais permitem que possamos compreender e ler a realidade com a mesma linearidade que o mundo nos apresentava antes. Os perigos passam a ser desconhecidos e isto casado à inexistência de espaços públicos para a construção de estratégias coletivas para a superação do desconhecido gera a sensação de medo.187 O medo surge como conseqüência do abandono da comunidade estatal e o crescimento do credo da força do privado sobre o coletivo.

O processo moderno de construção da civilização ocidental – leia-se: separação do espaço público do espaço privado - significou uma permuta civilizatória188, onde valores foram abandonados em detrimento de outros. A liberdade do homem sem fronteiras e sem limites foi restringida em prol de uma relação de segurança em que os espaços públicos definiam as características desta

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BAUMAN, Zigmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 22.

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limitação, fortalecendo a segurança e a unidade na busca de soluções para todo o grupo. Como diz Bauman:

[...] a civilização oferece libertação do medo ou, pelo menos, torna os medos menos assustadores e intensos do que de outra forma seriam. Em troca, no entanto, impõe suas restrições à liberdade individual – por vezes severas, em geral opressivas, sempre maçantes.189

Na pós-modernidade, o que se pode observar é um abandono desta permuta civilizatória e a construção do credo da mesquinhez da segurança e da altivez da incerteza que proporciona satisfações dignas de um verdadeiro ser humano.

As promessas de segurança deixam de existir e a sensação de comunidade que enfrenta seus próprios desafios e dota de segurança comum é substituída pelo credo da supremacia das individualidades liberais, não coletivas e incertas.

O medo passa a ser uma característica da pós-modernidade que surge como conseqüência do abandono da seara política e do controle dos meios de poder por parte do público, com ocupação de seu espaço próprio em benefício do ser privado exatamente porque as pilastras da permuta básica da construção da civilização ocidental foram rompidas em honra de uma liberdade de conquistas geradora de insegurança.

O que é dignamente humano não é mais a paz, a certeza e a segurança, produtos da esfera pública e conseqüentemente conquistas do espaço político. O que passa a ser verdadeiramente digno de um ser humano é a conquista, a individualidade e a incerteza insegura que vem com a utopia de um espaço privado

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liberal. Nas palavras de Bauman, fazendo referência às idéias e aos conceitos do conhecido livro ‘O mal-estar na civilização’, de Sigmund Freud:

Em o mal-estar da pós-modernidade (1998), argumento que se Freud estivesse escrevendo seu livro agora, 70 anos depois do que o fez, provavelmente teria que mudar o diagnóstico: os problemas e desgostos humanos mais comuns atualmente são, como antes, produto de trocas, mas agora é a segurança que se sacrifica diariamente no altar da liberdade individual em expansão. No caminho para o que quer que se suponha uma maior liberdade individual de escolha e expressão pessoal perdemos boa parte da segurança fornecida pela civilização moderna e mais ainda da segurança que prometia; pior, praticamente paramos de dar ouvidos a promessas de que a segurança voltará a ser garantida; em vez disso ouvimos cada vez mais que a segurança vai contra a natureza da dignidade humana de que é traiçoeira demais para se desejar e alimenta uma dependência excessiva, viciada e totalmente embaraçosa.

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Além do medo, a frustração – no sentido de falta de vínculos afetivos com as realizações dos atos projetados em uma dimensão de futuro - caracteriza a pós- modernidade. É correto falar em frustração porque não é possível controlar o futuro, definir as relações causa e efeito e atuar conforme tais compreensões retilineamente dispostas.

A segurança, a certeza e a garantia de uma vida melhor são elementos que caracterizam o vínculo com o futuro, e o desfazimento de tais elementos geram o mal-estar pós-moderno que produz angústia.

A ausência ou carência de um desses elementos tem basicamente o mesmo efeito: dissipação da autoconfiança, perda de confiança na própria capacidade de e nas intenções dos outros, uma crescente incapacitação, ansiedade, esperteza e a tendência a buscar defeitos e aponta-los, a arranjar bodes expiatórios e a agredir.191

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BAUMAN, Zigmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 24.

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Por que o mal-estar é conseqüência da fuga do espaço público, da hipertrofia do privado sobre a atrofia do público e do abandono da política?

Porque o controle da vida coletiva migrou das esferas em que todos, democraticamente, poderiam opinar, para o universo do individualismo, o que causa a solidão. O não poder mais decidir, enfrentar e resolver os problemas da existência como uma comunidade, e a obrigação de fazê-lo por sua conta e risco solitariamente, desbordam em uma crise existencial que bate às portas do terceiro milênio como o mal da pós-modernidade.

Ao relegar-se à esfera do público, opta-se pela solidão da liberdade, ao revés da solidária segurança. Os riscos são maiores, ou parecem maiores quando são enfrentados sozinhos.

Ao passo que tais enfrentamentos se dão solitariamente, a sociedade ainda caminha na busca de inimigos privados que se tornam públicos, na tentativa de resgatar intuitivamente um espaço de participação minimamente coletivo que agora está apropriado pela esfera privada.

O mal-estar poderia ser caracterizado, em última análise, como uma conseqüência da arriscada solidão que é fruto do abandono da unidade do público que antes era o instrumento de resolução dos problemas existentes. A hipertrofia do espaço privado reduzindo o espaço público faz da política um instrumento ineficaz e insuficiente para a construção de vínculos com o futuro.