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CAPÍTULO V – ANÁLISE DAS HISTÓRIAS DE VIDA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo dos velhos, de todos os velhos, é de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória.

Norberto Bobbio.

A análise das percepções encontradas na memória e nas histórias de vida dos índios idosos Kaiwá possibilitou elucidar os efeitos das mudanças sociais e culturais ocorridas durante suas vidas relacionadas à aldeia e aos costumes indígenas. Os entrevistados falaram livremente sobre a história da sua vida à pesquisadora, com quem já tinham contato prévio e contínuo por um período de aproximadamente um ano, acompanhada de um intérprete, também índio Kaiwá, em quem já depositavam confiança para explanar sem que fosse necessário serem interpelados. Alguns depoimentos foram realizados em dois ou três encontros para que pudessem ser levantados os pontos principais de longas histórias cheias de situação interessantes sobre a vida na aldeia.

Este processo, desenvolvido, passo a passo no período de aproximadamente um ano, com a observação participante e a coleta das histórias de vida individuais buscou interação com a cultura indígena e a dinâmica da aldeia representando esta, uma das maiores dificuldades enfrentadas para a realização do mesmo.

No processar da memória estão presentes as dimensões do tempo individual e do tempo coletivo, pois o tempo da memória nas entrevistas ultrapassou o tempo de vida exclusivo dos depoentes ao recordar de fatos ocorridos na primeira infância que representam a vida da sua família e de seus antepassados.

Trabalhar com dados obtidos da memória é segundo Delgado (2006, p. 64) “caminhar por terreno fértil, mas também escorregadio, que exige do pesquisador sensibilidade, criatividade, ética e conhecimento histórico consistente sobre o tema ou objeto de pesquisa”. Neste sentido, buscou-se atender os quesitos necessários para atingir o objetivo de conhecer, na visão do índio idoso, as principais mudanças ocorridas no processo de envelhecimento na aldeia Jaguapiru em Dourados.

Conhecer o passado no presente, resgatando da memória fatos que demonstram o conflito vivenciado nas modificações culturais pelos indígenas participantes e sua etnia foi um processo delicado e complexo envolvendo questões de ordem política, social e governamental. Memorizar e reviver fatos importantes de suas vidas fez com que os índios idosos Kaiwá entrevistados reconstruíssem suas histórias de vida baseados em lembranças que foram valorizadas como positivas e outras que trouxeram à tona os efeitos das modificações sofridas e que desencadearam sentimentos de perda e de desvalorização.

Entre as mudanças mais valorizadas nas histórias de vida encontram-se as relacionadas aos temas: vestimenta, comércio e alimentação existente na aldeia.

A vestimenta foi considerada pela maior parte dos entrevistados como um dos pontos positivos da modernização da aldeia e da sociedade em geral. A melhoria na vestimenta se deve ao material utilizado para a confecção das mesmas, com mais elasticidade e modelos diferenciados. A matéria-prima utilizada anteriormente, composta principalmente por palhas de coqueiro e couro de animal não favorecia a mobilidade e o aquecimento nos dias frios.

O fator que influenciou na conceituação positiva das mudanças ocorridas na vestimenta está associado principalmente à religiosidade. A necessidade de andar vestido o tempo todo e a proibição de andar apenas com o uso de “chiripa” (espécie de saia-calça feita de palha de

coqueiro trançada) que era comum a homens e mulheres na aldeia Jaguapiru até a chegada dos missionários no início do século passado, representa a influência da interação social vivenciada pelos mesmos. Para os missionários, a exposição do corpo humano era considerada pecado e para os índios, até o início desta interação, natural.

A vestimenta, comprada em peças prontas inseriu na aldeia a relação do comércio entre os índios e outras etnias, principalmente, com o branco que reside na cidade de Dourados e atua como comerciante fornecendo a mercadoria com proposta de pagamento em várias parcelas. A necessidade de diversificação de modelos e a adesão à moda da cidade fazem com que o indígena, ao utilizar o sistema de pagamento parcelado, comprometa o recebimento de auxílio do governo federal para a manutenção econômica e sustentação da sua descendência como cesta básica e bolsa-família.

A prática do comércio desencadeia uma interação maior entre os moradores da aldeia e os da cidade. Vários índios que residem na aldeia vão à cidade regularmente com o propósito de trabalhar a fim de adquirir meios financeiros para o pagamento das compras; estudar para especializar em alguma profissão ou ainda para comercializar mercadorias como o milho, a mandioca e o artesanato.

O tema alimentação foi citado por todos os entrevistados por ter tido modificações visíveis no decorrer de suas histórias de vida. Não obstante as lembranças terem trazido o doce sabor dos alimentos preparados na infância e juventude, trouxeram também, as constatações sobre as facilidades no preparo do alimento e na diversidade do mesmo atualmente. E, neste sentido a valorização pelo novo.

O alimento natural como milho branco e feijão de corda, produtos anteriormente cultivados, livres de agrotóxico, pelos próprios indígenas ou os animais frutos de caça e pesca

nos perímetros da aldeia e nas proximidades passou a ser substituído pelos alimentos industrializados como o açúcar branco e o macarrão pronto, além de produtos trazidos por agricultores da região sul do Brasil como o feijão preto.

Interessante notar que apesar do prejuízo considerado pelos entrevistados no sabor e na qualidade do alimento consumido pelos indígenas atualmente, as modificações no preparo dos alimentos foram consideradas como positivas pela facilidade e rapidez com que acontece e, portanto, valorizadas como modificação cultural inserida pela interação social.

Entre as modificações consideradas pelos entrevistados como menos valorizadas ou de resultados negativos da interação social estão às relacionadas aos temas de preservação dos costumes indígenas como a festa, a dança, o canto, a língua, a agricultura, a moradia e o espaço destinado aos índios, além da proteção à natureza.

A preservação dos costumes na dança e no canto com significação cultural foi citado por todos os entrevistados como um processo em decadência, onde os jovens não praticam mais e os mais velhos insistem em continuar a transmitir o conceito dos mesmos por entender como sendo de grande importância para a boa convivência social entre os índios na aldeia. Como as festas da colheita – o batismo do milho, as danças do casamento e os cantos para afastar tormentas e chuvas muito fortes ou diminuir os efeitos da seca.

As bebidas, antes produzidas artesanalmente e que simbolizavam as festividades típicas como a “chicha” produzida pela fermentação do milho, hoje são substituídas pela aguardente de cana, produto disponível para aquisição nas proximidades da aldeia, mesmo que proibida sua comercialização aos indígenas, conforme o Estatuto do Índio, em vigor desde 1973.

Ao mesmo tempo em que o preparo e a aquisição dos alimentos foram valorizados em seus depoimentos, o cultivo dos mesmos na agricultura foi considerado como ponto negativo na

atualidade, pois perdeu o sentido do natural, do cultivo sem agrotóxicos e somente para o consumo, sendo que as lavouras divididas em pequenas plantações de milho e de mandioca para consumo direto na aldeia, transformaram-se em grandes pedaços de terra com plantação exclusiva de soja para comercialização. A utilização de grandes áreas contínuas por poucos indígenas, guardadas as proporções, reflete a questão social da agricultura no Centro-Oeste brasileiro, região de latifúndios e de grandes fazendas distribuídas para poucos proprietários.

Nas histórias de vida dos idosos entrevistados a língua foi considerada como o ponto de maior importância para a preservação da identidade cultural e também o de maior decadência da continuidade de sua cultura atualmente. Consideraram a necessidade do ensino na escola de forma bilíngüe para que o índio Kaiwá conviva com o igual e com o diferente da mesma forma, que saiba se comunicar com os patrícios e vizinhos tanto quanto com as outras etnias e com os moradores da cidade.

Os índios idosos colocaram em seus depoimentos que a maior parte dos jovens que residem na aldeia não apresentam interesse em continuar utilizando a linguagem própria do Kaiwá, a língua guarani, e que os pais também não incentivam a utilização da língua em casa, ficando apenas os mais velhos com este papel fundamental de preservação da cultura.

O envelhecimento foi visto pelos idosos entrevistados como uma das modificações mais tocantes em sua sociedade. A valorização do idoso, antes fundamental para o convívio social, onde ele representava o saber do conhecimento e da cultura, hoje deixou de acontecer naturalmente e este idoso passou a ser considerado apenas mais um ancião na família, alguém que vive junto. Não há mais a união das gerações comandadas pelos idosos, nem mesmo a grande roda de tereré para ouvir suas histórias com atenção e respeito.

A reserva indígena, na qual a aldeia Jaguapiru está inserida, citada como local ermo de grandes matas nativas e córregos pequenos que abasteciam de água pura parte do espaço de 3.475 hectares, destinado a pouco mais de 4.500 indígenas no início do século XX passou a ter grandes lavouras e pontos cada vez menores de mata nativa, resumidas a árvores próximas a algumas casas. Os córregos, hoje, no século XXI, praticamente inexistem e a água escassa, muitas vezes ausente, é armazenada em caixas cedidas pela Funasa – Fundação Nacional de Saúde para o abastecimento de mais de 11.000 índios residentes neste mesmo espaço, hoje com aproximadamente 317 habitantes/quilômetro quadrado, representando uma densidade cerca de três vezes maior.

A moradia representa uma das principais alterações desvalorizadas pelos índios idosos entrevistados. O índio Kaiwá, nômade por natureza, possuía a autonomia para mudar sua casa de lugar sempre que achasse conveniente, mesmo que dentro do espaço da reserva, até meados dos anos 70 e hoje se vê obrigado a não sair de sua casa, pois corre o risco de não encontrar outro lugar disponível e de não poder mais voltar ao espaço anterior. Mudança esta representada pelo controle social e governamental dos órgãos responsáveis pela manutenção da ordem e da segurança na aldeia. Este tema foi considerado pelos índios como representante da dominação por parte dos brancos com relação à etnia Kaiwá.

Os entrevistados expressam a presença marcante do tempo e da memória quando se referem naquele tempo e hoje, separando nas falas, principalmente o tempo da infância e o atual, da velhice.

O passado foi revivido pelos índios Kaiwá idosos entrevistados com emoção. O índio idoso ao recordar sua infância, seu tempo de criança, correndo por matas virgens e sangas, córregos tórridos de água, verdes campos e grandes ramadas em frente às casas, mostrou-se

saudosista e intensamente emotivo, sendo que em todas as entrevistas, nos momentos de coleta dos depoimentos, lágrimas escorreram dos rostos de homens e mulheres com rugas e olhares de expressão distante, muitas vezes, um reflexo da solidão.

Observa-se que o índio idoso valoriza o passado e explica as diferenças culturais encontradas como reflexo do desinteresse dos mais novos em manter a cultura Guarani-Kaiwá viva, pois não fazem questão de participar das conversas com os idosos, de continuar organizando as festas, de utilizar a língua guarani como padrão de comunicação na aldeia, de plantar apenas para o consumo de sua família e dos “patrícios” sem o uso de produtos tóxicos, além de preservar as matas, os córregos e as nascentes de água potável.

Neste sentido, o idoso observa a relação com as novas gerações como uma perda da identidade, pois os mais jovens não perpetuam os costumes e a cultura Kaiwá como as festas e a língua. Alguns rituais praticados atualmente são considerados pelos entrevistados como imitação.

A construção da identidade cultural do índio idoso e da etnia Kaiwá no contexto da aldeia perpassa pelas interações sociais entre outras etnias indígenas e os moradores da cidade, considerado por alguns dos idosos entrevistados como “civilizado” e, por outros apenas como “branco”.

Muitas mudanças culturais ocorreram em função da interação social intensa em que vivem os índios Kaiwás da aldeia Jaguapiru em Dourados. O antes e o depois andam juntos na vida destes idosos e na construção de sua identidade. O olhar do índio idoso ao lembrar estes acontecimentos, perpassa a sua identidade e alcança a identidade coletiva de um povo, de uma aldeia e de uma etnia.

A interação com outras etnias e, sobretudo com o branco, reflete em dominação e exploração do índio Kaiwá. O tipo de violência que ocorre hoje na aldeia, a falta de alimento, e o aumento, principalmente por parte dos jovens, de necessidades, antes inexistentes e consideradas pelos idosos como supérfluas, são designadas como resultado ao contato crescente, mas sem que se apresente culpados por esta situação.

Para exemplificar as questões do passado e do presente relacionadas às interações entre os índios Kaiwás e os brancos e entre a vida indígena na aldeia e a estrutura capitalista na cidade foi criado um quadro representativo com dados extraídos da bibliografia citada e das entrevistas realizadas (apêndice A), onde no campo esquerdo destaca-se o passado e no direito, o presente, sendo que no quadrante superior estão descritas as relações capitalistas e no quadrante inferior as relações da vida indígena.

Os índios idosos Kaiwá entrevistados consideraram as mudanças sociais uma ameaça à cultura e à preservação da identidade Kaiwá. O envelhecer traz incertezas e faz brotar o sentimento de medo intrínseco no olhar vago sobre o amanhã. Ao analisar a família no passado, a estrutura familiar do presente, os índios idosos explanaram dúvidas sobre a continuidade da cultura Kaiwá no futuro. Poderá ser a Kaiwá mais uma etnia existente apenas na memória do Brasil?