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O Método Qualitativo – História de vida

CAPÍTULO IV – O CAMINHO PERCORRIDO NESTA DISSERTAÇÃO

4.1. O Método Qualitativo – História de vida

Durante o período de elaboração desta dissertação buscou-se, através de uma pesquisa qualitativa, privilegiar o discurso de índios idosos da etnia Kaiwá que vivem na Aldeia Jaguapiru, distante cerca de 8 km do perímetro urbano do município de Dourados/MS, que, juntamente com a Aldeia Bororó formam a Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa com cerca de 3.400 hectares e aproximadamente 11.500 índios das três etnias: Guarani-Kaiwá, Guarani-Ñandeva e Terena.

A opção da pesquisa qualitativa deve-se ao fato de que esta metodologia preocupa-se com uma realidade que não pode ser quantificada, respondendo a questões particulares e, principalmente por trabalhar significados, crenças e valores correspondentes a um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1994) Portanto, das abordagens qualitativas, a mais apropriada para este estudo era a História de Vida.

O objetivo principal da realização de uma pesquisa qualitativa foi o de abordar a história de vida dos índios idosos Kaiwá, por meio da memória particular, com o intuito de conhecer a trajetória de vida dos mesmos, o processo do envelhecimento e a relação com as transformações culturais ocorridas, individuais e coletivamente durante este processo, além da contextualização cultural, pretendendo demonstrar a influência de acontecimentos comuns à sociedade adjacente na transformação da identidade cultural deste povo.

Entre as principais questões analisadas estão: a continuidade da cultura particular do índio Kaiwá, as interelações étnicas e as modificações sociais que ocorreram, na visão dos mesmos, nos últimos anos, com o propósito de alcançar, por meio do subjetivo, a dimensão social.

A escolha pela metodologia da história oral deve-se principalmente ao fato de que este método, segundo Tanus (2002, p.23) “permite estabelecer uma ponte entre o individual e o coletivo, sem perder de vista nenhum nem outro”. Processo este, desenvolvido pelo armazenamento de acontecimentos importantes como é feito pela memória. E, também, como complementa a definição de Portelli (1997, p.16) “tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços são diferentes, porém formam um todo depois de reunidos”.

Ferrarotti (1988, p.30) explica que a coleta da história de vida representa “o reconstruir os processos que fazem de um comportamento a síntese ativa de um sistema social a interpretar a objetividade de um fragmento da história social a partir da subjetividade não iludida de uma história individual”.

As histórias de vida, construídas com base na interação entre a história de vida individual, a identidade e a personalidade nas experiências sociais que os indivíduos compartilham com seus semelhantes, explicam as diferenças entre as pessoas. Todas as pessoas possuem uma personalidade tanto no contexto individual e social, coletivo, que pode ser traduzida pelo modo de pensar, de sentir, de agir ou de reagir nas situações cotidianas.

A escolha pelo método de análise da história de vida por meio de entrevista aberta com a utilização de um roteiro norteador que tem como finalidade guiar e buscar as respostas que possam por eventualidade passarem despercebidas ou não discutidas, além do valor agregado

deste instrumento, rico em detalhes e individualizado nos valores sociais da comunidade em que

o sujeito entrevistado está inserido. Como descreve Montenegro (1993, p. 60), “a história de

vida como método de pesquisa resgata um nível de historicidade que comumente não é conhecida através da versão dos meios sociais”.

A história de vida busca conhecer o indivíduo no seu contexto social e comunitário, considerado por Becker (1993, p. 110) “como um mosaico, onde cada peça acrescentada contribui para a compreensão do quadro como um todo”. A cada entrevista que conta a história de vida, acrescenta-se mais conteúdo para a construção ou reconstrução do momento vivenciado pelos entrevistados.

O método, embora esteja centrado na vida do sujeito de pesquisa, envolve as relações e as experiências de momentos históricos e sociais que são relembrados e até revividos pelo entrevistado.

Diferenciando de outros métodos utilizados em pesquisa com populações, como descreve Alvarez (2002, p. 164), “que esvaziam o sujeito transformando-o em número desprovido de estilo de vida, pensamentos e sentimentos”, a entrevista para coleta da história de vida fornece detalhes do processo de vida do entrevistado e permite conhecer a própria visão que os segmentos populares têm de suas vidas e do mundo ao seu redor. O testemunho oral é de suma importância para vislumbrar o pano de fundo, nos dando contextos que os documentos, por mais trabalhados que sejam não conseguem fornecer.

A história oral, como metodologia de pesquisa, se ocupa em conhecer e aprofundar conhecimentos sobre os padrões culturais, as estruturas sociais e os processos históricos, obtidos por meio de conversas com pessoas que ao focalizarem suas lembranças pessoais nos relatos, constroem também uma visão mais concreta da dinâmica de funcionamento e das várias etapas

da trajetória do grupo social ao qual pertencem, ponderando esses fatos pela sua importância em suas vidas.

Cassab (2003, p. 46), ao citar Ferrarotti, explica de maneira singular como funciona esta metodologia de coleta de história de vida quando diz que “todas as vidas individuais são documentos de uma humanidade mais ampla com suas descontinuidades históricas”. E a história de vida é o elo que une estes mosaicos biográficos, singulares e coletivos, em suas diferentes perspectivas, é a articulação entre o tempo em seu aspecto de experiencia individual e coletiva dos momentos que se integram reciprocamente.

Uma alusão ao passado com uma reflexão no presente e um remeter-se ao futuro. Este pode ser o conceito de história de vida, pois engloba o antes, durante e o depois almejado pelo indivíduo. É a consecução da vida em todo o seu movimento. Bosi (a) (2003, p.15) reflete sua participação nas colheitas de histórias de vida no seu livro – Memória e Sociedade – Lembrança de Velhos, quando diz: “não pretendi escrever uma obra sobre memória nem uma obra sobre velhice. Fiquei na intersecção dessas realidades: colhi memórias de velhos”.

Chauí (apud BOSI (a), 2003, p. 11) coloca que “é na pessoa do figurante colhedor de histórias que podemos ver a elaboração de um passado, gerando nestes relatos vivos, as histórias que começam a tomar forma”. As relações sociais e a cultura que o tempo deixa impresso nas histórias relatadas pelos idosos estão definidas num existir complexo rodeado de vida e emoções.

Captar as relações na história de vida que o idoso traz no relato é entender que o processo de memorização é circular e que as lembranças estarão participando do presente e fazendo parte da elaboração do futuro. Ao lembrar, o idoso reformula sua concepção do ocorrido e traz a tona situações que outrora não pareciam ter importância, mas que no contexto

atual refletem seu espaço e sua indefinição de papel social. “A história é compreendida, nessa abordagem, como memória coletiva do passado, consciência crítica do presente e premissa operatória para o futuro”. (FERRAROTTI, 1982, p. 23).

Por meio da história oral de vida é possível captar a interação do individual com o social permitindo que elementos do presente fundem-se a evocações passadas. A visão de forma retrospectiva da vida faculta uma visão total de seu conjunto, e que é o tempo presente que torna

possível uma compreensão mais aprofundada do momento passado. Neste sentido, Paulilo

(1999, p. 135) cita discurso de Soares quando debate as articulações entre os conceitos vida e sentido e diz que “somente a posteriori podem-se imputar, aos retalhos caóticos de vivência, as conexões de sentido que os convertem em ‘experiência’”.

Weinberg (2005, p. 32) lembra que “o pesquisador deve estar ciente dos avanços e recuos, da cronologia própria e da fantasia e idealização que costumam permear as narrativas que envolvem lembranças, memórias e recordações”. Discutindo este pensamento, cabe citar Bosi (a) (2003, p. 17) quando diz que “a história oral de vida busca a individualidade e a narrativa da reconstrução da história de cada um”.

Complementando, Camargo (1984, p. 24) refere que “o uso da história de vida possibilita apreender a cultura “do lado de dentro” constituindo-se em instrumento valioso, uma vez que se coloca justamente no ponto de interação das relações entre o que é exterior ao indivíduo e aquilo que ele traz dentro de si”. É importante ressaltar que durante a entrevista a pessoa conta mais do que sua própria história de vida, conta segundo Weinberg (2005, p. 42) “a vida de uma época, de um grupo e de um povo”.

Para Fontaine (2000, p.125) “a personalidade é uma estrutura, uma organização, ou ainda um integrador de comportamentos”. Vários autores, estudiosos do comportamento

humano, concluíram que a velhice não interfere na personalidade da pessoa e que esta é construída pelo indivíduo durante a infância e a juventude e é o melhor fator de predição da adaptação à velhice.

A metodologia da coleta de depoimentos e testemunhos orais da história de vida individual contribui para evitar o esquecimento e para registrar múltiplas visões do que passou reconstruindo, desta forma, a identidade histórica num esforço voltado para possibilitar o afloramento da pluralidade de visões inerentes à vida coletiva. (NEVES, 2000, p. 112)

A história de vida fornece base consistente para o entendimento do componente histórico dos fenômenos individuais, assim como para a compreensão do componente individual dos fenômenos históricos e sociais vivenciados. É o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, com a intermediação de um pesquisador, constituindo-se num trabalho coletivo de um narrador sujeito e de um intérprete. Personalizada, ela é construída por meio da história social e cultural do contexto em que o homem está inserido. Este contexto envolve as situações atuais e do decorrer do seu desenvolvimento individual e coletivo.

Freitas (2004, p. 185) coloca que a história oral é sempre uma história de vida. “O método prioriza a consciência de que a produção do conhecimento histórico está na busca do diálogo com o outro, implicando aí um diálogo entre o passado e o presente, com o desigual, com o diferente, com o esquecido. A construção de um saber, comprometido com a experiência de vida desse outro”.

A transformação de um povo e a reconstrução da sua identidade está inserida no contexto histórico-social, individual e coletivo. O envelhecimento faz parte deste contexto e representa a mudança mais evidenciada socialmente. Alguns grupos sociais de comunidades

distintas culturalmente têm no velho o aspecto mais claro e representativo das mudanças ocorridas no transcorrer do tempo.

4.2. As Entrevistas

Os sujeitos de pesquisa deste estudo foram índios idosos da etnia Guarani-Kaiwá, residentes na Aldeia Jaguapiru, totalizando cinco entrevistados, sendo dois do sexo feminino e três do sexo masculino. As entrevistas aconteceram em suas próprias residências. Os critérios de inclusão para esta pesquisa foram: a idade, superior a sessenta anos; o tempo de moradia na Aldeia Jaguapiru, superior a trinta anos, além do aceite e o interesse individual na participação da pesquisa.

A coleta dos dados ocorreu por meio de visitas periódicas à aldeia para a observação participante da vida diária dos idosos Kaiwá, com anotação no diário de campo e de entrevistas abertas e prolongadas, que foram realizadas individualmente, guiadas por tópicos que buscaram resgatar na memória da cada entrevistado, os acontecimentos históricos e sociais, associados à sua etnia e à Aldeia e a sua percepção individual sobre o envelhecimento e o “ser velho”.

A entrevista aberta abre ao entrevistado, com apenas uma pergunta, mesmo que permeada por um roteiro básico de questões, a possibilidade de contribuir com questionamentos, podendo, inclusive provocar reformulação do problema de pesquisa. Desta forma, os participantes se transformam em co-autores da investigação. Minayo (1994, p. 57) complementa este pensamento quando diz que “através desse procedimento, podemos obter dados objetivos e subjetivos. Os primeiros podem ser também obtidos através de fontes secundárias, tais como

censos, estatísticas e outras formas de registros. Em contrapartida, o segundo tipo de dados se relaciona aos valores, às atitudes e às opiniões dos sujeitos entrevistados”.

Cada entrevista teve a duração de aproximadamente uma hora e meia no primeiro momento e continuada, em segundo momento, com mais um período de em média, meia hora, obedecendo às diretrizes com dados caracterizadores dos entrevistados como nome, idade, situação matrimonial e religião; dados da história de vida que buscaram resgatar as memórias da infância e adolescência e constituição de família; dados sobre o tempo de moradia na Aldeia, situações sociais ocorridas, relações interétnicas, relações vivenciadas de comércio e de dinheiro; dados relativos ao envelhecimento, à experiência própria e considerações sobre o termo “estar velho” e o papel do idoso na Aldeia, ontem e hoje, além de fatores relacionados à identidade e à cultura. O foco das entrevistas foi: as lembranças e seus significados para a construção de sua identidade, armazenadas na memória individual de cada entrevistado.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas e digitadas para analisar os dados conforme a metodologia de análise de conteúdo.

A escolha dos entrevistados foi de forma aleatória, por meio de indicação do Agente Comunitário de Saúde e de lideranças indígenas de vários indígenas com características procuradas como a idade superior a 60 anos (conforme careteira de identificação expedida pela FUNAI) e pertencente à etnia Kaiwá. Na classificação do perfil dos entrevistados, cabe ressaltar que participaram da pesquisa índios idosos da etnia Kaiwá com idade entre 70 e 95 anos registrada em documento de identificação legal expedido pela FUNAI, sendo dois do sexo feminino e três do sexo masculino.

Para uma identificação clara dos depoimentos no decorrer da análise, segue o quadro geral de todos os entrevistados, identificados com o código com que surgem nesta dissertação, além do sexo e de suas respectivas idades:

QUADRO DEMONSTRATIVO DOS ENTREVISTADOS SEGUNDO