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Capítulo 3. Bullying escolar como fenômeno sociocultural e psicológico

VI. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A definição do bullying unicamente por meio da citação de ações de violência física ou psicológica repetitiva (chutar, xingar, difamar, entre outras) ou a compreensão do fenômeno utilizando-se como justificativa propensões individuais e rótulos (agressores, vítimas e observadores) amplamente discutidos na literatura, demonstrou-se insuficiente nesta pesquisa. O discurso das crianças evidenciou que o bullying é um fenômeno subjetivo e complexo, que necessita ser compreendido por meio de uma visão sistêmica, onde fatores psicológicos, sociais e relacionais interagem entre si. O bullying envolve percepção e sentimentos subjetivos sobre o fenômeno, ou seja, cada criança apresenta uma compreensão e uma vivência específica sobre o bullying. O que é bullying para uma criança pode não ser para outra e tudo vai depender da natureza das relações e do contexto onde elas se desenvolvem. Um adulto, observador externo, não tem como definir a priori quem são ou poderão ser as crianças envolvidas em casos de bullying: somente as crianças em interação podem fazê-lo. A complexidade do bullying envolve a dinâmica e a sutileza dos processos de significação (semióticos) que vão sendo coconstruídos nas interações e processos de comunicação entre as crianças no grupo de pares.

Avançamos ao propor que as causas do bullying não estão apenas nas crianças em interação, mas nas crenças e valores socialmente compartilhados em nossa cultura. A existência ou não de bullying na escola vai depender do que é canalizado culturalmente e motivado pela escola: caso sejam valores construtivos e interações pacíficas, possivelmente não haverá o bullying. A idade, a personalidade, o temperamento, características físicas e a família de origem, por exemplo, por si só, não determinam se existirá ou não o bullying. Como fenômeno relacional, ele acontece na relação criança-criança em determinado contexto favorável à violência interpessoal.

Esse estudo destacou o valor da pesquisa qualitativa do bullying, por meio de entrevistas e observações, pois cabe aos atores da escola, adultos e crianças, relatar de que forma o bullying se manifesta e por que determinadas crianças, naquele contexto específico, acabam atuando como vítimas, agressoras e observadoras. Conforme Ristum (2010), Ristum e Bastos (2004) e Silva e Ristum (2010), a violência é um fenômeno socialmente construído e não pode ser compreendida fora do âmbito das relações sociais, sendo os atores que vivenciam o fenômeno os mais indicados para defini- lo e a significá-lo. Portanto, a pesquisa qualitativa foi valiosa ao investigar o bullying entre os adultos e, principalmente, entre as crianças da escola, trazendo contribuições importantes ao estudo do fenômeno. Consideramos que pesquisas quantitativas que, por exemplo, elencam como objetivo apenas descobrir se existe ou não o bullying na escola e se há ou não projetos contra ele, não contemplam a riqueza da vivência do fenômeno, gerando dados pouco significativos para compreender sua complexidade.

A pesquisa encontrou, na Escola Alfa, uma orientadora educacional pessoalmente motivada a prevenir o bullying entre os alunos por meio do Projeto Virtudes. No entanto, encontramos na escola

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uma equipe administrativa e pedagógica com dificuldade em definir violência e paz em termos relacionais. Os adultos entrevistados julgaram não existir bullying na escola, por terem dificuldade de compreender o que o termo significa. Provavelmente por esta razão, o Projeto Virtudes se constituiu de palestras e ações isoladas, promovidas unicamente pela orientadora educacional, nas quais prevaleceu o incentivo à obediência de regras da escola e ao bom desempenho. As crianças entrevistadas, por sua vez, descreveram situações complexas de bullying e, ao contrário dos adultos participantes, sugeriram maneiras de prevenir a violência na escola, com base em casos concretos da instituição escolar.

O que encontramos na Escola Alfa refletiu as orientações implícitas da escola, os valores e as crenças arraigadas na comunidade escolar e na própria sociedade. O currículo oculto se expressou pela canalização sutil de crenças, valores e ações de professores e alunos em certa direção. Também encontramos na escola falta motivação dos adultos em se envolverem contra o bullying, pois estes tenderam a apontar a família das crianças como a causa principal dos problemas entre os alunos, podendo a escola fazer muito pouco. Destacamos, ainda, que além da falta de motivação dos adultos em lidar com bullying, a equipe pedagógica e administrativa pareceu não ter recebido formação ou orientação de como identificar problemas e conflitos nas interações criança-criança, e muito menos informações sobre como promover a resolução pacífica dos conflitos entre as crianças. Predomina, assim, a abordagem não dialógica no contexto da cultura escolar, em sintonia com uma sociedade cada dia mais individualista e competitiva.

Para que haja mudanças no currículo oculto da escola, é necessário que os adultos da instituição concebam a criança como ser ativo no seu processo de desenvolvimento, capaz de criar significados individuais e particulares por meio das fontes culturais às quais é exposta, gerando experiências de desenvolvimento e a promoção de novas culturas (Corsaro, 2011; Gaskins, Miller & Corsaro, 1992). Ouvir as crianças, assim como incluir a participação ativa dos alunos em projetos escolares (como seria o caso do Projeto Virtudes) é dar oportunidade para que elas, entre os pares, lidem de forma construtiva com situações de bullying escolar, valorizem a diversidade, a democracia e os direitos humanos nas relações entre os colegas e entre professores e crianças (Jares, 2002).

Branco (2012) e Camps (2005) ressaltam que a ética e a moralidade são resultado da construção mútua e permanente de valores e ações nas práticas sociais, nas quais cognição e afeto sejam igualmente valorizados na promoção de regras conjuntas em prol da convivência pacífica na escola. Intervenções pontuais e verticais podem eventualmente aplacar a angústia dos adultos, pois trazem efeitos imediatos, mas não mobilizam as bases da violência, como a competição e o preconceito. Em outras palavras, a existência de um trabalho contra o bullying na escola, bem como discursos favoráveis ao desenvolvimento de virtudes entre os alunos não significa que haja na instituição ações concretas em prol da paz. Na prática, isso não garante o trabalho construtivo,

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cooperativo, nem mesmo ações voltadas para o desenvolvimento da empatia, mas cooperação e empatia são processos essenciais para a verdadeira construção criativa e coletiva da paz.

A educação para paz é um processo educativo contínuo e permanente fundamentado na resolução pacífica e criativa do conflito (Jares, 2007). Na educação para a paz, há o objetivo de construir a cultura da paz na escola, que promove ações éticas e cidadãs, justiça, respeito ao próximo e solidariedade no dia a dia escolar, juntamente com os conteúdos pedagógicos. Nesse contexto, sem dúvida, a empatia é encarada como propulsora de sentimentos, motivações e comportamentos voltados ao bem-estar da comunidade escolar como um todo. Se há cultura da paz, há empatia, respeito ao próximo e a ocorrência de bullying se torna improvável. Como observamos, as crianças entrevistadas durante este estudo sugeriram várias estratégias de como promover a cultura da paz na escola e, por meio de suas palavras, percebemos o quanto os alunos, ao contrário dos adultos participantes, estavam sensíveis à necessidade de dialogarem entre si e terem oportunidade de conviver de forma harmônica com os colegas.

Como forma de prevenir a violência, Staub (2001) ressalta a importância de promover entre as crianças valores humanos voltados ao cuidado com o bem-estar dos outros. Para o autor, a valorização deve ser do outro que convive no mesmo grupo ou em outros grupos. Cabe à escola e à família sensibilizar as crianças sobre temas associados a preconceitos e, para tanto, criar espaços de diálogo entre as crianças e entre adultos e crianças para a construção conjunta de regras e estratégias efetivas para a promoção da empatia e de ações pró-sociais.

O bullying é um fenômeno relacional e cultural e se manifesta de forma complexa e peculiar nos contextos sociais. Portanto, não podemos estabelecer estereótipos quanto a crianças agressoras, observadoras e vítimas, pois é cada contexto relacional que constrói esses papéis e quem, aparentemente, seria apenas um observador, pode sofrer bullying, ou causá-lo, em diferentes contextos. Em outras palavras, não existem categorias fixas, nem relações lineares e simplistas. Nem sempre uma criança que tem prestígio na família é observadora entre seus pares ou a criança que sofre preconceito fora da escola irá sofrer bullying na escola.

Por fim, ressaltamos, mais uma vez, a importância de ouvir as crianças e de elas relatarem o que sentem e vivenciam com seus pares. Para tanto, a escola deve abrir espaços para o diálogo com seus alunos, com o intuito de desenvolver valores construtivos na cultura escolar. Ao pensarmos na importância da escola no trabalho com as crianças em prol do desenvolvimento da paz, destacamos também a importância de todos os atores estarem envolvidos: professores, equipe administrativa, equipe pedagógica, pais e alunos. Nesse contexto, o psicólogo escolar deve, com certeza, desenvolver um olhar clínico, ou seja, um olhar atento às relações sociais e ao desenvolvimento global da criança e dos demais profissionais da escola. Com esse olhar empático, ele poderá contribuir para encontrar, de forma cooperativa, estratégias de motivação e de trabalho com os alunos para prevenir e intervir nos casos de bullying de forma construtiva.

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Pesquisas futuras sobre o tema bullying e cultura da paz podem incluir em sua metodologia grupos focais com as crianças, que poderão se mostrar ricos na discussão de casos de bullying e também na construção de estratégias pensadas pelas crianças como efetivas na prevenção e na resolução de casos de bullying. As famílias também poderiam ser incluídas em pesquisas sobre o tema, enriquecendo-se assim a compreensão do fenômeno.

Ainda há muito a ser feito em prol da construção da cultura de paz nas escolas, até porque a escola se insere no contexto mais amplo da sociedade, e esta precisa se desenvolver na direção de construir a paz em todos os âmbitos. No caso da escola, porém, mais do que boas intenções, será preciso uma forte e verdadeira motivação e um olhar crítico sobre as atividades desenvolvidas e as relações interpessoais na escola: os adultos, especialmente o professores, são importantes mediadores para a construção de relações saudáveis e construtivas, eliminando assim o bullying escolar.

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