• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3. Bullying escolar como fenômeno sociocultural e psicológico

3.1. Violência, bullying e sociedade

No contexto sociocultural do século XXI, alcançar o sucesso e a felicidade parece significar, para a maioria das pessoas, adquirir bens de consumo e, por meio da competição exacerbada, realizar projetos individualistas, considerando-se cada vez menos as necessidades e a dignidade do outro e as condições do meio ambiente no qual vivemos (Beaudoin & Taylor, 2007; Calhau, 2010; Saraiva, 2000). Na dinâmica social na qual nos desenvolvemos, frequentemente prevalecem o individualismo e os valores competitivos e não há um verdadeiro respeito aos direitos humanos; o que há é uma relação entre opressores e oprimidos, em que o consumismo e a competição estão profundamente intrincados. A orientação para valores e metas em que os objetivos pessoais prevalecem sobre o bem-estar comum pode motivar comportamentos sociais agressivos, hostis e antissociais, inibindo o desenvolvimento da motivação pró-social entre as pessoas (Sennet, 2012; Staub, 1991).

Além do foco no interesse individual em detrimento do bem-estar da coletividade, assevera Staub (2001), a violência ocorre quando situações adversas de vida ameaçam necessidades humanas fundamentais, como a segurança física e material, a necessidade de conseguir alimentos para a família, a proteção da identidade pessoal, do autoconceito, e também quando prevalecem valores e estilos de vida pautados pela agressão. Para superar as situações ameaçadoras, muitas vezes as pessoas elegem um grupo para culpá-lo pela ocorrência dos problemas sociais existentes e, então, adotam ideologias, conceitos e visões de mundo, muitas vezes, equivocados. Staub (2001) afirma que as pessoas necessitam de perspectivas e visões positivas, especialmente em épocas difíceis, mas às vezes as ideologias adotadas são destrutivas, pois elegem, ou inventam, “inimigos” que sustentam a ideologia. Segundo o autor, os líderes que elegem culpados ou inimigos responsáveis pelas mazelas sociais tentam conseguir novos seguidores e fortalecer sua influência sobre os liderados. No mesmo caminho, quando as pessoas não conseguem superar as adversidades nas quais se encontram, buscam líderes que apontem as razões dos problemas sociais, ainda que os eleitos sejam outros seres humanos (Staub, 2001).

Ao pensarmos nessa análise da violência e correlacioná-la ao bullying, observamos que muitas vezes as crianças em situações escolares adversas (opressoras, com poucos estímulos, com professores agressivos ou negligentes etc.) podem encontrar no bullying uma forma de extravasar a sua insatisfação com o sistema educacional. Pode ocorrer que contextos escolares que ameacem as necessidades humanas básicas (autoconceito, esperança de dias melhores, criatividade, entre outras) contribuam para o desenvolvimento de atitudes individualistas e agressivas entre os alunos, sendo o

52

bullying uma forma de, inclusive, superar aparentemente sentimentos de inferioridade, com alguns colegas eleitos como alvo de perseguição e rótulos pejorativos.

Staub (2001) argumenta que a diferenciação entre “nós” e “eles”, e a desvalorização do “eles”, é central para as pessoas se posicionarem umas contra as outras. Muitas vezes, o processo de desvalorização interpessoal passa a fazer parte de determinada cultura ou da cultura de uma instituição, o que legitima a inferioridade atribuída a determinados grupos e o fortalecimento do poder do grupo dominante. Dessa forma, caso uma escola não atue para evitar e eliminar ações de bullying, é provável que alunos persistam em eleger outros alunos que, na ideologia do bullying, mereçam ser alvo de chacota e ações violentas.

Sobre os líderes, Staub (2001) destaca que o tipo de líder eleito em contextos específicos depende da combinação entre as condições sociais existentes (ou outros instigadores) e a cultura social, ou seja, um líder eleito em uma instituição em que há legitimada e extrema competição por títulos pode não ser assim considerado em outra instituição, em que o grupo está motivado a construir estratégias cooperativas para superar a competição entre os colegas. Em contextos de violência, Staub (2001) afirma que os líderes ampliam as diferenças de poder e status entre os grupos, adotam ou criam ideologias destrutivas e, ainda, criam mecanismos de propaganda para desvalorizar o grupo não dominante (“eles”), provocando medo nesse grupo.

Em relação ao bullying, observamos que as crianças, muitas vezes, elegem como líderes (agressores) colegas com poder tanto de magoar os outros colegas (vítimas) como de popularizar apelidos e agressões. Os agressores são capazes até mesmo de justificar o bullying como “uma brincadeira entre amigos”, inocentando o grupo que o pratica e rotulando as vítimas de “sensíveis e chorões que não sabem brincar” e se tornando cada vez mais cruéis, caso as vítimas ou os observadores denunciem o bullying. Dessa maneira, espalham medo no grupo oprimido.

Rengifo-Herrera (2012) expõe que a violência é traduzida em ações e práticas imbuídas de valores, crenças e significados a respeito de si, dos outros e da sociedade e do mundo como um todo. Para o autor, ela é construída em relações sociais complexas, por meio das quais, muitas vezes, os grupos violentos se beneficiam da fraqueza do Estado no controle da violência. Segundo Rengifo- Herrera (2012), os hábitos de violência se tornam, então, meios justificáveis e legitimados de operar em sociedades violentas, que associam o poder à violência e promovem a diferenciação entre ingroup (nós) versus o outgroup (eles). Tais sociedades atribuem ao ingroup hábitos superiores, características humanas e princípios morais, e diminuem os membros do outgrup (os inimigos), com supostas qualidades, práticas, tradições e crenças inferiores (como acontece na diferenciação entre “nós” e “eles” postulada por Staub, 2001).

Olweus (1993) refere-se ao bullying também como um fenômeno de grupo, uma vez que as crianças podem ser mais agressivas após observarem alguém considerado “modelo” agindo de forma violenta. A relação entre observação e imitação pode ser bastante forte se a criança “modelo” tem

53

avaliação positiva no grupo: é vista como forte, capaz, destemida etc. O autor pontua que crianças que se sentem inseguras e dependentes tendem a seguir o “modelo” para alcançar status no grupo e, com isso, perpetuam o bullying contra os colegas. Outro mecanismo de grupo citado por Olweus (1993) ocorre quando uma criança observa outra (ou outras) sendo violenta no grupo. Ela pode ter seus mecanismos de controle da agressividade diminuídos se não perceber que comportamentos agressivos são punidos ou condenados nas relações interpessoais do grupo. Por isso, é fundamental que os adultos e as crianças que observam o bullying sejam ativas na inibição de cada ocorrência desse fenômeno, antes que ele se torne banalizado e imitado por outras crianças.

Outro comportamento de grupo, mencionado por Olweus (1993), é a “diminuição do senso de responsabilidade individual” quando uma criança observa que várias outras estão envolvidas em comportamentos de bullying. Em outras palavras, se a criança percebe que o bullying é comum em seu grupo, mesmo sendo tranquila e sem antecedentes de agressão, ela pode ser conivente ou praticar bullying, sem culpa ou ressentimentos. A vítima, após ser exposta repetidas vezes a ataques de bullying e a comentários pejorativos, passa a ser percebida pelo grupo como merecedora das agressões, como fraca, sensível, perdedora etc. Sem dúvida, essa percepção distorcida da vítima faz com que sejam diminuídos o sentimento de culpa, a empatia e ações para coibir a violência.

Ao analisarmos o fenômeno bullying, enriquecidos pelas contribuições de Rengifo-Herrera (2012) e Olweus (1993), podemos pensar que, caso a instituição escolar não demonstre força, conhecimento, ou vontade para coibir a violência, algumas crianças poderão se empoderar para praticar ações agressivas contra as outras. Observamos, ainda, que, caso a escola seja, de forma implícita ou explícita, uma instituição também violenta, ela se cegará para atos de bullying e até poderá considerá-lo como “brincadeira entre crianças”, apesar dos efeitos negativos dessas “brincadeiras” nos alunos. Ou seja, como ingroup, poderíamos pensar nas crianças agressoras e observadoras e como outgroup, estariam as crianças vítimas, supostamente merecedoras do bullying por serem inferiores ou imperfeitas.

Anderson e Carnagey (2004) definem a violência como “ação intencional dirigida a um ou mais indivíduos e projetada para infligir grande prejuízo às pessoas-alvo” (p. 169). Os autores afirmam que todo ato de violência é uma agressão, mas nem sempre uma agressão representa uma violência. Os autores descrevem o “Modelo Geral de Agressão”, no qual a interação entre fatores biológicos (hormônios e genética), sociais (crenças, atitudes agressivas, scripts de comportamento agressivo e esquemas de percepção), de personalidade (agressiva ou não) e variáveis situacionais geram comportamentos agressivos. Um exemplo desse modelo seria uma situação provocadora de frustração (fator situacional), que gera raiva (fator biológico, social e de personalidade) e culmina em agressões. O “Modelo Geral de Agressão” aponta para os fatores biológicos, que tornariam certas pessoas, quando frustradas, mais propensas a reagir de forma agressiva do que outras.

54

Consideramos que, apesar de Anderson e Carnagey (2004) mencionarem o papel das interações sociais e da cultura na promoção do bem e na coibição da violência, o “modelo geral de agressão” não destaca a centralidade da cultura, e está focado no comportamento agressivo manifesto (observável), sendo que, muitas vezes, ações agressivas e violentas são sutis, como casos de bullying entre meninas. Entre elas, muitas vezes uma líder instiga as demais colegas a excluírem a vítima e a difamarem-na, sem a ocorrência de violência física de nenhuma natureza. Nesse caso, por exemplo, parece mais provável que um contexto escolar permissivo, em interação com a cultura de pares das meninas, esteja promovendo situações de bullying. Como o “modelo” parece focar em processos cognitivos e em fatores biológicos relacionados à agressão, não estaria, no caso, valorizando o fundamental papel desempenhado pela cultura, mas desconsiderando o fato de que, frequentemente, é mais provável que as situações de violência aconteçam em decorrência de crenças e valores internalizados pelas pessoas e vivenciados nas práticas sociais, o que envolve emoções e motivações tanto pessoais quanto sociais.

De acordo com Ristum (2010), Ristum e Bastos (2004) e Silva e Ristum (2010), a violência faz parte das ações humanas, ou seja, é fenômeno socialmente construído e não pode ser compreendida fora do âmbito das relações sociais. As autoras asseveram que, independentemente de a faceta da violência ser adotada como objeto de estudo em uma pesquisa, ela deve ser contextualizada historicamente e nas relações sociais, sendo os atores que vivenciam o fenômeno os mais indicados para defini-la e significá-la. Em sintonia com essa análise acerca da violência, o presente trabalho também entende que o combate à violência (e, portanto, também ao bullying) deve se focar na análise do fenômeno na escola, tendo em conta o discurso dos atores da escola. Dessa maneira, é fundamental pensar o fenômeno bullying dentro do contexto histórico e sociocultural em que ele se manifesta, identificar fatores sociais e individuais que promovam a propagação de situações de violência entre as crianças e dar ênfase ao papel da escola na promoção de ações construtivas entre professores, pais e alunos, para coibir a violência explícita (agressões físicas, xingamentos, roubo de pertences, por exemplo) ou sutil (fofocas, intrigas, exclusão social, entre outras).

Documentos relacionados