• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3. Bullying escolar como fenômeno sociocultural e psicológico

IV. RESULTADOS

4.4. Sumário dos resultados

Destacamos a importante iniciativa da orientadora educacional de construir um projeto na escola para prevenir o bullying entre os alunos e sua motivação para buscar, sozinha, recursos materiais (livros, textos, gravuras, cartazes etc.) e logísticos (reuniões com pais, com equipes da escola, convite à pesquisadora, a um voluntário etc.) para lidar com o tema entre os alunos. A orientadora educacional era bem intencionada e engajada no desenvolvimento dos alunos da escola, porém, sua postura foi

156

pouco motivadora para os alunos, pois lidou com o tema em sala de aula como se fosse um conteúdo escolar a ser transmitido. Mesmo assim, tudo indicava que o tema das virtudes (valores sociais construtivos) e a paz pareciam menos importantes que os conteúdos pedagógicos para as equipes administrativa e pedagógica. Observamos em Olívia uma profissional empenhada em prevenir o bullying, porém solitária. Ao longo da nossa pesquisa, parece que ela foi se desmotivando por causa do desinteresse dos adultos da escola (e talvez, até pelo desinteresse das crianças) em relação a seu trabalho. Como em um círculo vicioso, sua desmotivação gradual parecia fazê-la se isolar ainda mais em seu trabalho e convicções e se afastar dos demais atores da escola.

Outra hipótese se relaciona aos valores da escola. Observamos o quanto Denise, a diretora, parecia indiferente aos projetos de Olívia. Desse modo, em uma escola onde aparentemente cada profissional trabalhava sozinho, Olívia reproduziu esse modelo e atuou de forma centralizadora, até mesmo para conseguir consolidar o seu Projeto Virtudes. O Projeto acabou fechado em si mesmo, sem a participação ativa das professoras e da equipe administrativa da escola. Diante desse contexto escolar complexo, consideramos que nos cabe pontuar e discutir de que maneira o Projeto Virtudes se desenrolou e como foram o discurso e a atuação dos demais agentes da escola que, somados às ações da orientadora educacional, deixaram de contribuir para a construção da paz entre os alunos no ano letivo em que ocorreu esta pesquisa. Por fim, salientamos que a presença de um projeto contra o bullying, como esse, mesmo sendo fruto de boas intenções e discursos bem articulados, na prática tende a ter poucos resultados se não contar com a participação ativa de crianças e adultos, além de ter ainda menos efeito no que se relaciona à cooperação entre as pessoas em prol da paz na escola.

A análise dos posicionamentos de Olívia e do desenvolvimento de seu Projeto Virtudes demonstrou o poder do currículo oculto nas práticas educacionais: ou seja, as crenças culturais sobre desenvolvimento social e moral permeiam as ações no contexto escolar, sem serem submetidas ao crivo de análises críticas e intencionais das práticas aí observadas. Apresentando como objetivo central trabalhar as virtudes entre os alunos, de modo a coibir comportamentos agressivos e de bullying, Olívia se limitou, no entanto, a realizar palestras para as crianças, após a leitura exaustiva de textos sobre virtudes. As tarefas por ela dadas aos alunos eram similares às atividades escolares corriqueiras. Além disso, ela focalizou apenas a questão das regras, em especial, “obedecer à professora”.

Observamos também, nas práticas da orientadora, sutil incentivo à competição, pois comunicava que as melhores respostas às atividades propostas seriam expostas na reunião com os pais. Destacamos, com base nisso, que “melhores respostas” eram aquelas que correspondiam às expectativas de Olívia e das professoras. Mesmo representando uma referência afetiva para as crianças, porém, a orientadora acabou abrindo mão da possibilidade de atuar como mediadora de discussões importantes, tomando para si o papel de instrutora/disciplinadora, destacando a importância das regras e da obediência, sem praticamente discutir o tema do bullying propriamente dito junto com os alunos.

157

A análise do projeto evidenciou, ainda, o quanto a equipe administrativa e pedagógica da escola não se envolveu se envolveu com o Projeto; ou então, o quanto a orientadora, sentindo-se desprestigiada, agiu de forma individualista e solitária, a ponto de sutilmente excluir os demais atores da escola de seu projeto. Não a observamos discutindo o projeto com os demais responsáveis pela escola, e ela também não fez referência, em qualquer momento, a haver conversado com ninguém sobre ele. Além disso, houve pouco, ou quase nenhum, envolvimento dos pais no projeto, e a equipe administrativa da escola não convidou as famílias para conversar sobre o bullying em momento algum. Diante do exposto, tudo indica que o projeto foi pouco eficaz em motivar os alunos a pensarem sobre o bullying e a agirem criativamente para evitá-lo.

Os membros das equipes administrativa e pedagógica da escola apresentaram diferentes concepções sobre o tema da pesquisa, mas, no geral, conceberam o bullying ora abrangendo uma grande diversidade de comportamentos violentos, ora relacionando-o a um conjunto restrito de agressões, como xingamentos ou desrespeito. O aspecto relacional envolvido no bullying, na construção da paz e na expressão da violência no contexto escolar praticamente não foi mencionado, E a família foi apontada como a maior fonte de agressão entre os alunos. Todos criticaram a família por não impor limites E não fortalecer a autoestima das crianças, que, por isso, ficariam sensíveis e propensas a sofrer bullying. Nenhum dos entrevistados afirmou que a escola também deveria atuar na prevenção da violência e na resolução pacífica de conflitos. Houve, ainda, quem dissesse que falar sobre violência ou discutir casos concretos iria gerar a violência entre os alunos, uma vez que eles, por ainda não terem chegado à adolescência, seriam pessoas ingênuas e boas, e não vivenciariam conflitos!

Os membros das equipes pedagógica e administrativa da escola não expressaram de que maneira poderiam intervir concretamente para promover relações sociais construtivas entre os alunos e nem mesmo como inserir a família no processo de construção da paz. Para eles, ao contrário da narrativa de todos os dezenove alunos, o bullying era inexistente na escola, e a família era a única responsável pela “eventual” ocorrência de algum tipo de violência entre as crianças. Para quase todos da equipe, a noção de “cultura de paz” era totalmente desconhecida (apenas o secretário da escola a conceituou de forma pertinente) e a “paz” seria um “estado interior de espírito”, e não um conceito relacional ou social.

Os membros das equipes apontaram Olívia e seu projeto como responsáveis pela construção de valores pacíficos entre as crianças; mas, na prática, se mostraram alheios às atividades desenvolvidas pela orientadora. Por tudo isso, concluímos ter ficado explícito nas observações e entrevistas: (1) a prevalência do desconhecimento da complexidade envolvida nas relações humanas, na paz, na violência e no bullying; (2) a falta de enfoque no papel transformador e construtivo da escola no que se refere à construção da paz entre os alunos; (3) a desvalorização e a culpa atribuída à

158

família pelo bullying entre os alunos; e (4) a desconsideração do papel ativo das crianças na promoção da cultura da paz.

Quanto às professoras entrevistadas, os resultados relativos a concepções e crenças sobre os temas paz, violência e bullying foram bem similares aos encontrados no caso das equipes administrativa e pedagógica da escola. Entretanto, as professoras apresentavam formas diferentes de se relacionar com seus alunos. Ana era a mais favorável a que seus alunos se ajudassem reciprocamente, Beatriz era a mais rígida com a disciplina (inibidora de interações) e preocupada com o conteúdo escolar, e Carla demonstrava um comportamento agressivo em relação aos alunos. Não observamos, em nenhuma das três turmas, atividades planejadas voltadas à cooperação ou ao trabalho com os valores elencados no Projeto Virtudes, ficando explícito na fala das professoras, em várias ocasiões, que o referido Projeto era da Olívia. Por tudo isso, concluímos que as professoras não se sentiam comprometidas a trabalhar com valores ou virtudes com seus alunos e que estavam focadas apenas no desenvolvimento satisfatório do conteúdo escolar.

As professoras, de forma semelhante às equipes administrativa e pedagógica da escola, encontraram dificuldade em relacionar paz, violência, bullying e relações interpessoais. Não souberam definir cultura de paz e apresentaram dificuldade em especificar como, na prática, valores sociais construtivos poderiam ser trabalhados na escola. Para elas, a maior motivação da prática do bullying seria a intolerância às diferenças físicas, em especial, à cor negra, à deficiência física e ao excesso de peso. Para elas, porém, a simples conversa (“chamar a atenção”) com os alunos envolvidos em bullying e o Projeto Virtudes seriam capazes de ensinar regras contra a violência e coibi-la de forma eficaz.

É interessante notar que, para as três professoras, o bullying não existia entre seus alunos, pois elas e Olívia eram capazes de coibir comportamentos dessa natureza por meio de intervenções verbais. Elas não souberam mencionar como, na prática, o bullying poderia ser evitado ou resolvido com qualquer outra estratégia além da “conversa”. Consideraram que conversas pontuais (na verdade, “chamadas de atenção”, pois nunca observamos qualquer diálogo sobre o tema) ou exposições teóricas sobre regras, seriam capazes de coibir o bullying em sala de aula. Pareciam acreditar no poder do controle adulto sobre as crianças, deixando de ver as ocorrências de bullying narradas pelos dezenove alunos entrevistados durante esta pesquisa.

Os resultados mais interessantes da pesquisa, porém, se referem às crianças. Apesar de os adultos considerarem o bullying inexistente, todas as crianças relataram diversos eventos em que sofriam, provocavam ou observavam bullying. Além disso, elas, em geral, definiram o termo bullying de maneira pertinente, com muito maior precisão e detalhe, e de acordo com a literatura sobre o tema, do que os adultos entrevistados. Citaram casos de bullying entre os colegas e, ao descreverem as agressões, se definiram e definiram os colegas de forma diferente da realizada pelas professoras. Crianças definidas como “observadoras” pelas professoras se definiram como “vítimas” ou

159

“agressoras” (ou foram assim definidas pelas outras crianças). De forma semelhante, crianças apontadas como vítimas ou agressoras se percebiam ou eram definidas pelos colegas de forma diferente. Em resumo, as professoras se equivocaram duplamente: o bullying existia, com certeza, e mesmo quando de forma contraditória elas indicavam alunos que elas achavam que eram agressores e vítimas, as professoras não conseguiam identificar o bullying de forma apropriada.

Observamos que as relações sociais vivenciadas pelos alunos entrevistados eram complexas e permeadas, segundo eles, de sentimentos como inveja e ciúmes e de comportamentos de bullying. Mencionaram que, na prática, recorriam aos adultos da escola (professora da turma e Olívia, em especial) para que conversassem com as crianças agressoras. Ressaltamos que as crianças equipararam, às vezes, “conversar” com “chamar a atenção” (ou brigar), o que, para elas, não resolveria muito a questão, e mencionaram várias estratégias para resolver casos de bullying, desde a imposição de regras e punições a conversas de fato (diálogos) entre as crianças em prol do desenvolvimento da empatia. As crianças entrevistadas, por fim, mencionaram nutrir carinho pelas professoras e por Olívia, avaliando-as como empenhadas na resolução do bullying por meio de conversas (“chamadas de atenção”) e ensinamento de regras. Praticamente não houve associação entre Olívia e Projeto Virtudes, encarado pelas crianças como mais uma estratégia de ensinamento de regras pela escola.

160

Documentos relacionados