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Compreende-se que este trabalho fornece subsídios para um debate sobre as questões concernentes ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de rua. Sendo assim, convém destacar, mais uma vez, o objetivo desta investigação, qual seja, analisar os serviços, programas e projetos voltados para crianças e adolescentes em situação de rua, no município de Natal/RN, no âmbito do Estado e do “terceiro setor”, a partir de um resgate histórico desde a promulgação do ECA. Salienta-se que o que foi apresentado e discutido neste trabalho é uma versão desta história, contada por alguns atores que fizeram e fazem parte desse processo. Diante desta proposta, verifica-se que a discussão sobre as inciativas interessantes e pontuais do “terceiro setor” e as práticas, muitas vezes, de violação de direitos por parte do Estado, apontadas pelo documento Diretrizes Nacionais para o Atendimento de Crianças e

Adolescentes em Situação de Rua (MDH, 2017), possui, de certa forma, respaldo no município

de Natal/RN. Identifica-se uma enorme preocupação em relação a essa população na fala de todos os entrevistados, sendo visível o engajamento e a vontade de atuar para que essas crianças e adolescentes superassem/superem a situação de rua. Contudo, muitos desafios se colocam ao longo desse processo.

O ECA teve a contribuição ativa do MNMMR, inclusive com a participação de meninos e de meninas do município de Natal/RN. Apesar das dificuldades encontradas ao longo do caminho – como a ausência do poder público para com essa população –, o trabalho desenvolvido por esse movimento social ainda reverbera na vida de quem foi menino e de quem foi menina do movimento. As ações de mobilização política e de construção de um protagonismo infanto-juvenil são grandes exemplos do que de fato significa compreender essa população como sujeito de direitos, cidadãos que merecem ser ouvidos, além de protegidos.

Utilizando-se da discussão implementada nos capítulos teóricos sobre o desenvolvimento das políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil, o que se constata novamente é que a história não acontece de maneira linear. Apesar da promulgação das normativas do ECA e do avanço que isso representou no país, ações de proteção integral e de violação aos direitos desse público se mesclam, de tal forma que o ECA ainda está bastante aquém de ser totalmente cumprido.

Possivelmente pela ausência de diretrizes definidas e de capacitações/formações realmente adequadas e continuadas, o Programa Canteiros desenvolveu algumas práticas não condizentes com o que vem sendo defendido desde as mobilizações sociais sobre os direitos de crianças e adolescentes que resultaram no ECA. Embora se valorize a realização de algumas atividades importantes do programa com essa população, outras foram imensamente violadoras. Em razão das orientações repassadas pela gestão de maneira vertical para os profissionais, práticas higienistas, de limpeza social e coercitivas foram efetuadas em nome da “proteção integral”.

O SEAS e o CnaR – embora este relate poucos atendimentos a essa população – têm tentado atuar de forma condizente com as normativas dos serviços, apesar de contarem com uma série de desafios advindos da ausência de suporte do próprio poder público – também ressaltado pelo MNMMR e pelo Canteiros –, dificultando a execução de serviços com mais qualidade. A deficiência na rede de atendimento se sobressaiu como uma grande dificuldade apontada pelos participantes da pesquisa, seja pelas lacunas que emergem da ausência de certos serviços no município, seja pelo preconceito de alguns profissionais de UBS ao lidar com a população em situação de rua, entre outros condicionantes.

A ESR – importante referencial teórico-metodológico utilizado com crianças e adolescentes em situação de rua – passou por um período de latência, ou seja, foi amplamente empregado em seu surgimento e, anos depois, teve pouca ou quase nenhuma repercussão,

tornando-se um desafio nos atendimentos a população infanto-juvenil em situação de rua no Brasil (Oliveira, 2010). Entretanto, nota-se um esforço de aproximação a esse referencial mais recentemente – vide algumas diretrizes semelhantes apontadas nos documentos oficiais do SEAS e do CnaR. Formações continuadas poderiam auxiliar a construção de interessantes estratégias de atuação. Ainda, como contribuição deste trabalho, ressalta-se que é válido refletir sobre as diferentes maneiras de aproximação a essa população, com a utilização de instrumentos lúdicos, garantindo vínculos de confiança entre as equipes e esses meninos e meninas. A forma como as relações são construídas tem um peso muito grande, e isso se constata na história do MNMMR.

Ademais, este trabalho aponta a necessidade de outros estudos para maior aprofundamento de certas questões. Pesquisou-se sobre a trajetória desse atendimento por meio do lugar dos serviços/programas/projetos que realizavam/realizam a abordagem de rua; no entanto, há de se problematizar também como as crianças e adolescentes em situação de rua compreendem e enxergam esses atendimentos. Outro aspecto interessante a ser analisado é a atuação de outros serviços com essa população, como os CREAS, as Unidades de Acolhimento Institucional e as escolas, para vislumbrar as práticas decorrentes dos encaminhamentos e articulações dos serviços de abordagem de rua. Além disso, é necessário mapear o perfil e o número desse público infanto-juvenil no estado. Cumpre destacar que o município de Natal/RN aprovou a realização de um censo sobre a população em situação de rua – ainda não concretizado –; deve-se questionar se as especificidades de crianças e adolescentes serão abarcadas na pesquisa ou somente o público adulto será alvo do estudo.

Crianças e adolescentes estão pelas ruas de Natal/RN, possivelmente ainda invisíveis para boa parte da população e também para alguns serviços, mas estão. O processo de

rualização, ou seja, a gradativa vinculação com a rua, é uma ação perigosa (Prates, Prates &

estar na rua, mais dificuldade se tem para sair dela. Como ressaltado pelos participantes da pesquisa, a maior parte das crianças e adolescentes em situação de rua em Natal/RN são aqueles que possuem famílias e domicílios, e que utilizam a rua para obtenção de renda e garantia do sustento de seus familiares. Assim, aponta-se a necessidade de urgência em refletir criticamente sobre as práticas que têm sido desenvolvidas e sobre novas estratégias de atuação para que essa população não venha a se vincular cada vez mais às ruas; e, ainda, para que alternativas ao estar nesses espaços sejam construídas, de fato, junto às crianças e aos adolescentes, garantindo também sua maior efetividade.

O país tem entrado em um processo de recrudescimento das sequelas da “Questão Social”, e o cenário que vem se construindo para o futuro é cada vez mais caótico. Para fins de exemplificação, uma declaração perigosa foi proferida pelo mais recente presidente eleito do país, em que revela que “o ECA deve ser rasgado e jogado na latrina”. É preocupante, é alarmante. São tempos sombrios que vêm se instaurando. De acordo com Cioccari e Persichetti (2018), Jair Bolsonaro apresenta uma agenda repressiva, permeada pela defesa da redução da maioridade penal, pela apologia explícita às armas, pelo enaltecimento ao militarismo, pelo corte expressivo em direitos sociais. Para além disto, apresenta envolvimento em casos de racismo, misoginia, homofobia amplamente divulgados pela imprensa. Seu discurso de ódio ataca a dignidade alheia, infringe direitos fundamentais e incita a violência contra grupos historicamente discriminados, podendo repercutir nas atuações com o público infanto-juvenil em situação de rua. Diante disto, quanto maior o retrocesso, maior deve ser a resistência.

Oliveira e Paiva (2016) destacam que, ainda que o modo de produção capitalista se utilize das políticas sociais para a sua reprodução, também é por meio delas que se vislumbra a melhoria das condições de vida da população atingida pela “Questão Social”. Urge lutar por uma maior atuação do Estado e pela efetivação das políticas sociais, uma vez que estas se apresentam como uma fase necessária do movimento de organização de classe e de tomada de

consciência. Como ressaltado anteriormente, a resistência frente à falência do Estado deve ser o mote daqueles que atuam na defesa de direitos de crianças e adolescentes e que lutam para que essa população seja protegida e ouvida, garantindo o seu desenvolvimento pleno e saudável.