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4. Apresentação e discussão dos resultados

4.2.4. Relação estabelecida com o público atendido

Optou-se por inserir este ponto de discussão na categoria de análise Referenciais

teórico-metodológicos por se compreender que a relação dos profissionais com a população

infanto-juvenil em situação de rua emerge como reflexo da fundamentação que rege seu trabalho, estando atrelada à própria concepção/entendimento sobre quem vem a ser esse público. Mais uma vez, o que se percebe é que o MNMMR apresenta falas que traduzem uma relação de respeito, de preocupação em construir um vínculo afetivo e de igualdade entre os meninos e os educadores:

A gente não chegava como o dono do saber, ou conhecedor de tudo, a gente aprendia mais do que ensinava. A verdade é essa! (MNMMR1)

Então, eu acho que a gente aprendeu mais com os meninos do que na faculdade. (MNMMR2) O mais importante desse vínculo era a gente dar responsabilidade. “Ela acredita em mim! Olhe! Eu só estou aqui porque ela acredita em mim! Porque ela sabe que eu sei fazer!”. (MNMMR2)

Esse vínculo afetivo, por vezes, transpassava a relação que se tinha com a criança ou adolescente e chegava até às famílias dessa população:

Agora, muitas vezes a gente ia atrás da história. “Tem casa? Tem. Opa! Então, vamos lá conhecer a mãe, vamos conhecer o pai, vamos conhecer a história!”. Então, era mais prático até para a gente conversar com o menino quando nós conhecíamos a história dele. E eles tinham prazer de chegar em casa, os que tinham casa, e dizer “Olhe! Esse é o educador do Movimento, essa é a educadora do Movimento, né?”. E a gente cresce nessa questão, a gente cresce e cresce muito aqui no estado. (MNMMR1)

Segundo documento do UNICEF (1989), o educador de rua deve construir uma relação de respeito com as crianças e os adolescentes, e não de repressão. Deve também estabelecer que essa relação seja de troca entre ambos, reconhecendo e descobrindo novos valores e novas perspectivas de vida com a população infanto-juvenil em situação de rua. Dito isto, percebe-se que os participantes do MNMMR se espelhavam nesses fundamentos para estabelecer relações de afeto e de reconhecimento do potencial das crianças e dos adolescentes, possibilitando o fortalecimento da autoestima dessa população tão violada.

Além disso, é evidente nas falas dos entrevistados que a população atendida se espelhava nos educadores e almejava desempenhar as mesmas funções que eles. Outro fato interessante é que muitas das relações ainda permanecem no contexto atual, demonstrando o peso e a importância que o Movimento teve na vida dessas crianças e adolescentes e a implicação dessa atuação para a construção de projetos de vida alternativos ao estar na rua. Sobre isto, compreende-se que o MNMMR possibilitava a organização dos meninos em um processo emancipatório, contribuindo para a construção de projetos de vida e inserção crítica e consciente na sociedade (MNMMR, 1995).

Porque eles faziam questão de aprender para ser você. Isso, para a gente, qualificava muito. Ora, se ele está aprendendo o que eu faço para ser, significa que é um processo construtivo, não destrutivo, né? Na hora que você vê que está crescendo, aí, você vê que ele se envolveu, que ele se comprometeu. (MNMMR2)

Hoje, tem menino que diz: “Olhe! Eu trouxe meu filho para ele conhecer você!”. Quer dizer, eu fiquei na história dele e agora ele quer dizer para o filho que seja como ele, né? Eu acho tão interessante! [...] Isso para a gente não tem preço. Quer dizer, eu cuidei de você e agora ele está mostrando do que ele foi capaz. (MNMMR2)

Quando analisada a relação estabelecida com o público-alvo a partir da perspectiva dos entrevistados do Programa Canteiros, do SEAS e do CnaR, nota-se certa semelhança nos conteúdos trazidos, em especial quando os entrevistados citam a questão da resistência de

algumas crianças e adolescentes em possibilitar uma aproximação dos profissionais, seja pelo efeito do uso prejudicial da droga, agindo de maneira agressiva, seja pelo medo, uma vez que o Programa Canteiros atuava com a retirada dessa população das ruas. Além disso, uma vez que este programa possuía o acompanhamento da Guarda Municipal, essa questão também afetava a construção de vínculos com os profissionais.

As drogas, né? Então, isso atrapalhava muito e oferecia muita resistência para eles virem com a gente. (Canteiros2)

Crianças, quando é a primeira vez, principalmente, elas ficam com muito medo. [...] E o pessoal se assustava bastante. O choro da criança, o escândalo. Que eles davam escândalo mesmo! [...] [E a Guarda Municipal] gerava um certo constrangimento, principalmente para as famílias, né? Para as mães: “A gente não é ladrão para estar com a polícia aqui por perto, né?” (Canteiros1)

Tem algumas crianças que a gente não consegue. Não sei qual é o motivo! Toda vez que nossa equipe se aproxima, eles correm. Então, há esses casos, principalmente crianças e adolescentes, acredito que há algo familiar, pela história de você retirar as crianças e você levar para casa, né? Da retirada mesmo. Eu acho que eles têm medo da nossa equipe. Então, assim, desde janeiro para cá, a nossa equipe não consegue se aproximar de algumas crianças e adolescentes. Ou porque eles fogem ou porque eles acabam sendo agressivos, né? Pelo medo; a autoproteção mesmo. (SEAS2)

A gente foi fazer uma busca ativa. Aí, a gente parou no sinal, e tinha um adolescente e tinha uma mulher e um pai, né? Essa família: “Não! Não! Olhe! Ela é minha filha! Ninguém vai levar ela!”. (CnaR2)

Por meio das falas sobre o Programa Canteiros, o que se percebe é uma confirmação do que vem sendo discutido nas Diretrizes Nacionais para o Atendimento de Crianças e

Adolescentes em Situação de Rua (MDH, 2017), uma vez que o poder público, muitas vezes,

atua de maneira até mais violadora do que garantidora de direitos, com ações, inclusive, de caráter policialesco voltado para essa população, praticadas pelo Estado. Com este tipo de

atuação, é difícil estabelecer relações de confiança, culminando em muita resistência por parte desse público infanto-juvenil. A partir das falas de SEAS2 e de CnaR2, também se formula o entendimento de que o Programa Canteiros, possivelmente, deixou algumas marcas que ainda reverberam no município de Natal/RN, dificultando a aproximação dos serviços com alguns grupos.

Além da resistência, as entrevistadas do SEAS também citaram outra questão muito grave: as ameaças à equipe cometidas por adultos que lideram grupos de crianças em situação de rua, dificultando a realização do trabalho e a proteção social do público infanto-juvenil, e proporcionando insegurança para os profissionais.

Havia equipe com outro profissional e outras equipes que já sofreram ameaças, porque, muitas vezes, tem um adulto que não quer que se rompa aquela situação do trabalho infantil. (SEAS2)

A insegurança também é pontuada na pesquisa de Santana (2003), quando um dos entrevistados comenta a relação que a instituição estabelece com a rua na prática com crianças e adolescentes. Há certa angústia desse profissional, que se encontra desprotegido e desamparado em situações de violência. Diante disto, percebe-se que quando se atua com populações com direitos violados, por vezes, essa atuação se estende aos próprios violadores em uma tentativa de romper o ciclo de violência. Nesse sentido, não é de se surpreender que os profissionais estejam, muitas vezes, em situações de risco. A equipe acaba tendo que construir coletivamente estratégias para garantir sua segurança.

É interessante pontuar também que a construção de vínculos que se consegue estabelecer com alguns usuários, tanto no Programa Canteiros como no SEAS, possivelmente, ocorre mais pela recorrência nos encontros com as equipes do que por uma afinidade ou identificação com o profissional ou laço de confiança construído. No tocante ao CnaR, os

entrevistados relataram poucas situações de construção de vínculos especificamente com crianças e adolescentes em situação de rua, sendo mais frequente com população adulta.

O vínculo que a gente criava era devido à reincidência deles, que eles já conheciam “Tia, de novo, tia? O vínculo que a gente criava era esse. (Canteiros2)

O vínculo existia, tanto o vínculo positivo por alguns educadores, quanto o vínculo um pouco mais negativo, exatamente de alguns mais truculentos que chegavam para fazer essa abordagem. (Canteiros1)

Apesar de eles nos reconhecerem, porque são muito recorrentes nos sinais e tal, mas a gente não tem tanta essa aproximação, assim. Mas conhecemos por nomes, conversamos com eles usando os nomes deles mesmo, muitos nos atendem, nos recebem tranquilamente bem. (SEAS1)

A gente teve situações pontuais apenas. Nosso público realmente é adulto e idoso. (CnaR1) Santana, Doninelli, Frosi e Koller (2005) revelaram em uma pesquisa com crianças e adolescentes em situação de rua que muitos profissionais são vistos como referência para essa população, desvelando o peso e a importância que esses funcionários podem ter na vida desse público e como pode ser potente a relação estabelecida entre ambos. Sendo assim, a ausência de uma vinculação ou aproximação maior com as crianças e adolescentes em situação de rua, apontadas em algumas falas acima, pode trazer dificuldades para o efetivo exercício das atividades, bem como para a construção de projetos de vida alternativos ao estar na rua. Acredita-se que o estabelecimento de vínculos com os usuários não se configura como único meio para a superação da violação de direito deste, no entanto, compreende-se como um processo importante do atendimento.