• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo retomamos a formulação de problemas desta pesquisa e apresentamos algumas conclusões a partir da análise dos dados. Fazemos considerações sobre as implicações da pesquisa para o campo da Educação de Jovens e Adultos no que diz respeito à pesquisa e às propostas pedagógicas.

O objetivo descrito nesta pesquisa foi a investigação dos processos de elaboração conceitual, pelos estudantes, no campo da ótica elementar durante as interações discursivas na sala de aula de Física. Por isso, buscamos examinar a produção e circulação de sentidos atribuídos pelos estudantes nas interações discursivas na sala de aula. O indicador que nos permitiu avançar nessa direção foi a análise das produções discursivas dos estudantes nos momentos de interação com o professor e com os pares, nos pequenos grupos, de modo a identificarmos como a linguagem científica escolar se manifesta nas produções orais e escritas dos estudantes, e como esta se relaciona com a linguagem cotidiana. Destacamos, também, as intervenções e ações do professor que possibilitaram a participação mais ativa dos estudantes nas interações em sala de aula.

Nossos resultados evidenciam que os estudantes que participam mais ativamente nas interações discursivas, nos episódios de ensino analisados, caminham em direção a uma aquisição do domínio do modelo de luz e visão e de alguns conceitos da óptica elementar. Os dados mostram que alguns desses estudantes conseguem operar com os conceitos ensinados – raio de luz, propagação da luz, reflexão da luz e o modelo de luz e visão – com relativo sucesso, valendo-se de conceitos científicos para justificar seus pontos de vista e interpretar situações e experimentos realizados pelo professor. Particularmente no caso de dois estudantes (Cássio e Marilena), os resultados revelam um processo de tomada consciência de seus modos de pensar sobre

o modelo de luz e visão, uma vez que eles próprios comparam os sentidos que vão atribuindo aos conceitos ensinados pelo professor com suas próprias concepções durante as situações de ensino-aprendizagem que são estabelecidas nas interações discursivas.

O material empírico também mostra várias concepções espontâneas dos estudantes sobre óptica elementar, semelhantes àquelas descritas na literatura (GICOREANO & PACCA, 2001; MATOS & PACCA, 2005). Esses conceitos espontâneos, formados durante a vida não-escolar do sujeito em suas experiências pessoais, desenvolvem-se sob condições internas e externas diferentes dos conceitos científicos. Segundo Vygotsky (1934/1995; 1982) os conceitos espontâneos marcam uma trajetória para os conceitos científicos. Entretanto, isso não significa que estes trilham o caminho daqueles na formação de conceitos. Os conceitos espontâneos não levam o indivíduo aos conceitos científicos. Os conceitos científicos são aprendidos na escola durante atividades intencionais e se formam nas relações do sujeito com o objeto do saber, mediadas por outros conceitos (op. cit.), que podem ser até mesmos os conceitos espontâneos, uma vez que a noção de um conceito científico adquirida pelo sujeito aprendiz, como argumenta Vygotsky (ibidem), implica determinada posição em relação a outros conceitos. De acordo com esse ponto de vista sobre a aprendizagem dos conceitos, a expressão de um conceito espontâneo pelo estudante, verbalizada na interação discursiva na sala de aula de ciências, só pode favorecer a aprendizagem dos conceitos científicos quando utilizada como objeto de mediação na relação do estudante com o conceito científico escolar. Desse modo, os estudantes podem contrastar seus pontos de vista pessoais com os da ciência escolar e construir sentidos sobre os conceitos científicos postos em circulação nas interações discursivas na sala de aula de ciência.

Nossa pesquisa assume essa hipótese como verossímil, pois mostra que a tomada de consciência pelos estudantes, dos próprios modos de pensar,

CAPÍTULO 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 154

é possível quando essas concepções são utilizadas como objeto de mediação na relação com o conhecimento científico escolar (como no caso dos estudantes Cássio e Marilena, nos episódios 1 e 2), e quando contrastadas (para estabelecer diferenças) com os conceitos do modelo teórico da ciência escolar. Esse contraste conduz a uma mudança na estrutura psicológica do conceito espontâneo, uma vez que o estudante assume uma nova posição em relação aos seus próprios modos de pensar sobre o mesmo tema/objeto. Tal mudança na estrutura psicológica dos sujeitos sobre determinados conceitos é prenhe da aquisição de novas zonas de perfil conceitual (MORTIMER, 2000; MORTIMER, STOOT & EL-HANI, 2009). Esse processo não culmina na escolarização dos sujeitos, mas apenas começa ali.

Sobre as relações que os estudantes jovens e adultos estabelecem com o discurso científico escolar, nossos resultados mostram que as relações estabelecidas pelos estudantes entre suas “palavras próprias” e as “palavras alheias” da ciência escolar foram predominantemente de entrelaçamento. Tanto nas interações discursivas em sala de aula como nas produções escritas, outras “vozes” apareceram incorporadas, como “ecos”, nos enunciados dos estudantes.

As relações de entrelaçamento entre os próprios modos de falar e os modos de dizer da ciência nos pareceram mais favoráveis para examinar o processo de conceituação pelos estudantes, uma vez que a “voz” do professor e da ciência escolar é (re)significada na perspectiva individual do estudante ao produzir suas asserções. Esse modo de relação caracteriza-se como uma atividade responsiva (BAKHTIN, 1953/1997; FONTANA, 1996) na qual os estudantes procuraram convergir seus conceitos espontâneos, forjados na sua experiência pessoal, com os conceitos científicos introduzidos nas relações de ensino-aprendizagem. Essa conclusão está em acordo com a proposição de Vygotsky (1982) segundo a qual o aprendizado ocorre primeiro no nível

Interpessoal (entre pessoas em interação) para depois ocorrer no nível intrapessoal (ao nível do indivíduo).

Nas relações de assentimento observadas nos enunciados dos estudantes, não há marcas de individualização e entonação próprias, e a “voz” do professor é citada na sua integridade, como um bloco homogêneo, quase como um processo de imitação. Embora a posição do sujeito seja mais passiva no assentimento, esse tipo de relação marca um aspecto não menos importante que os entrelaçamentos nos processos de aprendizagem dos estudantes, pois ao assentir ao discurso do professor, por convicção ou vontade, os estudantes estabelecem contato, em algum nível, com os padrões gerais da cultura escolar, cujas ferramentas culturais eles ainda não dominam de forma autônoma, mas cujo domínio só é possível mediante sua utilização em contextos e tarefas relevantes.

As relações de questionamento e indiferença não foram evidenciadas nas produções discursivas dos estudantes. Atribuímos duas razões à aparente ausência desses modos de relação. A primeira se refere à relação interpessoal entre o professor e alunos: os estudantes tinham um bom relacionamento com o professor e declaravam gostar das aulas de Física, que lhes gerava certa expectativa. Isso era notório nos comentários de vários estudantes durante as aulas. A segunda razão se refere à relação institucional entre estudantes e escola: por ser a escola o espaço social privilegiado para a aprendizagem formal e legitimado pelos estudantes da EJA como tal, essas sujeitos se postam nas relações de ensino-aprendizagem na busca de um compartilhamento com o discurso escolar e ao produzirem seus enunciados na sala de aula de ciências, principalmente por escrito, tendem a ajustar seu discurso ao discurso do professor e da ciência escolar.

O que dizer dos outros estudantes que não participaram verbalmente nas interações discursivas? Os modos de relação que descrevemos (assentimento, entrelaçamento, questionamento e indiferença) são tipos de

CAPÍTULO 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 156

relação que caracterizam determinadas atividades responsivas, e nos permitem analisar aquilo que é dizível em sala de aula. Mesmo aquele estudante que não diz nada está em interação na sala de aula e assume uma atividade responsiva em relação ao discurso do professor e da ciência escolar, mas não possíveis de análise por meio das categorias que descrevemos.

A predominância de relações de entrelaçamentos estabelecidas pelos estudantes com o discurso científico escolar, em detrimento do assentimento ou da indiferença, foi favorecida pela abordagem e ambiente de aprendizagem construído pelo professor, cuja ação docente foi caracterizada como sustentação da produção discursiva dos estudantes na sala de aula. A análise das abordagens comunicativas (MORTIMER & SCOTT, 2003) nos permitiu marcar e caracterizar as estratégias utilizadas pelo professor no sentido de encorajar e sustentar a participação dos estudantes no discurso em circulação na sala de aula, de modo que os estudantes se sentiram encorajados a expor seus pontos de vista, posicionando-se em relação aos enunciados dos colegas nas situações argumentativas favorecidas pela abordagem e ações do professor em sala de aula – escuta atenta às falas dos estudantes, reconhecimento e referencialidade à autoria das contribuições dos alunos e a devolução dessas contribuições, o compartilhamento dos significados atribuídos pelos estudantes e o encorajamento da participação de toda a classe em relação às assertivas dos colegas.

Consideramos fundamental para nossos interesses de pesquisa a abordagem comunicativa que o professor desta pesquisa utiliza nas interações discursivas na sala de aula – prática que não é predominante nas salas de aula de ciências. A escuta atenta do professor aos enunciados dos estudantes, o gerenciamento das participações dos estudantes, o cuidado ao referenciar as falas dos estudantes incorporadas em seus enunciados, a busca de evidências compartilhadas, a devolução de enunciados produzidos por estudantes para avaliação e elaboração por parte dos colegas foram fatores fundamentais para

a sustentação da produção discursiva dos estudantes. Entendemos que, ao fazê-lo, o professor reconhece nos estudantes sujeitos capazes de produzir, avaliar e transformar conhecimentos.

Concordamos com Fonseca (2006) que as situações de ensino- aprendizagem nas experiências de educação, particularmente educação em ciências, na EJA se realizam de modo privilegiado nas interações discursivas. É na interação discursiva que os sujeitos educandos têm oportunidade de se postarem como sujeitos, uma vez que a trama de enunciações convoca esses sujeitos a assumirem posições. É na interação discursiva na sala de aula que os significados são compartilhados por meio da linguagem e de outros modos de comunicação, de modo que os sujeitos podem se apropriar aos poucos da linguagem científica e construírem sentidos a partir dos modos de conhecer e de falar da ciência escolar, que ainda não dominam de forma autônoma e ao qual dificilmente teriam acesso fora do espaço social da sala de aula de ciências.

Sobre as implicações desta pesquisa, consideramos que ela dá mais um passo para o diálogo e a aproximação entre o campo da Educação em Ciências e o campo da Educação de Jovens e Adultos, principalmente no que se refere às pesquisas no campo da linguagem e cognição. Outras implicações desta pesquisa se referem ao ensino de ciências na EJA e à formação de professores de ciências para essa modalidade de educação. Acreditamos que os resultados desta pesquisa possam subsidiar propostas de formação de professores (formação inicial ou em serviço) para promover discussões e o pensar sobre atividades, intervenções didáticas e as abordagens do professor de ciências na sala de modo favorecer a participação dos estudantes, principalmente jovens e adultos da EJA, e engajá-los nas situações de ensino- aprendizagem.