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CAPÍTULO 4. RESULTADOS, ANÁLISES E DISCUSSÃO

4.8. Marcas da linguagem científica escolar nas produções escritas dos estudantes

4.8.3. Linguagem científica e linguagem cotidiana

Nesta seção fazemos considerações sobre características da linguagem científica e da linguagem cotidiana. Apresentamos exemplos representativos de enunciados marcados por recursos da oralidade e os comparamos com enunciados analisados nas seções anteriores nos quais há marcas da linguagem científica escolar.

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A linguagem científica tem características peculiares que a distinguem da linguagem cotidiana. Uma dessas características, além das descritas anteriormente, é o uso de processos nominalizados que conferem alta densidade léxica ao discurso científico (HALLIDAY, 1993, apud HALIDAY & MARTIN, 1993). A linguagem científica é estrutural (MORTIMER, CHAGAS & ALVARENGA, 1998), no sentido de que os eventos e processos apresentam- se como grupos nominais ligados por verbos de relação, e não como acontecimentos narrados numa sequência linear como na linguagem cotidiana. Na linguagem científica, as entidades físicas (luz, raio, etc.) ou processos nominalizados (reflexão, emissão, absorção, etc.) é que exercem a função de sujeitos, ligados aos predicados por verbos de relação e/ou por conjunções que expressam relações causais (op. cit.), e não por verbos que expressam ação.

Na linguagem oral que permeia a vida cotidiana “as frases são impelidas por um determinado motivo que conduzem aos pedidos; as perguntas arrastam consigo as respostas e o espanto leva à explicação” (VYGOTSKY, 1982). Vygotsky (ibidem) argumenta que a linguagem escrita tem características distintivas, pois o contexto da recepção não é dado, sendo necessário para o locutor recriar uma situação para si mesmo e para os outros, destinatários do discurso, e isso confere à linguagem escrita características que a diferem da linguagem cotidiana, por ser linguisticamente mais marcada pela falta do contexto face a face.

Muitos textos produzidos ao longo das tarefas do curso apresentam marcas de oralidade que indicam uma dificuldade na apropriação, pelos estudantes, da estrutura peculiar da linguagem escrita. Os próximos enunciados são exemplos representativos das produções escritas dos estudantes marcadas pela linguagem cotidiana e pela presença de recursos da oralidade.

“Podemos dizer que a opção 2 também está errada pois afirma totalmente o contrário da opção que escolhemos como a

correta, primeiro a luz bate no objeto e depois é refletida no olho” (3º enunciado do Grupo 2).

“E o modelo 4. Porque tem tudo haver com as experiências que fizemos na sala de aula” (1º enunciado do Grupo 3).

“Não concordamos com a experiência do menino, porque é certo dizer que. Por exemplo pegamos uma lanterna e direcionamos os raios de luz em um determinado objeto e assim o enxergamos mesmo nós estando no escuro” (4º enunciado do Grupo 4).

O 3º enunciado do Grupo 2 apresenta uma sequência linear de acontecimentos, na qual o narrador (primeira pessoa do plural), que executa as ações não parece recriar a situação para os outros (destinatários do seu enunciado). O argumento do grupo – “(...) a opção 2 (...) está errada pois afirma totalmente o contrário da opção que escolhemos como a correta (...)” – supõe que os destinatários do discurso já conheçam o contexto do enunciação e a opção considerada correta pelo grupo. Como apontamos, essa linearidade é característica da linguagem oral.

Notamos concepções espontâneas ao final do enunciado do Grupo 2. As expressões “a luz bate no objeto” e “é refletida no olho” revelam modos de dizer da linguagem cotidiana e uma concepção na qual a luz seria como uma propriedade materializada que „reflete‟ no olho, como se „refletir no olho‟ designasse uma propriedade do olho de registrar o objeto visto (MATTOS & PACCA, 2005), ou seja, a luz “refletida no olho” revela ou traduz a imagem de um objeto para o observador.

O 1º enunciado do Grupo 3 é um exemplo que se aproxima muito da linguagem oral, pois a resposta dada pelo grupo arrasta consigo a pergunta e as situações vivenciadas em sala de aula. O enunciado não evidencia que o narrador (primeira pessoa do plural) tenha recriado para si e para outros a situação contextual que requer a resposta. Antes, a oração mais parece um

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turno de fala durante uma dinâmica discursiva numa situação em que os interlocutores utilizam a linguagem oral.

No 4º enunciado do Grupo 4, o exemplo relatado pelo narrador (primeira pessoa do plural) revela uma ordem sequencial dos eventos. O enunciado mostra a dificuldade dos estudantes do Grupo 4 em lidar com o texto escrito, com forte presença da oralidade, como nos trechos – “(...) porque é certo dizer que. Por exemplo pegamos uma lanterna (...)” e “(...) assim o enxergamos mesmo nós estando no escuro”. Há apenas uma expressão do léxico científico (raios de luz) no enunciado, que é todo marcado pela linguagem cotidiana.

As marcas de oralidade presentes nesses enunciados revelam lacunas para além da linguagem científica escolar, uma vez que sugerem problemas na apropriação dos códigos específicos da linguagem escrita para expressar idéias.

Diferentemente desses três últimos enunciados (exemplos de linguagem cotidiana), os enunciados que analisamos nas seções 4.8.1 e 4.8.2 apresentam elementos que caracterizam a linguagem científica escolar, como identificamos anteriormente: utilização de categorizações e relações de causalidade com estrutura do tipo “se... então...” (ver seção 4.8.1); utilização de discurso argumentativo (ver seção 4.8.2) com contraposição de idéias e justificativas recíprocas, presença de relações causais e relação entre referentes empíricos e teóricos. Outra característica da linguagem científica presente nos enunciados dos estudantes é a densidade léxica (HALLIDAY, 1993, apud HALLIDAY & MARTIN, 1993) relativamente maior. Para comparação, selecionamos os seguintes enunciados que são assertivas contra o modelo 2: “O olho é iluminado e não luminoso, ele não emite luz e sim recebe. Ex: Enxergamos as estrelas porque elas possuem luz própria” (3º enunciado do Grupo 5); e “Podemos dizer que a opção 2 também está errada pois afirma totalmente o contrário da opção que escolhemos como a correta, primeiro a luz bate no objeto e depois é refletida no olho” (3º enunciado do Grupo 2).

Comparando esses enunciados, observamos que o Grupo 3 utiliza mais termos científicos do que o Grupo 2. Entretanto, os sentidos das expressões utilizadas pelo Grupo 3 são aqueles compartilhados em sala de aula nas situações de ensino – objetos iluminados recebem luz; objetos luminosos emitem luz –, ao passo que os sentidos das expressões utilizadas pelo Grupo 2 são aqueles atribuídos a partir do conhecimento cotidiano – a luz como algo materializado que „bate no objeto‟ e que é „refletida no olho‟, como algo que revela/imprime a imagem do objeto no olho do observador.

A utilização da linguagem científica escolar pelos estudantes nas produções escritas dos grupos evidencia aspectos importantes sobre a construção de sentidos pelos estudantes, pois é na interação entre os estudantes (atividade interpessoal) que as idéias são exploradas e é nesse espaço de interação sócio-discursiva que os sentidos individuais são construídos por cada interlocutor sobre o discurso em circulação. Esse processo potencializa a apreensão da linguagem científica escolar pelos estudantes, pois os sentidos compartilhados na interação interpessoal vão sendo apropriados ao nível intrapessoal (VYGOTSKY, 1982).

As análises das produções escritas dos grupos revelam como os sentidos em circulação na sala de aula foram compartilhados pelos estudantes no espaço social da sala de aula de ciências, por meio da utilização da linguagem como instrumento mediador. A interação discursiva no contexto de uma atividade argumentativa permitiu o engajamento dos estudantes na atividade em grupo. Isso é evidenciado nos enunciados proferidos pelos estudantes (i) pelas relações de assentimento e, principalmente, de entrelaçamento entre seus modos de dizer e as “palavras alheias” da ciência escolar, e (ii) pelas marcas da linguagem científica nas suas produções escritas.