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CAPÍTULO 4. RESULTADOS, ANÁLISES E DISCUSSÃO

4.2. Episódio 2 – Enxergamos os objetos no escuro?

Quadro 7: Descrição do Episódio 2 ocorrido no Evento 2.3

Tema Luz e visão

Fase da atividade Correção da atividade do encontro anterior sobre objetos luminosos e iluminados e o processo de visão

Formas de interação Professor – classe Formas de

organização da classe

Professor de frente para classe e estudantes sentados nas carteiras em fileiras.

Ações do professor

 Faz perguntas aos estudantes se é possível enxergar objetos no escuro;

 Avalia as respostas dos estudantes;

 Desenvolve explicações sobre o modelo de luz e visão.

Ações e participação

dos estudantes Respondem às perguntas do professor.

O Episódio 2 tem 32 turnos de fala e duração de 1min52seg. Esse episódio se dá após discussões na sala de aula sobre o processo de luz e visão que levam o professor a retomar a discussão ocorrida no Episódio 1 sobre o modelo de luz e visão.

Durante o segundo encontro da sequência de ensino, o professor explica um pouco sobre modelo de luz e visão e, ao corrigir alguns exercícios sobre objetos luminosos e iluminados, ele pergunta se faz diferença, no processo que existe entre objeto e os olhos de quem o vê, se o objeto é luminoso ou iluminado. Alguns estudantes respondem afirmativamente e procuram justificar suas respostas. O professor faz avaliações e reformula a pergunta, considerando que os estudantes não a tinham compreendido. Em seguida, ele faz avaliações e finaliza a correção do exercício com explicações do modelo de luz e visão. Em seguida dá-se início ao Episódio 2.

Quadro 8: Transcrição do Episódio 2 – Enxergamos os objetos no escuro?

Turnos de fala Comentários contextuais T1 Professor: É/ Uma outra coisa aí que eu

vou// Agora eu vou colocar uma pergunta pra vocês aí que ficou da aula passada e tem a ver com isso que eu coloquei agora/

T2 Professor: Imagina o seguinte/ Nós estamos nessa sala aqui/ e aí eu/ tampo ali com tijolo aquela/ aquela janela/ essa janela/ essas duas aqui e tampo a porta/ Quanto eu apago a luz será que a gente consegue enxergar alguma coisa?

T3 Estudantes Não

T4 Cássio Não/ Imediatamente não

T5 Professor: Não/ Depois de um tempo/ Posso demorar um minuto lá

T6 Estudantes Consegue

T7 Professor: Consigo?

T8 Cássio Alguma coisa enxerga

T9 Marilena Não vai conseguir porque ele está tudo/ [ (inaudível)

T10 Cássio Não tem luz né?/ Entendi T11 Marilena Fechou tudo/

T12 Professor: Não/ Espera aí/ Então/ vai ou não vai? A/ a/ a Marilena está dizendo que não enxerga

T13 Cássio Não enxerga

T14 Elicarlos Consegue ué/

T15 Lúcio Eu acho que consegue

T16 Professor: Não/ A sala tá toda fechada T17 Marilena Toda lacrada/ toda lacrada T18 Cássio Não enxerga/ Não enxerga/

Não enxerga

T19 Elicarlos Mesmo sem reflexo enxerga

T20 Cássio Não enxerga

T21 Professor: Por que Elicarlos?

T22 Elicarlos Porque o olho acostuma com o escuro a/ [ a retina T10 - O aluno Cássio se dirige à colega, Marilena. T15 - Várias falas ao mesmo tempo.

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T23 Marilena Mas e aquela questão

(inaudível) colocação na aula passada?

T24 Professor: Uma das coisas que a gente viu lá/ que a gente discutiu na aula passada é que quando você está no escuro a sua pupila dilata/ Alguém fez isso em casa lá?

T25 Professor: Olha só/ Elicarlos/ O negócio é o seguinte/ O quê que a gente tem que ver? Pra você

enxergar qualquer coisa é preciso que você tenha o quê?

T26 Aluna Claridade/ Luz

T27 Cássio Enxerga não uai/ Se não tiver luz como é que/

T28 Professor: Se não houver luz você não vai enxergar/ Se você tampou tudo/ é verdade que o seu olho/ a sua pupila vai abrir ao máximo/ Mas está chegando luz na sua pupila se está tudo fechado?

T29 Cássio Não

T30 Professor: Não está chegando/ Então você vai enxergar alguma coisa?

T31 Marilena A pupila não vai dilatar né? T32 Professor: Então/ na verdade/ né?/ é o

que a Marilena coloca aí/ Se eu não tenho luz vinda de lugar nenhum não faz sentido você enxergar/ A gente enxerga aqui/ se a gente apagar/ porque mesmo com a janela fechada/ com a cortina fechada/ sempre passa um pouco de luz/ Mas se no caso está tudo tampado é sem chance/ Está certo?

T23 - Várias falas ao mesmo tempo após fala da Marilena T24 - O professor refere-se à atividade marcada para casa de olhar para o espelho, em diferentes condições de iluminação, para se observar a pupila dilatando-se e contraindo-se.

No início do Episódio 2 o professor não faz avaliações e o discurso inicial em sala de aula é interativo e dialógico (MORTIMER & SCOTT, 2003). A resposta de Cássio (T4) faz o professor dar um prosseguimento na pergunta inicial, o que desencadeia as interações seguintes, na qual várias soluções são apresentadas pelos estudantes e acolhidas pelo professor. No turno 12, o professor contrasta o ponto de vista de Marilena com as interpretações de seus colegas. Esse discurso dialógico prossegue até o turno 25, que é um ponto de transição entre o discurso dialógico e o de autoridade (MORTIMER & SCOTT, 2003). A partir de então, o professor começa a fechar o discurso, dando “voz” apenas à explicação mais próxima ao ponto de vista da ciência escolar, e encerra o episódio com uma síntese final – discurso interativo de autoridade – nos turnos 28 e 32.

Ao tentar responder à pergunta colocada pelo professor, vários estudantes o fazem com base em suas próprias práticas de referência. As respostas dos estudantes Cássio (T4 e T8) e Elicarlos (T14; T19 e T22) são evidências do “real” colocado como um obstáculo à formação de “possíveis”. Muito provavelmente esses estudantes nunca haviam experimentado uma situação de completa ausência de luz, e o ambiente mais escuro que possam ter estado não correspondia, provavelmente, à condição de completa escuridão sugerida pelo professor. E para construírem um “possível cognitivo” (pensar em possíveis a partir do modelo científico sobre a luz e visão) é necessário que os sujeitos se desprendam de uma indiferenciação inicial entre o real, o possível e o necessário (PIAGET, 1985). Segundo Piaget

para atingir novos possíveis, não é suficiente imaginar processos que visam a um objetivo qualquer (com otimização ou redução a uma busca de variações): resta a compensar essa forma efetiva ou virtual de perturbação que é a resistência do real quando concebido como “pseudonecessário” (op. cit., p.10).

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Particularmente no caso de Cássio, uma construção de um “possível” parece ocorrer. De fato, após mencionar situações vivenciadas (T4 e T8), o estudante parece ser convencido pelo argumento da colega Marilena (T10), que se baseia em um possível imaginado, forjado a partir das premissas teóricas do modelo. Vemos, a partir de então, Cássio afirmar categoricamente que não é possível enxergar no escuro e justifica essa impossibilidade teórica no turno 27. O estudante parece compensar a perturbação do real por um reconhecimento do poder de generalização do modelo teórico de luz e visão quando este é contrastado com o seu ponto de vista pessoal.

A tomada de consciência do conflito a superar (AGUIAR & MORTIMER, 2005) e sua aparente superação, são forjadas na interação com colegas e professor, no ambiente cultural da sala de aula. Ao que parece, o aluno (re)significa sua concepção quando passa a ter um olhar mediado por um modelo teórico que lhe permite conceber o real a partir dos possíveis: se enxergo um pouco é porque ainda tem luz difusa no ambiente; se demoro a enxergar é porque minha pupila se dilata até que a intensidade luminosa permita excitar minha retina.

Também no caso de Marilena isso é particularmente interessante. No turno 23, essa aluna apela para um episódio ocorrido na aula anterior. Dado o contexto, Marilena parece se referir ao Episódio 1 do primeiro encontro quando, ao discutir as respostas de uma das questões da atividade diagnóstica, o professor considerara três pontos de vistas sugeridos pelos estudantes para explicar como a luz nos permite ver os objetos. Na ocasião a estudante Marilena assumira e defendera um modelo segundo o qual, para enxergar os objetos, a luz teria que iluminar primeiramente os olhos do observador e depois atingir os objetos. Essa concepção da estudante se assemelha à concepção espontânea do “raio visual” descrita na literatura (GICOREANO & PACCA, 2001). De acordo com a concepção do “raio visual” a visão de um objeto ocorre quando a luz sai do olho até o objeto para captá-lo. As falas da estudante, nos

turnos 13 e 19 do Episódio 1, em resposta aos enunciados anteriores, mostram claramente sua concepção espontânea sobre luz e visão (também nos turnos 24, 26, 30, 32 e 34 do Episódio 1). No Episódio 1, a explicação de Marilena é avaliada e confrontada pelo professor (T131 e T132) numa estratégia retórica que procura demonstrar que as idéias da estudantes não são suficientes para explicar como o Chico Bento vê a flor na situação ilustrada no segundo desenho (ver comentário contextual do 101 do Episódio 1). Diante da enunciação do professor, a aluna Marinela se posiciona pessoalmente e tentando se justificar, adere momentaneamente à explicação proposta pelo colega Elicarlos (T136 e T138). Diante da formulação do professor (T143), a estudante parece reconhecer um conflito entre suas concepções e as idéias que o professor vai introduzindo. Isso é evidenciado na sua reação de surpresa no turno 144 – “Como é que é?”. Mesmo sem apresentar definitivamente o modelo científico, o professor conduzira o discurso de modo a fechá-lo em direção à explicação que mais se aproximava dele: para que os objetos sejam vistos, é preciso que a luz por eles refletida atinja o olho do observador desencadeando a sensação de visão. No Episódio 2 do encontro seguinte, vemos, ao contrário, a aluna Marilena apresentar, sustentar e defender o modelo científico diante de um problema novo (T9; T11; T17 e T23). Isso constitui uma evidência de uma tomada de consciência do conflito gerado na aula anterior e uma mudança em direção a uma aquisição de domínio do conceito científico escolar.

Nessa busca de produção de sentidos os estudantes procuram entrelaçar seus modos de dizer com o discurso científico escolar que vai sendo veiculado pelo professor em sala de aula. Esses entrelaçamentos (FONTANA, 1996) caracterizam um modo de relação entre as “palavras próprias” e as “palavras alheias”: outra “voz” aparece incorporada no enunciado do estudante, e vai se tornando uma “palavra própria” (re)significando o dizer do professor. A “voz” do professor (e da ciência escolar) aparece diluída no discurso dos estudantes e estes a (re)significam ao nível individual, para produzir suas

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asserções (FREITAS & AGUIAR, 2010). Nesse tipo de relação, os estudantes procuram convergir seus conceitos espontâneos, forjados em sua experiência pessoal e em práticas sociais de referência, com os conceitos científicos introduzidos pelas relações de ensino-aprendizagem na sala de aula, como evidenciado, por exemplo, no turno 26, quando uma aluna evoca um conceito espontâneo ao responder a pergunta do professor, no turno 25. O professor procura desenvolver uma explicação do ponto de vista da ciência sobre como enxergamos os objetos, quando pergunta à classe sobre as condições para que um objeto possa ser visto – “(...) Pra você enxergar qualquer coisa é preciso que você tenha o quê?” (T25) –, uma aluna utiliza em sua resposta o termo „claridade‟, como uma entidade que preenche todo o espaço e permite ver os objetos, e, logo após uma pausa curta, ela utiliza o termo „luz‟, que é entidade utilizada pelo professor ao veicular o discurso científico escolar. Esse deslocamento no discurso da aluna caracteriza-se como um tipo de entrelaçamento: é uma evidência de palavras que vão sendo ocupadas por outros sentidos e dando lugar a outras palavras.

Sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos pelos estudantes, Vygotsky (1934/1995) faz uma diferenciação entre os conceitos científicos e espontâneos. Esses conceitos se formam e desenvolvem sob condições internas e externas muito diferentes. Enquanto os conceitos científicos se originam da experiência de aprendizagem em ambientes e atividades intencionais na escola, os conceitos espontâneos são formados na experiência pessoal do sujeito. Quando se introduz um conhecimento sistemático na sala de aula, ensina-se aos estudantes muitas coisas que eles não podem ver ou experimentar diretamente. Nos conceitos científicos que os sujeitos adquirem na escola, a relação dos estudantes com os conceitos científicos está mediada desde o começo por algum outro conceito. A noção de um conceito científico implica determinada posição em relação a outros conceitos. Assim, argumenta Vygotsky, os rudimentos de sistematização entram primeiro na mente pelo sujeito a partir de seu contato com os conceitos científicos num dado contexto

social e são transferidos então aos conceitos cotidianos, mudando sua estrutura psicológica. Uma vez que o sujeito educando adquire consciência e controle de um tipo de conceito, outros conceitos, formados previamente sobre o mesmo tema, podem ser reformulados de acordo com ele. Acreditamos que tal mudança na estrutura psicológica dos conceitos espontâneos esteja relacionada à aquisição de novas zonas de perfil conceitual (MORTIMER, 2000). Evidentemente, isso é um processo lento e não linear, que pode ou não ocorrer nos processos de escolarização das pessoas.

A hipótese chave de Vygotsky (1934/1995) é que os conceitos científicos e espontâneos se desenvolvem em direções inversas: começam afastados até se encontrarem. O desenvolvimento dos conceitos espontâneos do sujeito se dá de um modo ascendente, e os conceitos científicos de forma descendente. Nas suas próprias palavras, “o início de um conceito espontâneo pode ser traçado geralmente no encontro cara a cara com a situação concreta, enquanto que um conceito científico compreende desde o início uma atitude „mediatizada‟ até o objeto” (ibidem, p.147. Tradução nossa). O lento caminho percorrido pelo sujeito no desenvolvimento de seus conceitos espontâneos marca uma trajetória para o conceito científico e seu desenvolvimento descendente. Por sua vez, os conceitos proporcionam estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos do estudante até a consciência e seu uso deliberado. “Os conceitos científicos descendem aos conceitos espontâneos e os conceitos espontâneos se desenvolvem através dos científicos” (ibidem). Se isso é verdadeiro, a apropriação de um conceito científico, de novas zonas de seu perfil conceitual, pode possibilitar ao estudante tomar consciência de suas concepções espontâneas sobre o mesmo tema, o que é importante no seu processo de construção de novos significados. No Episódio 2, fica evidente nas respostas de alguns estudantes que sua compreensão da situação ilustrada pelo professor é apegada à sua concepção do real. Eles operam com um conceito espontâneo, fundado nas

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suas próprias experiências, ao afirmarem que é possível enxergar os objetos no escuro. Marilena, entretanto, já parece conseguir transpor a barreira do real, caminhando em direção à formação do conceito científico, e esse processo é certamente mediado pelo professor. Particularmente no caso de Cássio, notamos uma tendência ao encontro de seus conceitos espontâneos e científicos, em sua relação de entrelaçamento com o discurso científico escolar. Também a partir de uma ação mediada, pelo professor e por Marilena, Cássio parece caminhar para a tomada de consciência de sua concepção espontânea e, se desprendendo do real, passa a considerar como possível pensar a partir do modelo de luz e visão ensinado pelo professor (T13; T18; T20; T27 e T29), afirmando sua nova posição em relação ao problema proposto.

Atribuímos esse deslocamento por parte do aluno Cássio ao tipo de discurso que vai sendo elaborado na interação interpessoal no espaço da sala de aula, que ganha força e é legitimado pelos estudantes devido à sua consistência interna e ao grau de generalização das idéias científicas que prevalecem sobre situações particulares, mesmo aquelas arraigadas na experiência pessoal do sujeito educando. Esse deslocamento do estudante do modo de pensar não científico para o modo de pensar científico evidencia um domínio do conceito científico, que ocorrer, provavelmente, mediante uma reestruturação da estrutura psicológica dos seus conceitos espontâneos de modo a (re)significá-los. Essa conclusão está em acordo com a proposição de Vygotsky (1982) descrita acima, segundo a qual a aprendizagem dos conceitos científicos proporciona o desenvolvimento dos conceitos não científicos dos estudantes até o seu uso consciente e deliberado. Nossa conclusão também está em acordo com a concepção de aprendizagem em Paulo Freire, segundo a qual, a aprendizagem ocorre na relação dialética entre o conceito escolar e a experiência que configura a cultura do sujeito aprendiz. Nessa relação, o conteúdo escolar é pensado considerando-se a história do sujeito, e esta não relega o conteúdo. Esse processo permite ao sujeito conhecer o mundo, o

outro e a si mesmo, transformando o objeto do saber e transformando-se a si mesmo gradativamente.