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O homem, como o pintainho, tem que quebrar a casca se se quer evadir da sua prisão original. Tem que quebrar o meio para tornar a evolução irreversível, tem que fazer a revolução social e só sobre as ruínas da sociedade de classes poderá elaborar uma economia de gestão e justifica-la, construindo uma nova moral, que guiará as relações que os homens sujeitos às tarefas coletivas são obrigados a manter entre si.

Maurice Joyeux (1975) Nas palavras de Haguette (2003), é difícil e problemática a avaliação da “validade” da pesquisa-ação, uma vez que seus efeitos só aparecem no tempo. Essa pesquisa gerou processos não

Rio Preto

apenas no assentamento Ho Chi Minh, mas em outras áreas de acampamento e assentamento do MST, e mesmo fora do Movimento, por exemplo, no SITRAEMG. Começar uma pesquisa-ação é como jogar uma pedra no Rio Preto, o rio que passa no Ho Chi Minh. É possível dizer onde a pedra entrou na água, mas determinar até que oceano suas ondulações chegam é impossível. Serão registradas nessas considerações finais algumas reflexões desencadeadas por essa pesquisa.

As plantas medicinais, assim como as fontes alternativas de energia, ou o pomar artesanal, são técnicas bem mais antigas que a fábrica. Que elas possam renascer hoje sob o nome de tecnologia popular ou alternativa é apenas indício de que há a necessidade de operar uma mudança no sistema social atual. Murray Bookchin (s/d) acreditava que essas técnicas alternativas nos dão hoje, justamente, o contexto possível, e talvez histórico, para uma tal mudança social. Elas permitem que a autogestão seja efetivamente uma realidade viva e concreta, que traz do passado os aspectos mais positivos.

A partir dessa pesquisa, fica fácil perceber a importância do resgate dos saberes populares em saúde, como, por exemplo, o conhecimento sobre as

plantas medicinais, para a melhoria do nível de saúde do povo brasileiro. A valorização desse recurso pelos/as jovens impede que o conhecimento tradicional continue se perdendo, pois assim eles/as aprenderão com aqueles/as que conhecem esse valioso recurso, principalmente as pessoas mais antigas. A valorização do conhecimento dos/as idosos/as leva também à sua valorização social, desencadeando uma necessária mudança cultural. Segundo Bosi (1994), atualmente a noção que temos de velhice decorre mais da luta de classes do que do conflito de gerações, uma vez que a sociedade industrial arranca o sentimento de continuidade do trabalho.

É interessante refletir sobre o conceito de saúde, pois ele norteia a prática dos cuidadores e dos cuidados. Na visão onde a saúde é o “completo bem-estar físico, psicosocial e espiritual”, saúde passa a ser um utópico horizonte, algo a nunca ser atingido. Mesmo após belos debates sobre esse conceito com os membros do MST Paulo Ueti, Bianca Rückert e Bernardo Vaz, não conseguimos chegar a um consenso. O aprofundamento nesse ponto gera em mim cada vez mais dúvidas sobre o conceito que seria mais adequado, e continuo nessa busca após a conclusão da presente Dissertação. No meu conceito pessoal de saúde, ainda em formulação – provavelmente mais poético do que científico – incluirá a idéia de que a saúde é um fenômeno muito próximo àquele da felicidade.

Sublinho a necessidade dos Movimentos Sociais aprofundarem-se no resgate do conhecimento popular em saúde. O MST tem feito grande esforço nesse sentido, porém o trabalho referente à saúde no Movimento é secundário quando comparado àquele dedicado à produção. Isso é compreensível, visto que a prioridade da família é ter condições financeiras para a sobrevivência – alimentação, moradia e vestuário. No entanto, trabalhadores/as saudáveis produzem e lutam mais, e não se deve perder de vista a dialogicidade entre os aspectos da vida. A compartimentação construída inicialmente pela organicidade do Movimento tem sido lentamente quebrada, e já há membros do Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente refletindo sobre saúde e membros do Setor de Saúde refletindo sobre produção.

No Movimento há técnicos (graduados) atuantes na área da produção. Se analogamente houvesse técnicos na área da saúde, poder-se-ia catalisar

161 esse tipo de discussão com mais facilidade. Diversos estudantes se aproximam do MST a fim de contribuir com esse, em especial aqueles que passam pelos Estágios de Vivência em Áreas de Reforma Agrária. Uma sugestão para o MST é a criação de estágio ou internato não-remunerado (com duração mínima de três meses) para estudantes graduandos ou graduados da área da saúde (e – por que não – de outras áreas igualmente). Durante o estágio, o Movimento dividiria entre as famílias das áreas responsabilidades referentes ao abrigo e à alimentação dos estudantes. A ampliação da relação entre os Movimentos Sociais como o MST e as Universidades promove um crescimento mútuo. Favorece sobremaneira a formação humana dos estudantes universitários (tornando-os profissionais sensíveis à realidade brasileira ou até mesmo comprometidos com o povo) ao mesmo tempo em que favorece a formação técnico-científica dos/as militantes dos Movimentos Sociais. O diálogo faz-se necessário.

Como sonhava Abraham Guillén: “quem sabe um dia as diferenças entre trabalho manual e intelectual poderão ser eliminadas, combinando o trabalho e o estudo, levando a escola até a fábrica ou até a cooperativa agroindustrial? A igualdade da condição intelectual garantiria que a ciência e a técnica fossem desenvolvidas democrática e amplamente, livres de tecnocracias, burguesias e burocracias dirigentes”. Orlando Fals Borda (1988) igualmente sonhava, com novos laboratórios, populares, dispersos pelas cidades e no campo, em fábricas e fazendas, estimulados por seus próprios problemas, com a finalidade de formar técnicos de nível intermediário que fossem orgânicos com as classes trabalhadoras e suas organizações. O Coletivo TERRAS tem buscado meios para facilitar, animar e cultivar esse tipo de sonho. Cultivamos com carinho o diálogo entre o saber formal e o saber popular. Experiências como essas devem ser valorizadas e multiplicadas.

Apesar da origem urbana da comunidade e da influência dos meios de comunicação de massa que orientam a preferência por medicamentos industrializados (mesmo quando esses são feitos de plantas), os/as agentes do assentamento Ho Chi Minh preferem resgatar o uso autônomo das plantas medicinais. Reflexões sócio-políticas sobre esse recurso permearam toda essa pesquisa. É muito importante criar-se estratégias para uma atenção à saúde de

caráter “desmedicalizante” e/ou minimizador da medicalização, como aquela dessa pesquisa, inclusive nos próprios serviços da rede básica de saúde. Sobre esse aspecto, Tesser (2006) faz boas sugestões. Uma delas é a eleição do tema da medicalização como objeto de atenção no dia-a-dia, oferecendo possibilidades de movimento em direção à solidariedade e ao auto-serviço, resgatando a autonomia das pessoas.

O poder do saber deve sair do monopólio acadêmico. O saber tradicional pode se transformar em saber orgânico, respeitando a temporalidade dos oprimidos, ao ritmo de sua consciência possível e das condições objetivas de transformação (HAGUETTE, 2003). Um trabalho sobre plantas medicinais executado na área sem a participação de agentes endógenos dificilmente poderia contribuir para a melhoria da situação de saúde e organização das pessoas do assentamento, tendo sido a pesquisa-ação realmente o melhor meio de responder à demanda dessa pesquisa. Não há como uma comunidade apropriar-se de um conhecimento se este não emergir de suas bases. Mesmo que o pesquisador queira fazer uma ciência voltada para as necessidades populares, para o uso das classes oprimidas, destinadas aos problemas evidentes de uma comunidade, ele esbarrará em resistências pessoais e do próprio grupo para realização de suas metas. Mesmo que o grupo entenda as vantagens trazidas pelo projeto, pode não se sentir suficientemente motivado pra lutar por ele (MACIEL, 1999).

Uma difusão em grande escala sobre a ciência crítica far-se-ia útil às atuais instituições, informando os/as pesquisadores/as e os/as aspirantes a pesquisadores/as de que a ciência que praticam traz embutida em si uma ideologia. Há necessidade de se abrir mão da ingenuidade e perceber que a ciência não tem apenas o papel de descrever, mas também o de transformar realidades.

Como disse Wânia, do Setor de Saúde Estadual do MST no I Encontro Terra Livre: “Contribuir para a formação do pessoal é um importante meio para permitir o desenvolvimento do Movimento. Ele não é assim tão bonito quanto parece. Há muita contradição e dificuldade no percurso. É necessário povo organizado para luta de massa. Povo desorganizado é fraco”. Ronaldo, do Ho

163 humano. (...) Às vezes a gente trabalha seis meses, um ano, ou a vida toda. Porque já tá aglutinado de ser individualista, egoísta, e é difícil mesmo trabalhar a pessoa de uma hora pra outra. E a culpa é dela? Não é. (...) É de quem modelou ela. O sistema capitalista”. Luciano, também do Setor de Saúde Estadual do Movimento, disse que “quem entra no Movimento, espera ser mandado, e não se implica nos processos”. Ampliar e aprofundar a reflexão do povo nas áreas permite que este tenha um perfil diferente, mais consciente, seguro e ativo. Esse é um grande desafio do MST.

E quanto a mim? Após concluir essa pesquisa, estou mais fortalecida e segura como agente de transformação do mundo, pronta para dar os próximos passos.

Carlos Castañeda, antropólogo, passou diversos anos de sua vida aprendendo os conhecimentos do índio Dom Juan, de Sonora, México. Esse índio falou com Castaneda que não importava tanto aonde se chega ao percorrer determinado caminho. O que importava realmente era escolher um caminho com coração, pois assim a caminhada sempre valeria à pena (CASTAÑEDA, 2006). Essa pesquisa foi mais um pequeno passo dentre tantos que são necessários à libertação de todos/as, na direção de uma sociedade mais justa, participativa e igualitária. Caminhemos um pouco mais a cada dia!

Marcha do V Congresso Nacional do MST, Brasília – DF

Já dá pra dar mais um passo... Tem que ir caminhando. (...) Vamos caminhar juntos. Mesmo que a gente caminhe devagar. (...) Como diz o [Toninho], é melhor dar um passo junto do que dar dez sozinho. Então tem que ter paciência.