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CAPÍTULO 2 AS MATRIZES SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAIS DO SÉCULO XVI:

3.1 Considerações iniciais

Os capítulos que antecedem a este buscaram registrar a articulação entre léxico, memória e história, de modo a apontar que a construção do léxico do idioma português brasileiro é produto de línguas em contato, quer em relação àquele transplantada para o Brasil - por meio do português arcaico e provençal, falado pelos colonos que aqui chegaram ao longo do século XVI - quer em relação às línguas que se fizeram em contato na nova terra no referido período. Nesse sentido, buscou-se compreender que a história do léxico está relacionada com a historicidade de um povo, o que implicou a transformação dos fatos lexicais.

Essas línguas de contato e os diferentes discursos que nelas eram/foram produzidos respondem pelo deslocamento, empréstimos e certo grau de estabilidade das unidades lexicais, de modo a se poder dizer que o léxico se modifica no espaço da interdiscursividade produzida por povos diferentes e dos quais resulta a formação de um novo vocabulário pela incorporação de outros adstratos, substratos e superstratos. Afirma Maingueneau (1997) que o interdiscurso3 pode ser operado com a concepção

de um conjunto de unidades discursivas com as quais ele estabelece relações. Tais unidades podem abranger dimensões variáveis como locuções ou enunciados que ligados às palavras contribuem para dar um valor simbólico.

3 Assume-se a concepção de interdiscurso proposta por Maingueneaus: um discurso tem por matriz outros

Entende-se que a interdiscursividade que qualifica o século XVI, reconstrói os discursos dos jesuítas, dos colonos portugueses e dos nativos, ao longo de outros séculos que se seguem à descoberta e invenção do território americano. Nesse movimento de reinvenção, criam-se modelos para que os homens aqui chegados e aqueles que aqui viviam possam se conhecer e se compreender. Uma dessas invenções, conforme apontado no capítulo II, é a língua geral cuja descoberta arrasta consigo a história de náufragos, navegantes, desterrados e escravos, dentre outros. As matrizes dessas outras/novas histórias se inscrevem na reconstrução do vocabulário desses homens, para se fazer remissão a elas. A discursividade dessas histórias prefigura novos/outros campos discursivos:

(...) espaços em que um conjunto de formações discursivas – enunciados e identificáveis por seguirem, num mesmo sistema de regras, historicamente determinados (...) que se constituem e se mantêm no interdiscurso – estão, em sentido lato, uma relação de co-ocorrência, delimitando-se reciprocamente (MAINGUENEAU, 1997, p. 16 e 51).

Este capítulo trata da análise do vocabulário por campos lexicais, de modo a verificar como diferentes vocábulos vão se remetendo a diferentes campos do conhecimento para designar o velho e o novo ou o novo pelo velho (TURAZZA, 2005).

Como exemplo de expansão da base do vocabulário da língua portuguesa, selecionou-se o campo das frutas, cuja análise apresenta o item lexical “manga”. No fluxo desse procedimento analítico, buscam-se outros exemplos para apontar mudanças e transformações do vocabulário da língua portuguesa, em função da criação de outros campos de significação.

Tem-se por pressuposto que o vocabulário descrito por dicionários são designações que condensam um conjunto de predicações que se remete a significados de alta freqüência dos quais os usuários de uma dada língua fazem uso em suas práticas discursivas. Nesse sentido, os significados descritos pelos lexicógrafos são aqueles que estão em circulação numa dada comunidade, em uma dada

contemporaneidade. Os vocábulos descritos por Beaurepaire-Rohan, em 1881, a partir de uma pesquisa realizada em textos do século XVI, apontam para os significados das designações vocabulares remetendo-os a sentidos de maior freqüência. Observa-se que este lexicógrafo incorpora vocábulos do Dicionário de José de Anchieta e os expande por conjuntos vocabulares coletados em textos da literatura dos viajantes.

Ressalta-se que, no prólogo de sua obra, o autor registra que o seu dicionário de vocábulos brasileiros poderia ser mais rico, diante das denominações vulgares dos produtos naturais, das tribos dos aborígines que existiam e ainda existem, das localidades cuja etimologia é rica e poética. Entretanto, não o fez por recear não poder publicá-lo em vida, já que tinha idade avançada e, como ele mesmo coloca, “não é lícito confiar na vida”. O seu desejo era que a obra servisse de base a outros trabalhos “tão ricos e com grande proveito da nossa Literatura”.

O corpus contou com um grupo de lexias que faz nossas mentes se deliciarem com a riqueza contida em suas páginas. São frutos da terra – a Terra Brasilis – rica em todos os aspectos, nossa flora, fauna, cultura aborígine, a qual acolheu em seu seio, africanos, europeus, asiáticos. Afirma o pesquisador que a língua portuguesa já no século XVI era distinta da língua-mãe, talvez pelas línguas que, aos poucos, mesclaram -se a ela.

Reitera as muitas dificuldades para representar sons completamente estranhos ao nosso alfabeto, e assim nasceram convenções ortográficas que, no seu tempo, cada um procurava justificar a seu modo. Os sons guturais, por exemplo, que alguns jesuítas portugueses designaram por “ig”, o autor substituiu por “ÿ”, porém os editores, por dificuldade de composição gráfica, conservaram nestes casos, a grafia jesuíta de “ig”. A transcrição do grupo de vocábulos retirada do dicionário seguirá a grafia, pontuação e acentuação, como também, algum provável equívoco constante da obra, em consideração ao trabalho do autor.

Apresenta-se, no corpo deste capítulo, apenas um exemplo para indicar o procedimento analítico adotado para tratar da organização do vocabulário da língua portuguesa brasileira. Entretanto, a organização dos vo cábulos descritos por Beaurepaire-Rohan na sua obra lexicográfica está sistematizada por campos semânticos e consta dos anexos desta Dissertação. As definições apontadas pelo autor fizeram referência a um universo vocabular bastante extenso razão por que, ainda hoje, os registros dos dicionários contemporâneos da língua portuguesa prendem-se a elas.