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Considerações introdutórias: distopias vs TCs

DA DISTOPIA NAS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO (FRANCIS FORD COPPOLA, JOHN CARPENTER

1. Considerações introdutórias: distopias vs TCs

Antes de avançarmos para uma caracterização das figurações distópicas das TCs, formulamos um conjunto de observações.

1ª O enquadramento epistemológico neste exercício é de índole semiótica conduzindo à concepção das distopias e das TCs como práticas textuais caracterizadas por especificidades do ponto da natureza (da geração) dos sentidos. Todas dependem de um percurso gerativo pré-determinado de- corrente de estruturas semio-narrativas e discursivas tal como se encontra clarificado por Algirdas Greimas e Joseph Courtés no Dicionário (Greimas & Courtés, 1993: 157-160).

2ª Quer as distopias quer as TCs mobilizam valores negativos consubstanciando-se numa textualidade negativa, disfórica. Dois géneros de texto destituídos de finais felizes, cujos enredos jamais são agradáveis ao leitor. Ambos significam situações de estado de desconfiguração (por- tanto, adjacentes a um ‘não-ser’): as crises e as catástrofes, os regimes políticos tirânicos e policiais, os sistemas institucionais oligárquicos e/ou corruptos, os estados de alienação, desumanização/’alienigezação’/lavagem cerebral, as situações de guerra, violência, absoluta mecanização/robotiza- ção, desterritorialização.

3ª Do ponto de vista da narratividade, tanto as distopias como as TCs fundamentam-se na esfera narrativa da sanção. São textos de julgamento negativo de temáticas de âmbito cultural, institucional, político, económico, religioso, etc..

4ª A textualidade das TCs inscreve-se num registo característico da acu- sação adjacente ao exercício da vigilância e da suspeita e numa dinâmica mais ou menos evidentemente inscrita no domínio da paranóia (Detry, 2018: 103-110).

Do ponto de vista textual, são enredos de desmistificação (‘teorização’) nos quais o traidor é significado (e demonstrado) como alguém inevitavelmente culpado. Cabe ao sujeito acusador o ónus da fundamentação do que para ele é uma evidência, uma certeza sempre classificada a priori dos factos que vai descobrir e que são incontornavelmente comprobatórios. Esta particulari- dade vai favorecer uma textualidade composta por estratégias discursivas de persuasão adjacentes à fundamentação dessa culpabilidade, o que atribui ao registo um forte cunho subjectivo e passional que não existe no texto dis- tópico. Esta questão dos procedimentos de desmistificação e sua respetiva legitimação são características importantes. É a partir da sua existência que uma TC é… uma teoria; e é por referência à natureza dos seus procedimen- tos epistemológicos que Karl Popper as distinguiu de outros registos onde a questão da validação/legitimação do pensamento também desempenha um papel incontornável. Estamos a referir-nos em particular às teorias científi- cas (cf. Popper, 2002; Madisson, 2018: 28-239).

5ª Se as distopias e as TCs se fundamentam axiologicamente na mesma or- dem de valores negativos, exploram, todavia, quadros temporais simétricos. No caso do registo distópico, o fundamento é o de um «futuro que se pode tornar presente», apresentando um interessante estatuto narrativo. Em primeiro lugar, esse futuro pode estar relacionado como uma idealização negativa do presente com todas as suas figurações em termos de represen- tação grotesco. Esta idealização encontra-se conjugada com uma encenação

de pesadelos, de ficçionalização do horrível, histórias de terror cuja ocor- rência só dependerá da transgressão dos valores e das identidades culturais existentes. É como se a distopia fosse um constructo ideológico, pois ao ser significativa de uma projeção negativa contribuísse para a legitimação de sistemas políticos e institucionais já vigentes. Em segundo lugar, a significa- ção de uma temporalidade do futuro facilita a inscrição do registo distópico nas modalidades da manipulação. O futuro negativizado é o móbil discursivo a partir do qual se fundamenta um procedimento integrado na modalidade manipulatória da intimidação (e eventualmente da provocação). As distopias estão inscritas em programa narrativos de impedimento, isto é, num ‘fazer não-fazer’. “Não quer ver a Europa desertificada, nem assolada por doenças, guerra, fome e migrações, pois não? Então não desperdice água, um bem que não existe eternamente”. Quanto mais evidente for a encenação gro- tesca, a exploração de uma emotividade catastrofista, mais intenso é o seu potencial performativo dissuasivo e maior é o potencial estratégico.

Em contraste com as distopias – que são narrativas de (ante)visão – as TCs são narrativas de (re)visão onde a significação da temporalidade consiste numa sobre-valorização do passado. São narrativas disfóricas de reconhe- cimento negativo. O sujeito assevera triunfalmente algo que já sabia, que sempre soube (“Eu já sabia!”). Daí a distinção destas textualidades – sempre adjacente a uma narratividade de suspeita, denúncia e culpabilização – com as relativas às da solução dos enigmas das advinhas, das charadas e dos anagramas, cujo fundamento será sempre o da superação de um mistério (Bertrand, 2014: 127-140).

É certo que nas TCs o presente existe e se encontra regido por anti-valores. Ao contrário do que sucedia nas distopias – em que é o futuro que é negativi- zado –, o presente é o tempo do evento perturbador, misterioso, enigmático: uma catástrofe estranha, um acidente bizarro, um evento político destabili- zador, uma crise repentina. Mas esta temporalidade é regida pelo passado. Os acontecimentos nunca valem por si (isto é, apenas como uma conjuntura de ‘tempos difíceis’); eles são amalgamados, colocados entre parêntesis por- que suspeitados, desmistificados, denunciados por referência a um passado

(mesmo que assumidamente subjectivo como sucede no solipsismo) que os vai transformar em episódios exemplares da regência do Mal.

6ª Do ponto de vista veridictório, as distopias manifestam textualmente o ‘não ser’ como se fosse uma revelação – daí o carácter fortemente descritivo dos registos. Em contrapartida, o ‘não ser’ nas TCs é manifestado como uma entidade escondida – como se fosse o segredo de um complot – ou dis- farçada – como se se tratasse da dissimulação de uma impostura.

Já do ponto de vista aléctico, também se verificam singularidades impor- tantes. Se nas distopias, as situações de estado de ‘não-ser’ são significadas como uma ficção, algo plausível, possível, mas não necessário, tal não ocor- re no caso da textualidade das TCs. Na medida em que estão integradas num programa narrativo de sanção cognitiva que nunca foi de conheci- mento, mas de (re)conhecimento do que já se antevia, adivinhava, temia, o ‘não ser’ é significado como sobre-determinado pela modalidade do ‘dever’, conduzindo a um teor determinista – fundamentalista (algo necessário: dever-ser).