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Dinâmicas e contradições do Liberalismo

ATWOOD, HOUELLEBECQ E A SOCIEDADE PÓS-LIBERAL

3. Dinâmicas e contradições do Liberalismo

É este aspeto contingente e dinâmico que pretendo destacar com duas hi- póteses de trabalho que encontram fundamento nas obras de Margaret Atwood e Michel Houellebecq. A primeira hipótese é a de que, como aconte- ce com qualquer discurso hegemónico, o Liberalismo tem gerado discursos de resistência que contestam os seus valores e propõem alternativas, que podemos dividir em regressos ao passado e projetos futuros utópicos. A se- gunda hipótese é a de que todas as narrativas, pessoais ou políticas, contêm em si contradições ou impulsos contrários, que acabam, com o tempo, por levar à sua mudança e em última instância ao seu fim. O Liberalismo, como qualquer paradigma filosófico e político, terminará – embora, como Hegel observou, estejamos condenados a sentir que as nossas verdades são a ver- dade final, esquecendo-nos sempre de que somos apenas filhos da história. Como diz Richard Rorty,

Hegel tornou incrivelmente claro a profunda auto-certeza proporciona- da por cada conquista de um novo vocabulário, por cada novo género, por cada novo estilo, por cada nova síntese dialética – o sentido de que agora, finalmente, pela primeira vez, captamos as coisas como elas real- mente são. Ele também tornou incrivelmente claro por que razão tal certeza dura apenas um momento. (Rorty, 1982: 148)

De que modo encontramos estas hipóteses nas duas obras que nos servem de referência? Consideremos, primeiramente, o argumento de Atwood: a contra-resposta conservadora surge como reação à liberalização dos cos- tumes, à libertação das mulheres, à abertura e pluralismo resultado das mudanças sociais rápidas que caracterizam os tempos modernos. Até à modernidade e, em especial, até ao século XX, as mudanças sociais e tec- nológicas aconteciam entre várias gerações, dando tempo às pessoas para se habituarem e adaptarem aos novos valores. Agora, tudo acontece ra- pidamente, fazendo com que os ideais com que nos formamos se tornem rapidamente obsoletos, num ritmo que não parece ter fim. Perante a impres- são de caos e de falta de controlo provocada por um processo de “revolução permanente”,8 como lhe chama Harari, essa contra-resposta recuperou

uma linguagem que permite uma perspetiva a partir da qual interpretar, compreender e estar no mundo. É uma contra-resposta essencialmente masculina, deduzimos ao longo do livro, como uma tentativa do homem recuperar o controlo e o lugar que lhe foi tradicionalmente atribuído. Mas a escritora canadiana não é ingénua: o golpe conta também com a partici- pação de mulheres que não se reveem nos valores que as novas versões da civilização impõem. Não é, portanto, uma questão de mulheres contra homens – na verdade, a história nunca é assim tão simples e devemos ter o cuidado de não a simplificar se querermos ver para lá dos nossos interesses. Na medida em que não há uma verdade universal, nem um entendimento único do que é o bem comum, é legítimo que uma parte das mulheres queira

regressar ao passado, não se reconhecendo no lugar que é desenhado para ela na sociedade atual.9

O livro de Atwood pode ser, assim, percecionado como uma narrativa em torno da ideia de controlo e é nesse sentido que ele nos permite perceber com mais clareza uma contradição específica do projeto liberal. O Liberalismo afirmou-se como a ideologia do indivíduo que toma controlo da sua vida para lá de todas as tradições religiosas e comunitárias anteriores e até para lá de todas as dependências naturais e biológicas. Mas o projeto liberal tem- -se vindo a traduzir, ao longo do século XX e com maior vigor no século XXI, como o sentimento crescente de perda de controlo em relação ao nosso lu- gar no mundo e ao modo de interpretá-lo.

Ao passarmos para Submissão, temos acesso a outro tipo de contra-respostas e contradições. Se a narrativa do paradigma liberal assenta na ambição de emancipar o indivíduo do passado, das suas tradições, dos seus mitos, das suas comunidades, isso significou a produção de indivíduos sem lugar e sem identidade. Ora, este aspeto tem profundas consequências políticas para a Europa, que são acutilantemente exploradas em Submissão. De acordo com Houellebecq, o mundo liberal juntou dois fatores cuja combinação se reve- la explosiva. Por um lado, o centramento liberal no indivíduo atomizado fragiliza a possibilidade de uma narrativa europeia que é essencial para a sobrevivência de uma comunidade imaginada; por outro, a sociedade libe- ral europeia tem aplicado uma política ampla de imigração, que materializa bem o espírito liberal dos direitos fundamentais universais e do mercado global, mas que destrói a ideia de confiança, que, como diz Ivan Krastev, é fundamental para a vivência em sociedade e um pressuposto do funciona- mento democrático.10 Desta forma, as políticas liberais conduzirão ao seu

próprio fim.

9. A dinâmica dos efeitos provocados pelos nossos discursos, especialmente bem caracterizada nas entrelinhas do livro de Atwood, também nos ajuda a interpretar acontecimentos recentes como o #metoo ou a refletir sobre medidas políticas no contexto nacional, como a penalização do piropo: criar o discurso da vitimização tende a gerar respostas de proteção – aspeto a que devemos estar atentos. 10. Ivan Krastev tem desenvolvido os seus trabalhos em torno da essencialidade do conceito de confiança no contexto democrático (cf., entre outros, After Europe, 2017).

Se em A História de uma Serva analisamos a questão do controlo, a contra- -resposta de Submissão encontra-se envolta no vocabulário do sentido: sem uma narrativa europeia de sentido que lhes permita o reconhecimento de uma identidade pessoal e comunitária, os franceses ficaram particularmen- te suscetíveis ao apelo de uma proposta que lhes permitia recuperar sentido – o sentido da sua vida pessoal e o sentido da vida coletiva. E embora esta aceitação não se traduza, em bom rigor, num regresso ao passado (como pa- rece acontecer de forma mais clara no caso de Atwood), ainda assim parece passar por recuperar um sentido que as tradições do passado permitiam, como se o desenraizamento promovido pelo liberalismo provocasse uma procura incessante por essas raízes perdidas.