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SUBLIME DESOLAÇÃO: DISTOPIA NA BANDA DESENHADA DOS ANOS

3. Sublime catastrófico

Uma segunda modalidade da perpetuidade distópica encontramo-la numa escala bem diferente. Se antes falámos do sublime messiânico focando-o numa figura individual e numa dimensão urbana, em função da violência que o contexto metropolitano tradicionalmente acarreta, agora surge-nos um sublime em plena expansão: é o caos cósmico que está em jogo; a sua extensão é planetária ou galáctica ou sideral ou absoluta. E tudo, toda a exis- tência, o próprio universo, o tempo e o espaço totais, podem estar em jogo. E esta desmesura do perigo, da catástrofe ilimitada, é também ela sublime, inimaginável, exorbitante.

A ideia de fim, neste caso, coloca-se como horizonte incontornável: fim do mundo, fim do milénio. Não nos esqueçamos que as obras que aqui analisa- mos surgem num momento em que o medo do fim do milénio e o contíguo fim do mundo se encontra próximo do auge, alimentado não apenas por crenças místicas, religiosas ou escatológicas, mas também pela ameaça real do nuclear, em que a imagem de devastação de Nagasaki e Hiroshima ou dos cogumelos atómicos e nucleares ainda não se apagaram da memória comum. Esse medo disseminado é perfeitamente ilustrado no doomsday

clock de Watchmen. O apocalipse global ou o cataclismo cósmico são confi-

gurações sombrias que se inscrevem no horizonte humano, um armagedão premente segundo a segundo.

Ora, estas manifestações distópicas bem concretas não podem deixar de evocar toda uma tradição que podemos designar por fascínio das ruínas e

que acompanha, podemos dizê-lo, a humanidade desde tempos ancestrais. Bem lá atrás, quer na Bíblia quer nas Metamorfoses de Ovídio, encontra- mos alusões ao Dilúvio. E alusões ao inferno e ao juízo final proliferam na história da pintura, de Michelangelo a Hyeronimus Bosch, para referirmos apenas dois exemplos de uma vasta tradição de figuração escatológica. Mas é nos séculos XVIII e XIX que este enamoramento da ruína, espécie de me- tonímia de toda a distopia, modalidade peculiar do sublime, conhece a sua mais emblemática expressão: nas gravuras fantasmaticamente elegantes de Piranesi ou na grandiosidade romântica e assombrosa das pinturas de John Martin e Caspar David Friedrich.

Mas nestes casos a distopia ainda é de ordem natural, numa escala mo- numental e religiosa, é certo, mas, contudo, humana. Isso mesmo ainda se pode ver nas ilustrações dos primeiros anos do século XX do brasileiro Henrique Alvim Corrêa para War of the Worlds, de HG Wells: são cidades e ainda não metrópoles que sofrem a invasão alienígena – temos prédios des- truídos e não ainda arranha-céus devastados. A escala ainda é a rua e não a multidão. Mas na adaptação cinematográfica de outra obra de Wells (Things

to Come, de 1936), em Everytown, a cidade devastada, a catástrofe é já em

vasta escala. Por esta altura, em meados da década de 1930, já a arquitetura modernista, em altura, ocupara as metrópoles, sejam elas reais ou imagi- nárias: nas pinturas apocalípticas de Ludwig Meidner da década de 10, na enorme cidade do filme Metropolis de Fritz Lang (1927), nos estudos futu- ristas de Antonio Sant’Elia e construtivistas de Yakov Chernikhov, ou nas emblemáticas Metropolis e Gotham das histórias seminais de Superman e Batman, do final da década de 1930.

Mas também na poesia a distopia está presente, como o atesta Wasteland, de T.S. Eliot (1922). Na literatura, por seu lado, a distopia via surgir as enormes obras de Evhueni Zamiatine, Nós, de 1924, Brave New World, de Aldous Huxley, de 1932 (cuja organização social em castas é refletida em

Days of Future Past), e, em 1948, a obra-prima de George Orwell, 1984 (cujo

slogan “who controls the past, controls the future/who controls the present controls the past” ecoa na divisa “strength through unity, unity through

faith” da ditadura que sombriamente domina o mundo de V for Vendetta, a qual o protagonista pretende desmascarar e, literalmente, dinamitar). Na década de 1950 seria o cinema a tomar para si a representação da dis- topia, inaugurando uma tradição que não pararia de se ampliar, e de que o cartaz de When Worlds Collide é bem demonstrativo, com o céu a engolir em fogo as torres e arranha-céus caídos e a população em pânico a fugir da ca- tástrofe. Depois deste clássico da ficção científica, este género não cessaria de abraçar a distopia e o caos nas suas narrativas, arrastando consigo, para ilustrar a falência simbólica e a vulnerabilidade política, os próprios sinais do poder: a Estátua da Liberdade decapitada e prostrada em Planet of the

Apes e em muitos outros filmes, como Escape from New York ou Cloverfield

(motivo visual que podemos encontrar também na capa da banda desenha- da Kamandi, de Jack Kirby, de 1972) ou o Capitólio arrasado e tomado pela natureza, como podemos observar em Logan’s Run (1976) ou Oblivion (2013). Ora, a ficção científica pode ser vista de algum modo como o outro lado da vanguarda do início do século XX: uma procura o presente do futuro (a van- guarda), acelerando o presente para o futuro, a outra o futuro do presente (a ficção científica), trazendo o futuro para o presente – ou, então, será o inverso. Interessante, certamente, é que tanto uma como outra, ficção cien- tífica e a vanguarda, sob a promessa radiosa da utopia que ambicionam, encontrem em muitas circunstâncias o embate doloroso da distopia. Nas bandas desenhadas analisadas, lá encontramos o nuclear como sombra permanente, seja em The Dark Knight Returns, em V for Vendetta ou em

Watchmen. O furor modernista da alvorada do século XX, com a sua ênfase

no novo e no utópico, conhece no estertor desse mesmo século uma espé- cie de pathos distópico, o qual se acentuaria ainda mais nos começos do século XXI (curiosamente, um período igualmente marcado por uma euforia tecnológica inegável).

Mas não é apenas naquelas obras que as ideias de fim e de crise, de guerras cósmicas e derradeiras, se encontram no contexto da banda desenhada. Em títulos como Secret Wars, da Marvel, de 1984, ou em Crisis on Infinite Earths, de 1985, da DC, temos a incomensurabilidade da catástrofe universal, aqui

não numa escala planetária, mas alargada ao infinito espácio-temporal. Do início ao fim dos tempos, nada está a salvo. Isso mesmo podemos constatar, numa espécie de rima visual, na evocação que observamos nas capas de gravuras como Juízo Final, de Gustave Doré, de 1866: onde, neste último caso, encontramos deuses e anjos, naquelas podemos encontrar super-he- róis e super-vilões – mas o pathos de catástrofe cosmológica é semelhante. São guerras infinitas e ubíquas - outras séries na BD de super-heróis, como

Age of Ultron perpetuam, nos dias de hoje, esse pathos.

Esta ruína cósmica provinda da sensibilidade fantasiosa dos criadores de

comics americanos inscreve uma linha de natureza eminentemente ficcional

na sensibilidade distópica. Já a fotografia possui igualmente um pathos dis- tópico, mas, neste caso, não representando delírios imaginários; isso sim, apresenta-nos acontecimentos reais que atravessaram os séculos XIX e XX: bastará evocarmos as imagens feitas por Alexander Gardner ou Timothy O’Sullivan dos campos de cadáveres da Guerra Civil Americana, a foto Grief (1942), de Dmitri Baltermants, as muitas imagens do Vietnam, a mulher so- litária fotografada por James Nachtwey em 1996 nas ruinas do Afeganistão; ou a guerra do homem contra a natureza que podemos encontrar no traba- lho de Edward Burtynsky em tempos recentes e que reflete, quase como espelho, a trilogia cinematográfica Qatsi, de Godfrey Reggio.

Como se pode constatar, este catastrofismo sublime ancorado no fascínio da ruína é um topos da cultura visual ocidental de longa tradição (seja uma dis- topia sem apocalipse ou um apocalipse necessariamente com distopia), no qual quase podemos afirmar que quanto maior a ruína (a cidade esventrada como se de um corpo se tratasse) maior o sublime, porque maior o pathos doloroso. Mas existe também, sempre, o vislumbre de uma restauração, seja no dilúvio bíblico ou em qualquer mundo pós-apocalíptico – é esta a dialética entre utopia e distopia, a que voltaremos mais adiante.