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Distopia ubíqua e perpétua

SUBLIME DESOLAÇÃO: DISTOPIA NA BANDA DESENHADA DOS ANOS

4. Distopia ubíqua e perpétua

Depois do sublime messiânico e do sublime catastrófico, aos quais associá- mos a ideia de perpetuidade, ocupamo-nos agora da ubiquidade da distopia.

Passamos então a debruçar-nos sobre a dimensão cultural da distopia. Em resumo, trata-se de explorar a ideia de que a distopia, assuma ela que forma for, ganhou um espaço significativo na cultura ocidental que não pode ser negligenciado, proliferando nas mais diversas artes e formas de expressão. Onde podemos ver isso? Começamos, como primeiros dados, por inven- tariar as adaptações cinematográficas que as obras de banda desenhada que elegemos como representativas neste estudo conheceram. Em 2005,

V for Vendetta chega ao ecrã, numa produção da Warner Bros, realizada

por James McTeigue. Em 2009, é a vez de Zach Snyder levar para o gran- de ecrã a obra frequentemente considerada inadaptável de Alan Moore e Dave Gibbons, Watchmen. Em 2014, a 20th Century Fox e Bryan Singer procedem à adaptação de Days of Future Past. Em 2016, a DC e Zach Snyder decidem incorporar em Batman vs Superman: Dawn of Justice vários ele- mentos visuais e narrativos do clássico de Frank Miller, The Dark Knight

Returns. Como se pode constatar, em tempos recentes, estas BDs dos anos

80 conheceram um interesse renovado e uma audiência ainda mais abran- gente através da sétima arte.

Continuando no contexto da sétima arte, a distopia tem conhecido uma popularidade bastante significativa. Destacamos, dada a sua clara coinci- dência cronológica com as obras de BD aqui analisadas, os seguintes títulos, todos eles conhecendo uma ou mais sequelas ou reboots: Mad Max, cujo pri- meiro filme aparece em 1979, e após duas sequelas, é revitalizado em 2015 com Mad Max: Fury Road; Blade Runner, lançado em 1982, conhece uma continuação em 2017, intitulada Blade Runner 2049; Terminator, o clássico de James Cameron, de 1984, prepara-se para, em 2019, conhecer a quin- ta sequela; Robocop, aparecido em 1987, teve um remake em 2014, depois de anteriormente ter conhecido duas sequelas. Igualmente interessante é observar que, em linha com a tendência transmedia que se tem verificado em tempos recentes, todos estes títulos, surgidos no cinema, conheceram expansões na banda desenhada.

Mantendo-nos no contexto do audiovisual, importa também referir o sur- gimento nos últimos anos de séries televisivas distópicas como, entre

outras, The Leftovers, entre 2014 e 2017, Black Mirror, produzida desde 2011,

Westworld, lançada em 2016, ou The Handmaid’s Tale, em exibição desde

2017. Todos estes títulos acabariam por se tornar fenómenos de culto afi- cionado ou de intensa popularidade, numa clara demonstração de que a distopia se tornou um dos elementos fulcrais da narrativa contemporânea nos mais diversos meios.

Mas retornemos aos anos 80. É no fim desta década que se dá um dos acon- tecimentos mais relevantes da história do século XX: a queda do muro de Berlim. É com este evento que a polarização ideológica da Guerra Fria co- nhece, em certo sentido, o seu termo e a globalização parece tornar-se um fenómeno imparável, com a sua lógica de abertura cultural e social. É tam- bém no seu seguimento que surge uma tendência política com algum relevo para a época: a chamada terceira via, preconizada pelo sociólogo Anthony Giddens e implementada por políticos como Bill Clinton ou Tony Blair nos anos 90 do século passado e nos primeiros anos deste século. Ora, é coinci- dentemente com esta tendência política que se dá um fenómeno de matriz utópica designada comummente como bolha dot-com: do pessimismo dos anos 70 e 80 parece passar-se para um otimismo irrefreável alimentado pelas mudanças tecnológicas drásticas e pelo crescimento económico. Contudo, apesar do boost que, cultural e socialmente, este fenómeno impri- miu, ele acabaria por esmorecer e o otimismo ser moderado. Ainda assim, como uma espécie de eco ou reflexo, este otimismo transformador parece ter ressurgido já nos tempos mais recentes nos fenómenos de empowerment ligados às mais diversas causas sociais, em particular a fenómenos e mo- vimentos como o Anonymous, o Occupy e o Me Too – como se a promessa de prosperidade das dot-com se desdobrasse na promessa de liberdade do

empowerment. É como se a figura tutelar do super-herói e do seu extraordi-

nário poder se condensassem, de algum modo, na ação individual de cada cidadão (e, à semelhança dos super-grupos, na sua arregimentação coletiva nos mais diversos movimentos).

Curiosamente, a banda desenhada dos anos 80 acabaria por se tornar um signo muito significativo das movimentações socio-políticas atuais através

de um objeto muito específico: a máscara do protagonista de V for Vendetta, apropriada por movimentos como o Occupy e o Anonymous nas suas mani- festações e protestos, símbolo de reivindicação e revolução. Mas as próprias imagens parecem ter conhecido nestes últimos anos, também elas, uma espécie de pendor distópico – e, quase poderíamos dizer, patológico. Onde podemos ver isso? No contexto dos media digitais, das redes sociais e do

do it yourself. Podemos descrever, a título de exemplo, a apropriação e sub-

versão simbólica e ideológica de duas imagens, ambas com Barack Obama como protagonista: a encarnação de Superman pelo mesmo na ilustração de Alex Ross e o poster de campanha Hope criado por Shepard Fairey, num caso e noutro parodiados com a substituição da imagem do ex-presidente dos EUA pela do atual presidente, Donald Trump. Tanto num caso como no outro, trata-se de exemplos de uma espécie de distopia iconográfica que se verifica em duas dimensões fundamentais do contexto mediático contem- porâneo, as fake news e o data smog: o cidadão está submerso em torrentes avassaladoras de informação cuja veracidade é indecifrável.

Mas se o ecossistema mediático parece, também ele, viver uma espécie de sensibilidade e efetividade distópicas, o próprio ecossistema natural e pla- netário acompanha esta tendência: do medo nuclear dos anos 80 passamos ao medo ecológico do século XXI, com alertas ubíquos sobre o estado de deterioração do planeta. É como se de uma crise energética e bélica passá- ssemos a uma crise ecológica e climatérica, como se da ansiedade extrema de um apocalipse fulminante passássemos a uma lenta e inescapável ago- nia. Na banda desenhada, estes temas, todos eles, continuam a ser assuntos recorrentes. A título de exemplo (dos inúmeros que poderiam ser aponta- dos), aqui ficam dois casos: Watchmen conhece atualmente uma revisitação na série Doomsday Clock; já Y – The Last Man apresenta-nos um mundo do qual todos os seres masculinos, à exceção de um jovem, desaparecem devi- do a uma causa ambiental inexplicada.

Conclusão

A perpetuidade e ubiquidade da distopia no imaginário contemporâneo parecem-nos, por todos os casos enunciados e descritos, inegáveis. A ex- plicação não será linear, mas um argumento que nos parece relevante é precisamente a dinâmica que lhe parece ser intrínseca: se a utopia parece inscrever-se no futuro como uma espécie de ponto ómega que ultrapassa todas as adversidades acumuladas desde a origem da humanidade (o seu ponto alfa), a distopia parece inscrever no futuro um ponto alfa que suce- deria a um ponto ómega em que toda a esperança se esvai. A distopia pode ser vista certamente como um término de um estado de coisas, mas será sobretudo um reinício, um recomeço que sucede a uma fatalidade.

A esta grande popularidade, e relacionada com o argumento anterior, pode- mos associar a dimensão especulativa que a distopia (como a utopia, mas num sentido inverso) propõe: a questão what if? parece fazer parte do seu património intelectual e poiético, aludindo à ideia de uma hora H, um mo- mento em que tudo acaba, ou a uma zero hour, um momento em que tudo recomeça. Em certa medida é nesta dimensão especulativa, que se estende do niilismo mais radical ao existencialismo mais premente, que podemos encontrar as formas do sublime referidas, seja na modalidade individual, de que o super-herói messiânico seria o epítome, seja na forma coletiva, de que o caos cósmico seria a alegoria mais acabada.

Bibliografia

Burke, Edmund (2013). Uma Investigação Filosófica acerca da Origem das

Nossas Ideias do Sublime e do Belo, Edições 70

Kant, Immanuel (1997). Crítica da Faculdade do Juízo, Imprensa Nacional – Casa da Moeda

Longino, Dionísio (2015). Do Sublime, Imprensa da Universidade de Coimbra/ Annablume