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A previsão constitucional acerca da Função Social da Propriedade teve seu fundamento inicialmente reconhecido nas Constituições Brasileiras de 1946 e 1967 (com a Emenda nº 1 de 17 de outubro de 1969)145.

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946146, no seu artigo 147, assentou que “o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social” 147. Posteriormente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, com a Emenda Constitucional de 1969, trouxe novos parâmetros à Função da social da propriedade ao sagrá-la como princípio no seu art. 160, inciso III.148

A partir dos anos 80, tem-se a abertura de uma nova perspectiva política, sob o viés do contexto democrático. A Sociedade passou a ocupar novos espaços de atuação, cujo teor postulava respeito ao cidadão, fato que culminou em importante aporte para os ditames dispostos na ordem constitucional, consubstanciado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988149.

A Constituição Federal de 1988, trouxe parâmetros à Propriedade Urbana, notadamente quanto à esfera da Função Social da Propriedade, em que seu fundamento está sedimentado na seara dos direitos e garantias fundamentais, nos moldes do art. 5°, inciso XXIII150. E, ainda, apresentou critérios para a sua

145 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo III. p. 185. 146 Denominação da Constituição à época.

147 BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946. Rio de Janeiro,

RJ. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 de out. 2019.

148 BRASIL. Constituição (1967). Constituição da República Federativa do Brasil de 1967/Emenda

Constitucional Nº 1, de 17 de Outubro de 1969. Brasília, DF. Disponível em: < BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 de out. 2019.

149 PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo

entre a propriedade urbana imóvel e o direito à Moradia. p. 56.

150 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado

consolidação, ao dispor acerca da política urbana, no artigo 182, parágrafo segundo151.

A preocupação com os contornos do Direito à Propriedade a partir do viés coletivo constituiu novos parâmetros para a utilização do bem. O conceito restritamente privado é redimensionado a uma perspectiva funcionalizada, cuja repercussão carrega pressupostos axiológicos materializados em deveres e direitos reciprocamente considerados.

Bodnar152 leciona que “o direito de propriedade passa a não ser apenas um direito, mas também uma função. Valoriza-se o atendimento aos fins sociais em desprestígio aos interesses egoísticos do titular do direito”.

Silva153 destaca que os pressupostos da funcionalização da Propriedade

dispostos na égide constitucional não se reduzem apenas a limitações ou obrigações ao proprietário, mas adota um princípio motor de mutabilidade da Propriedade capitalista segregacionista. Funcionalizar a Propriedade é considerá-la em sua integralidade, sem descurar do âmbito da desfuncionalização generalizada do processo histórico de urbanização.

A perspectiva da Função Social da Propriedade perpassa necessariamente pelo pressuposto da deontologia do Direito, na tutela de sua conjuntura obrigacional. O direito enquanto preceito regulador, deve ser entendido a partir de sua esfera histórica a fim de ser direcionado para a sua atuação democrática154.

A funcionalização da Propriedade está assentada no processo regulador que desconstrói o senso privado do direito, colocando-o na tutela da esfera pública,

151 PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo

entre a propriedade urbana imóvel e o direito à Moradia. p. 64.

152 BODNAR, Zenildo. Curso objetivo de direito de propriedade. Curitiba: Juruá, 2005, p. 22. 153 SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. p. 74.

154 De acordo com Bobbio “O Direito é uma figura deôntica e, portanto, é um termo de linguagem

normativa, ou seja, de uma linguagem na qual se fala de normas e sobre normas. A existência de um direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de um sistema normativo, onde por “existência” deve entender-se tanto o mero fato exterior de um histórico ou vigente quanto o reconhecimento de um conjunto de normas como guia da própria ação. A figura do direito tem como correlato a figura da obrigação” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 94.).

enquanto direito que, conquanto tenha sua esfera particularizada no indivíduo, seus efeitos são exteriorizados na seara da coletividade155.

Nesses moldes, “a função social da propriedade – e, portanto, sua vinculação social – assume relevo no estabelecimento da conformação ou limitação do direito”156. A Propriedade Urbana é, portanto, despida de sua esfera essencialmente privada, porquanto há um compromisso social intrínseco ao manejo dos direitos de uso e fruição da Propriedade, externalizando a dualidade, poder e dever.

O dever constitucional de funcionalização da Propriedade, no entanto, não se restringe ao particular, sendo necessário suscitar a funcionalização da ação estatal, a fim de democratizar o Acesso à Propriedade. O percurso da desigualdade econômica destinou uma parcela da população à ocupação de espaços informais, em que o direito à Política Urbana foi sendo historicamente segregado, de modo que a natureza da Moradia Informal já nasce desfuncionalizada.

Nesses termos, a funcionalização da Propriedade deve observar a informalidade, e, a partir de seus pressupostos, criar mecanismos concretos para remodulação da Propriedade Imobiliára Urbana, com o escopo de derruir o acesso ao Direito à Propriedade sob o prisma essencialmente monetizado, o que além de não funcionalizar a Propriedade, sonega ao indivíduo o acesso à segurança jurídica da condição de proprietário157.

A seara da Informalidade demandou um maior reconhecimento para a prestação jurídica, social e estatal da Propriedade, uma vez que historicamente a Propriedade é estabelecida por intermédio de um parâmetro de Poder, de modo que seu status de Garantia Fundamental consubstancia a necessidade de funcionalização de seus pressupostos158.

155 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. t. 3. p. 182.

156 MENDES, Gilmar Ferreira. O Direito de Propriedade na Constituição de 1988. In: CAMPOS, Diogo

Leide de; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives Gandra da Silva. A evolução do direito no

século XXI: Estudos em homenagem ao Prof. Arnoldo Wald. Coimbra: Almedina, 2007, p. 78

157 PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo

entre a propriedade urbana imóvel e o direito à Moradia. p. 62.

Nesse contexto, funcionalizar a Propriedade é suscitar a atuação estatal, por intermédio de Políticas Públicas com capacidade de transpor a desfuncionalização natural da Moradia Informal para transformá-la em Propriedade, na tutela de ações de Regularização Fundiária. A atuação estatal diz respeito a sobreposição da esfera social em detrimento dos preceitos econômicos historicamente segregacionistas.

A norma constitucional avocou a sobreposição da esfera social em prejuízo à esfera econômica, ao tutelar a Função Social da Propriedade enquanto direito e garantia do indivíduo, rompendo o protagonismo da tutela essencialmente econômica159.

O interesse social inerente ao Desenvolvimento Urbano repercute essencialmente nas disposições de vivência atinente a tutela da coletividade. Reconhecer que o espaço social não pode ser reduzido a um contexto de Habitação, é justamente o que concede vida a Função Social.

A Função Social da Propriedade antecede ao seu reconhecimento jurídico, pois sendo a Propriedade um instrumento de efetivação do Direito sua tutela está estabelecida na Dignidade do indivíduo como fator antecedente a qualquer vinculação jurídica, ainda que a sua salvaguarda esteja delineada sob um prisma de regulação social por intermédio de normas jurídicas.

“A norma que contém o princípio da Função Social da Propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios constitucionais”.160

É necessário consignar, no entanto, que o Princípio da Função Social da Propriedade não é causa de supressão da Propriedade Privada, ela subsiste como pressuposto, inclusive, do cenário capitalista. “A função social ganha um sentido positivo, pois deve ser dada uma utilidade coletiva à coisa”.161

159 PAGANI, Elaine Adelina. O direito de propriedade e o direito à moradia: um diálogo comparativo

entre a propriedade urbana imóvel e o direito à Moradia. p. 61-62.

160SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33 ed. São Paulo: Malheiros,

2010. p. 288-289.

Nas palavras de Tepedino162, a Função Social da Propriedade, enquanto expressão da carga axiológica dos valores da Solidariedade, Igualdade e Dignidade, tem o condão de estabelecer as liberdades individuais o exercício de acepções funcionalizadas, com o escopo de alcançar interesses de relevância social na tutela da construção do meio ambiente equilibrado.

A Função Social da Propriedade é dotada de um contexto de mutabilidade dos padrões determinados ao contexto econômico vinculado à Propriedade, pois estabelecer sua limitação a um padrão monetário transforma o direito no sistema polarizado, uma vez que a igualdade material não se coaduna com a relação do Desenvolvimento Urbano.

A Função Social da Propriedade corresponde, assim, a um instrumento limitador da sonegação de Direitos frente a tutela econômica, demandando do Estado e do indivíduo atuação positiva para transpor do Poder segregacionista para a constituição de um Direito na tutela de funcionalização da atuação do Estado, enquanto instrumento de consecução da Democracia no tocante ao Acesso à Direitos.

Capítulo 2

DA DIGNIDADE HUMANA E O DIREITO SOCIAL À MORADIA

Este capítulo tratará do fundamento da Dignidade Humana e o Direito social à Moradia no ordenamento jurídico brasileiro.