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O reconhecimento jurídico à Moradia de Laje cumpre o necessário reconhecimento formal ao Fato Social, todavia, seus efeitos não possuem repercussão prática se desacompanhados de um contexto de atuação estatal para regularização fundiária do ambiente.

“O direito de laje ao ser incorporado ao nosso ordenamento jurídico cumpre uma primeira deficiência dos assentamentos ilegais, que é a insegurança da posse, mas que por si só não promove e nem garante a moradia digna”.370

A desigualdade jurídica, e, sobretudo, a desigualdade na atuação estatal no tocante à efetivação do Direito à Moradia perpassa no contexto estrutural de coordenação de outras desigualdades, a partir de um cenário sistemático de segregação do indivíduo pelo seu local de Moradia. Nesse sentido, Gouvea371 destaca

que “a problemática é tão estrutural que acaba, de fato, amplificando outras desigualdades e estruturando as imensas assimetrias que marcam a sociedade brasileira.

A política fundiária deve transcender a uma mera formalização, sob pena de reduzir o fundamento basilar de garantia de direitos revestidos pela norma. O reconhecimento da norma jurídica requer uma postura institucional do Poder Público, mormente porque o aspecto econômico, por vezes, impende a aplicabilidade do direito, sendo a regulamentação jurídica da situação fática mera formalidade. O direito não pode vir desacompanhado de seus mecanismos de aplicabilidade, sob pena de nascer como engodo, que nada acrescenta na realidade dos destinatários372.

370 MATOSINHOS, Ana Paula; FARIA, Edimur Ferreira de. A efetividade do direito real de laje como

instrumento de política pública para acesso à moradia digna. Revista de Direito Urbanístico, Cidade

e Alteridade. p. 68.

371 GOUVEA, Carlos Portugal. Regulação da Propriedade Privada: Inovações na Política Agrária e a

Redução dos Custos de Equidade. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimentos: novos temas. p. 156.

372 GOUVEA, Carlos Portugal. Regulação da Propriedade Privada: Inovações na Política Agrária e a

Redução dos Custos de Equidade. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimentos: novos temas. p. 156.

“A regulação da propriedade privada pode ser considerada como a forma mais essencial de regulação. O caráter central da regulação da propriedade privada para o sistema jurídico não se justifica apenas do ponto de vista acadêmico ou ideológico” 373. O reconhecimento jurídico rompe um cenário de desigualdade jurídica socialmente estruturado. As disfunções econômicas serão inevitáveis no cenário capitalista, no entanto, a capacidade econômica não pode ser relação condicional ao Acesso à Direitos.

A regulação da propriedade privada afeta a integralidade das relações econômicas alterando a tutela de desenvolvimento social e refletindo em novos regimes sociais destinados a salvaguarda de direitos, a fim de iniciar o processo de proteção jurídica ao cenário histórico de informalidade urbana374.

Melo375 assinala que:

“O Direito, sendo fenomenologia sócio-cultural, não cessa de evoluir, adaptando-se a novas realidades e necessidades humanas. Tal se dá pela natureza do homem que, no uso de sua liberdade, ousa negar-se aos fatalismos. Mas a criação do direito novo não poderá estar dependentes apenas da inexorabilidade dos fatos gerados pela tecnologia, nem pode ser guiada apenas por juízos de realidade. A Política Jurídica considera os dados da vida em sociedade como matéria prima de suas considerações teóricas e práticas e não submete suas conclusões a um clima determinista. Tais conclusões, ou escolhas, terão que partir, sobretudo, da aplicação criteriosa de juízos de valor, visto que o Direito não é uma disciplina apenas explicativa mas principalmente uma disciplina normativa que tem por fim último a criação de uma sociedade tão harmoniosa e justa quanto for possível.”

O Direito à Moradia, portanto, depende do resgate da Função Social do Estado, sob a pena do cenário de direito à Moradia Digna vigorar sob a tutela da disfunção social que lhe é inerente, trazendo ao Direito conotações essencialmente utópicas diante de um novel de complexidade urbana que não cessa de evoluir.

Nas palavras de Proudhon.376

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos do Estado Democrático e Estado de Direito.

373 GOUVEA, Carlos Portugal. Regulação da Propriedade Privada: Inovações na Política Agrária e a

Redução dos Custos de Equidade. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimentos: novos temas. p. 158-159.

374 GOUVEA, Carlos Portugal. Regulação da Propriedade Privada: Inovações na Política Agrária e a

Redução dos Custos de Equidade. In: SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Desenvolvimentos: novos temas. p. 158-159.

375 MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas Atuais de Política do Direito. p. 81-82. 376 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 119.

Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1º da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundado377.

Proudhon378 defende que a propriedade “é um direito exterior à sociedade”. Ressalta, ainda, que “a propriedade é o direito de um homem de dispor da maneira mais absoluta de uma propriedade social.” O reconhecimento da Propriedade Privada em contextos fáticos periféricos retira a Sociedade da sua posição de expectadora do Direito.

A ausência de Direito, retira do indivíduo a salvaguarda de seus pressupostos fáticos, marginalizando o seu interior em todos os aspectos segregacionistas do desenvolvimento da Sociedade. Todavia, reconhecer proteção jurídica sem legitimar seu destino finalístico é uma falácia, e, portanto, não transmudará do conceito formal da norma para sua efetiva materialização, ainda que destinado exclusivamente a salvaguarda de Direitos379.

Maricato380 destaca que a construção de uma nova tutela urbanística requer

a superação do distanciamento entre planejamento e gestão. A correlação entre essas esferas constrói um fundamento interdependente em que a Sociedade em sua integralidade é chamada a participar. A problemática deixa de ser endêmica e se torna

377 A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência

social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos do governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe um diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favores o seu pleno exercício (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito

Constitucional Positivo. p. 119-120.).

378PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 49. 379 DALARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 18 ed. São Paulo: Saraiva,

1994.p. 29.

380 MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar foras das ideias. In: ARANTES, Otília.

VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 169.

do espaço urbano em sua totalidade. É necessário romper o cenário de repartição social da Cidade e trazer suas mazelas ao centro da problemática, para que a relação de subordinação e marginalização de uma parcela social seja derruída diante do planejamento que compreenda as nuances locais, sem descentralizar a problemtática apenas a um único nicho social.

“A defesa da urbanização de favelas como forma de efetivação do direito à moradia adequada para todos é o mínimo do exercício de cidadania que se espera de profissionais e instituições comprometidas com a transformação social”.381

Não há como se considerar a Moradia de Laje ou o Direito de Laje a partir de um espaço distópico, é necessário imprimir pressupostos jurídicos e governamentais para a sua atuação, pois “a desordem que tanto criticamos também foi criado por nós. Portanto – e antes de converter a discussão em juízo de culpabilidades -, se fomos capazes de criar o caos, também podemos sair dele”.382

A população que, por vezes, desenvolve-se a partir de um cenário segregado deve encontrar respaldo em atuações estatais a fim de efetivar da Função Social da norma. Não há como exigir do segregado mudança, porque a ele o Direito não se condensa no espaço urbano, é necessário mais do que promover sua previsão normativa, é preciso criar mecanismos para efetivá-lo.