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Considerações sobre as escalas da segregação

Capítulo I – Enfoques sobre a segregação

2. Considerações sobre as escalas da segregação

Uma cidade pode ser segregada com diferentes intensidades em diferentes escalas (Sabatini, 2004). Essa definição da escala em que a segregação é mais intensa em um dado contexto urbano é particularmente relevante por permitir diferenciar um problema metodológico – definição da unidade de análise – de um problema que é teórico, qual seja, a definição de qual é a escala mais importante para o entendimento da segregação em uma certa cidade, ou seja, qual é a escala da segregação mais relacionada com os problemas sociais presentes em um certo contexto urbano (Sabatini, 2004).

Sabatini destaca que o padrão de segregação nas cidades latino-americanas difere de forma significativa de acordo com a escala adotada. Considerando a baixa escala, ou seja, pequenas áreas, observa-se um padrão marcado por dispersão dos mais pobres em pequenos bairros por toda a cidade. Por outro lado, quando se considera uma escala maior, ou seja, uma maior agregação de áreas, verifica-se a aglomeração de famílias pobres nas áreas periféricas (Sabatini, 2004). Essas diferenciações também são observadas no caso do município de São Paulo, como será demonstrado.

Essa distinção entre as escalas permite ainda abordar a questão da micro e da macro segregação, sendo a micro segregação considerada uma escala geográfica mais detalhada (como, por exemplo, o isolamento espacial de determinados grupos sociais no interior de um bairro específico) e a macro segregação uma escala espacial mais abrangente, como os padrões de aglomeração espacial de certos grupos sociais na cidade como um todo (Sabatini, 2001). Esses planos diferenciados podem evoluir de maneira diversa em um mesmo contexto urbano, ou seja, pode haver diminuição da macro segregação e aumento da micro segregação, por exemplo, conforme observado no caso do Chile por esse autor.

A desconsideração ou confusão entre as diferentes escalas em que se manifesta o fenômeno da segregação provavelmente contribuiu para a persistência do modelo radial concêntrico como modelo mais utilizado para a descrição da distribuição espacial dos grupos sociais no município de São Paulo. Conforme apontado no capítulo anterior, diversos autores (Santos,

1979; Vetter e Massena, 1981, entre outros) destacam a existência de um gradiente decrescente de condições de vida e de acesso a serviços do centro – onde residem as classes sócio-economicamente mais favorecidas – em direção às periferias, nas quais moram as classes trabalhadoras em contextos marcados por diversas precariedades. Contudo, estudos desenvolvidos mais recentemente (Marques e Torres, 2005; Caldeira, 2000, entre outros), destacam que a distribuição espacial dos grupos sociais e mesmo a composição social dos mesmos são muito mais complexas, uma vez que a proximidade física entre as classes sociais combina-se de forma complexa (e perversa) com distância social (Sabatini, 2004). O que se pretende mostrar nesse capítulo é que esse modelo radial concêntrico funciona bem como descrição geral dos padrões de distribuição dos grupos sociais em São Paulo, como retrato da segregação em uma escala maior, mas não para uma descrição mais detalhada da realidade, em especial para o planejamento de políticas públicas, por exemplo.

Apesar de ser difícil realizar essas distinções de maneira precisa, cabe destacar que essa atual percepção da maior complexidade da distribuição dos grupos sociais no espaço e mesmo da maior heterogeneidade das situações de pobreza deve-se tanto a mudanças nos paradigmas que orientam esses estudos – relacionando-se principalmente com a questão do declínio das macro-explicações inspiradas no marxismo, como apontado no capítulo anterior – quanto à disponibilidade de novos instrumentais e métodos, como as ferramentas dos Sistemas de Informações Geográficas (SIGs), que permitem um olhar mais detalhado e complexo dos fenômenos sociais no espaço53. Assim, torna-se difícil precisar até que ponto essa complexidade já estava presente anteriormente, mas faltavam as “lentes” disponíveis hoje e também as abordagens preocupadas com explicações intra-urbanas mais precisas, e até que ponto essa complexidade nas distribuições espaciais e composições dos grupos sociais é um fenômeno mais recente estimulado por uma série de alterações na própria condição da pobreza.

53Para uma excelente abordagem da relevância dos Sistemas de Informação Geográfica para o planejamento de políticas públicas, ver Torres, 2005c.

A pobreza, conforme discutido no Capítulo I, é um fenômeno complexo e dotado de múltiplas dimensões. A pobreza e a desigualdade que caracterizam a América Latina têm grande impacto sobre a forma de organização espacial das cidades. Alguns analistas, como Paes de Barros, Henriques e Mendonça (2000) e Rocha (2000), demonstram que apesar do aumento do número de pobres nos últimos anos, houve uma mudança no patamar da pobreza, uma redução, especialmente quando comparamos os números de hoje com aqueles observados na década de 1970. Porém, em contrapartida, a desigualdade – entendida enquanto disparidade de renda – permaneceu bastante estável nas últimas duas décadas, mantendo o país em uma incômoda colocação entre os mais desiguais do mundo. Além disso, os dados apontam para o fenômeno da “metropolização” da pobreza, ou seja, para a concentração da pobreza nas regiões metropolitanas do país, e não mais nas áreas rurais, como acontecia em tempos anteriores.

Como apontam Marques, Gonçalves e Saraiva (2005), apesar de a década de 1990 ter apresentado um saldo econômico negativo, com manutenção de desigualdades espaciais pré-existentes e elevação das desigualdades de renda, muitos indicadores apontam para a melhora dos patamares médios das condições materiais para diversas dimensões sociais na maior parte da cidade. Também é possível observar um maior acesso a bens duráveis por parte da população mais pobre (PNAD, 2003; Torres, 2005). Nesse sentido, é possível levantar a hipótese de uma nova pobreza, marcada por maior desemprego, violência, isolamento social e, ao mesmo tempo, maior acesso a bens e serviços, por transformações nas composições familiares – como redução do tamanho das famílias, queda da taxa de fecundidade, maior ingresso da mulher no mercado de trabalho, aumento da chefia feminina – e por melhores patamares de renda. Essa situação contraditória e aparentemente paradoxal contribui para tornar ainda mais complexa a distribuição dos grupos sociais no espaço.

Nesse sentido, esse capítulo pretende contribuir para preencher algumas lacunas levantadas por esses debates, apresentando diversos indicadores que procuram especificar diferentes escalas da segregação no município de São Paulo. Esses indicadores foram construídos a partir de alguns dados

censitários e a partir de informações oriundas de um survey desenvolvido pelo CEM-CEBRAP com o apoio técnico do IBOPE. Esse survey foi realizado em novembro de 2004 entre os 40% mais pobres do município de São Paulo54, visando enfatizar quatro dimensões principais: condições de acesso ao mercado de trabalho, condições de acesso a políticas públicas, redes de relações comunitárias e comportamento político.

Uma das principais preocupações presentes na própria concepção desse

survey foi o entendimento do impacto da segregação residencial sobre as

condições de vida em geral da população mais pobre do município e sobre as condições de acesso a algumas políticas públicas. Para tanto, a própria amostragem do survey considerou populações pobres residentes em áreas centrais – áreas de renda média bastante elevada – em áreas intermediárias – nível médio de renda familiar mensal – e em áreas periféricas, marcadas por uma menor renda familiar mensal.

Além disso, as informações coletadas por meio desse survey puderam ser georreferenciadas, o que permitiu a criação de diversos indicadores espaciais que serão apresentados nesse capítulo. Todos os questionários foram endereçados55, o que permitiu o cruzamento das informações obtidas por meio do survey com dados oriundos de outras fontes, como os dados censitários, dados relativos à base de favelas e loteamentos clandestinos desenvolvida pelo CEM (Marques, Torres e Saraiva, 2003), entre outros. Os dados também foram expandidos, de modo a representar o total da população pobre do município de São Paulo. Assim, todos os dados aqui apresentados referem-se aos domicílios mais pobres do município de São Paulo, salvo quando houver referência em contrário. Toda a metodologia relativa ao survey é apresentada no Anexo I.

54

O que correspondia, à época, a famílias com rendimento mensal de até R$ 1.100,00. 55

Somente 47 questionários não puderam ser endereçados devido a problemas na declaração da informação do CEP. Todo o endereçamento foi realizado por meio do software de geoprocessamento “Maptitude 4.5”, com base no CEP a 8 dígitos, procedimento não tão detalhado quanto o georreferenciamento baseado em todo o endereço, mas que permite