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Capítulo III – Explorando empiricamente as dimensões que interferem no acesso à infra-estrutura urbana

2. Segregação e políticas públicas

Estudar políticas públicas que, como a de infra-estrutura urbana, configuram-se como cristalizações das ações estatais na cidade é algo extremamente importante no entendimento de diferentes padrões de conformação do território, pois, como afirma Préteceille (2003:10), referindo-se ao caso da metrópole parisiense:

“(...) a qualidade dos espaços residenciais não é o resultado da distância em relação ao centro ou da evolução histórica da cidade, mas é também o efeito das políticas públicas, que podem transformar esta qualidade através da criação de infraestruturas de equipamentos e serviços”.

Ou, como afirmam Vetter e Massena, para o caso brasileiro:

“Em resumo, as ações do Estado em um dado período acabam tendo impactos sobre a segregação residencial, que por sua vez tem implicações importantes na futura distribuição dos benefícios líquidos dos investimentos do Estado” (1981: 53).

Essas citações reforçam a idéia de que a própria atuação do Estado no espaço urbano, por meio das políticas públicas, pode contribuir para reforçar ou reduzir mecanismos de segregação, como apontado no Capítulo I. O Estado tem forte influência na produção desses espaços segregados, uma vez que a sua atuação no ambiente construído, por meio de investimentos em infra-estrutura e/ou outros equipamentos públicos, gera valorizações de certas áreas e desvalorização de outras, fazendo com que a população menos favorecida não possa arcar com os custos das benfeitorias e seja obrigada a se deslocar para outras áreas, geralmente mais distantes e degradadas, desprovidas de infra- estrutura básica e equipamentos públicos, aumentando, desse modo, seus gastos com transporte e sua exposição a variados tipos de risco. As políticas públicas tradicionais também criam e transformam o espaço simplesmente por

sua localização, gerando condições diferenciadas de acesso aos diferentes grupos sociais.

Contudo, a discussão a respeito dos impactos da atuação estatal sobre o ambiente urbano surge com intensidade somente a partir do reconhecimento da presença institucional do Estado nas diversas áreas do município de São Paulo, inclusive nas áreas mais periféricas73. Esse reconhecimento da presença estatal ocorreu especialmente a partir das análises realizadas na década de 1990, que retomaram os indicadores da chamada “década perdida”, a década de 1980 (Faria, 1992). A seguir, são retomados de modo sintético os diferentes modelos explicativos para esses investimentos estatais ocorridos já na década de 1980.

Um dos modelos explicativos, que pode ser denominado genericamente de “modelo do conflito” (Marques, 2003), defende a idéia de que a pressão dos movimentos sociais surgidos nos anos 1970 e início dos anos 1980 em torno de investimentos públicos teria influenciado as políticas estatais, que passaram a ser direcionadas também às áreas mais carentes. Esse modelo, no qual a política (na forma de mobilizações populares) produz políticas (investimentos públicos), esteve presente em estudos como Moisés (1982), Moisés e Martinez-Aliez (1978) e Gohn (1991), e de modo mais complexo em Jacobi (1989) e Sader (1988). Esse foi o modelo predominante de compreensão das políticas no espaço urbano na literatura brasileira de ciências sociais, especialmente nos anos 1980 e o início dos anos 1990. Contudo, análises realizadas sobre os padrões gerais de investimentos estatais na política de infra-estrutura viária demonstraram que esses ocorreram nas áreas periféricas bem antes das mobilizações populares mais expressivas, já no final dos anos 1970 (Marques e Bichir, 2001c).

O segundo modelo encontrado na literatura, com difusa influência pluralista, afirma que os investimentos públicos, especialmente aqueles direcionados às áreas habitadas pela população de mais baixa renda, tenderiam a ser maiores nos momentos anteriores a eleições. Esse modelo do vínculo eleitoral,

73 Inúmeros estudos realizados pelo CEM demonstram essa presença institucional do Estado em diferentes áreas do município de São Paulo, especialmente sob a forma de diversos

encontrado em autores como Fizson (1990) e Ames (1995), tem como pressupostos o comportamento maximizador dos políticos, que visariam aumentar suas chances de reeleição, e a identificação entre os interesses dos políticos e as ações do Estado. No caso específico do Brasil, o retorno das eleições para os executivos locais (governadores em 1982, e prefeitos de capitais em 1985) teria levado a um aumento dos investimentos nas áreas periféricas. Contudo, a proximidade de eleições não explica os padrões gerais de investimentos em infra-estrutura, como demonstrado em Marques (2003). No âmbito desse trabalho, não serão abordadas de forma sistemática as causas da expansão dos investimentos em infra-estrutura para as áreas mais periféricas da cidade, uma vez que inúmeros estudos já abordaram esse tema. Esse capítulo irá procurar apresentar, de modo preliminar, as condições diferenciadas de acesso à infra-estrutura urbana, destacando especialmente as conseqüências da residência em locais segregados. Assim, serão procurados os elementos específicos que podem explicar as variações nos níveis de acesso a serviços urbanos entre os diferentes locais da cidade. Nesse sentido, a falta de infra-estrutura urbana não será considerada um sinônimo de segregação, como apontado no Capítulo I. Ao contrário, a falta de acesso será abordada como uma das conseqüências possíveis acarretadas pela moradia em locais segregados. Cabe então avaliar até que ponto a caracterização dos locais mais pobres e segregados como locais marcados pela ausência do Estado ainda pode ser aplicada nos dias de hoje.

Para tanto, além das análises descritivas de diversos serviços urbanos, foi elaborado um indicador sintético de acesso a serviços urbanos a partir da agregação de diferentes dimensões presentes no questionário do survey. Foram consideradas informações referentes a abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo, energia elétrica, calçamento, iluminação pública, áreas verdes e de lazer e condições de transporte público. As variáveis que compõem o indicador procuraram cobrir um amplo espectro de acesso, desde saneamento básico até equipamentos construídos e qualidade de vida, de modo a verificar possíveis diferenciações de acesso em áreas que aparentemente apresentariam boas coberturas.

Essas dimensões mostraram-se fortemente associadas entre si, indicando que a provisão das mesmas não se dá de modo isolado, mas é parte de uma dinâmica mais geral dos serviços urbanos. Esses serviços urbanos contribuem para a chamada produção do “ambiente construído” – a maioria desses serviços fica incrustada no espaço, adquire uma materialidade – e são serviços que devem chegar à porta dos domicílios (ou mesmo em seu interior), ao contrário do que ocorre no caso dos equipamentos de educação e saúde, por exemplo, que implicam necessariamente deslocamentos da população. Esses aspectos têm impactos sobre as interpretações que podem ser elaboradas a respeito das condições de acesso e também sobre as conseqüências da segregação residencial, conforme será esclarecido mais adiante.

A verificação do impacto da segregação sobre o acesso a políticas públicas relaciona-se ainda com a proposição da dimensão espacial das políticas públicas (Torres, 2005b). Segundo esse autor, as políticas públicas devem considerar não apenas as características individuais dos possíveis usuários, mas também as características do ambiente em que esses estão localizados, uma vez que os padrões de contigüidade, vizinhança e distâncias causam diversos efeitos sobre indivíduos e grupos. Residir em locais altamente segregados pode ter diversas conseqüências, como o isolamento em relação às redes sociais e econômicas mais relevantes, a exposição a diversas condições de risco – tanto sócio-econômicos quanto ambientais –, situações que podem gerar uma série de “externalidades negativas” que têm efeitos significativos sobre os circuitos de reprodução da pobreza (Torres, 2004). Essas análises indicam, por exemplo, que indivíduos de condições sociais idênticas, mas localizados em regiões distintas da cidade, tendem a ter acessos bastante diferenciados a serviços, bem como ao mercado de trabalho, ao mercado imobiliário, entre outros (Torres, et. al. 2005; Durlauf, 2001; Brooks-Gunn & Duncan, 1997; Yinger, 2001).

No âmbito desse trabalho, não há elementos suficientes para testar em profundidade essa hipótese dos “efeitos de vizinhança” associados às áreas segregadas – para tanto, seria necessário realizar estudos no nível das próprias comunidades segregadas, no sentido de avaliar os diversos capitais disponíveis, as estratégias de sobrevivência e de mobilização de recursos,

como desenvolvido em uma série de estudos mais próximos do campo da antropologia (Filgueira, 1998; Almeida e D’Andrea, 2004; Gurza-Lavalle e Castello, 2004; Pavez, 2006). Contudo, é possível verificar uma outra dimensão, aquela que se refere ao acesso aos serviços públicos74. Para tanto, serão analisadas as condições diferenciadas de acesso à política de infra- estrutura urbana segundo os diversos indicadores de segregação elaborados, conforme apresentado a seguir.