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Constituído Filho de Deus com poder (Rom 1,3-4)

No documento Ressurreição e fé pascal (páginas 71-76)

O acontecimento pascal nos enunciados de fé

3. Constituído Filho de Deus com poder (Rom 1,3-4)

As duas últimas passagens analisadas (Rom 4,25; 1 Cor 15,3b-5) conduzem-nos a uma etapa relativamente arcaica da formação da sote- riologia apostólica do querigma pascal. As comunidades judeo-cristãs procuravam expressar o conteúdo religioso e cristológico da ressurreição de Cristo através de uma releitura dos livros sagrados, à luz do aconteci- mento pascal. Mas podemos precisar ainda melhor este processo de reflexão pela observação atenta de um fragmento pré-paulino de primor- dial significado, que nos foi conservado na praescriptio da carta aos Romanos, sobre o Evangelho de Deus, o qual

"diz respeito a seu filho, nascido da estirpe de David segundo a carne, constituído filho de Deus com poder pela ressurreição dos mortos, segundo o Espírito de santidade" (Rom 1,3-4).

O Apóstolo expõe o conteúdo da Boa Nova, da missão apostólica dirigida " a todos os povos", apelando para o motivo da ressurreição, como seu fundamento último. Uma estrutura de pensamento paralela já se encontra no exórdio da carta aos Gálatas, onde Paulo justifica a origem do seu ministério, afirmando ser "apóstolo, não da parte dos homens, nem por intermédio de um homem, mas por Jesus Cristo e Deus-Pai, que o ressuscitou dentre os mortos" (Gal 1,1) l47. Em ambas as passagens a ressurreição é evocada como justificação do Evangelho anunciado pelo Apóstolo.

Desde os inícios do nosso século que a crítica literária reconhece nesta unidade um substrato tradicional pré-paulino. Hoje admite-se unanimemente que o enunciado antigo recebeu adições no decurso da sua

1 4 6 C f . K . L E H M A N N , O.C., 1 5 5 S S ; S . V I D A L , O.C., 1 8 5 ; J . S C H M I T T , DBS 1 0 . 5 1 1 - 5 1 2 .

transmissão orai, até ao momento da sua fixação por escritol4s. A forma original, segundo a exegese mais recente, afirmava predicativamente de Cristo:

"nascido da estirpe de David,

constituído filho de Deus pela ressurreição dos mortos".

Assim reconstituído, o enunciado distingue-se pelo tom anafórico e pelo conteúdo gradual e simétrico: dois particípios substantivados (ho genomenos/ho horistheis), determinados por uma cláusula circunstan- cial, introduzida por ek (ek spermatos David/ex anastaseôs nekrõn). A pregação participial faz parte da linguagem formal dos textos religiosos da antiguidade l41'. O mesmo se diga do paralelismo entre o v.3 e o v.4 e da colocação do verbo no princípio da frase, que são reflexos do estilo poé- tico judaico. As adições posteriores não alteraram o teor original desta estrutura clássica: nem a antítese kata sarka katapneuma hagiôsynès, nem a cláusula redaccional en dynamei.

A antítese''segundo a carne" ' 'segundo o espírito de santidade'' é considerada por certos exegetas como adição redaccional de Paulo ao enunciado tradicional l5°; outros afirmam que esta oposição se não adequa à formulação tipicamente paulina "carne-espírito", mas corres-

Mx Cf. A. SF.EBERG, Der Katechismus der Urchristenheit. Mit einer Einfuehrung von F. Hahn, Muenchen 1966 (= Leipzig 1903). 61-62; 75-76; H. SCHLIF.R, Der Roemer- hrief, Freiburg i. Br. 1977, 23-27. A bibliografia sobre Rom 1,3-4 é muito vasta.

Remetemos para G. R U G G I E R I , II Figlio di Dio Davidico. Studio su/la storia delle tradizioni contenute in Rom. 1,3-4, Roma 1968; J. D.G. DUNN, "Jesus-Flesh and Spirit;

An Exposition of Romans 1: 3-4' ', JTS 24 (1973) 40-68; X. PIKAZA, "Constituído Hijo de Dios en la resurrección (Roni 1,3-4)". CuBi 32 (1975) 197-206; H. M E R K L E I N , « c . . 13. n.48; M. THEOBALD, ' " D e m Juden zuerst und auch dem Heiden'. Die paulinische Auslegung der Glaubensformel Roem I , 3 f ' , em P.G. Mueller W. Stenger (ed.).

Kontinuitaet und Einheit. Fuer F. Mussner. Freiburg-Basel-Wien 1981, 376-392; J. M.

D I A Z R O D E L A S , ' ' Rom 1,3-4; contenido y función de una afirmación cristológica", CuBi 8 ( 1 9 8 3 ) 5 0 - 8 1 .

I4'' Cf. G. DELLING, "Gepraegte partizipiale Gottesaussagen in der urchristlichen

Verkuendigung", em F. Hahn T. Holtz N. Walter (ed.), Studien zum Neuen

Testament und zum hellenistischen Judentum. Gesammelte Aujsaetze / 950-1V6H, G ö d -

ringen 1970, 401-416; F. CRUF.SF.MANN, Studien zur Formgeschichte von Hymnus und Danklied in Israel. Neukirchen/Vluyn 1969,83-154.

15,1 Cf. E. LINNEMANN, "Tradition und Interpretation in Roem I , 3 F , EvTh 31

(1971) 264-275; K . W E N G S T , o.e.. 112s; P . V I E L H A U F . R . O . Í . . 30s; J . B E C K E R , o.e.. 20-24; S . V I D A L , o . e . . 2 1 1 - 2 1 7 .

ponde às categorias espaciais judeo-helenísticas, testemunhadas nos livros do Novo Testamento, que dividem o cosmos em duas esferas: uma superior e outra inferior (cf. 1 Tim 3,16; 1 Ped3,18;4,6)1 5 1; outros, por fim, distinguem dois estádios na história da tradição: o primeiro, sem a antítese, com origem no judeo-cristianismo palestinense; o segundo, com a adição da antítese, próprio do judeo-cristianismo helenista l5;!. Destas hipóteses de solução, a primeira enfrenta a dificuldade de explicar a expressão "segundo o espírito de santidade", que não se enquadra na linguagem paulina habitual, onde a locução katapneuma jamais aparece complementada com qualquer elemento especificativo. É certo que não se conhecem senão dois textos extra-bíblicos que utilizam a expressão pneuma hagiôsvnès: o Testamento de Levi (18,1 s) e o amuleto mágico de Acre, no qual o "espírito de santidade" corresponde à " g l ó r i a " (doxa) de Deus Mas é exactamente esta correlação que constitui a chave de interpretação da teologia judeo-helenística, que distingue os atributos fundamentais de Deus ("santidade" e " g l ó r i a " ) dos restantes aspectos

i comuns que representam a sua essência ("grandeza", "soberania",

" f o r ç a " , " p o d e r " ) . O "espírito de santidade" designa, naquela teolo- gia, a esfera própria de Deus, a sua transcendência 1 5 4. 0 mesmo sentido deverá ter a expressão no nosso texto e por isso julgamos que se deva postular para a antítese uma origem de matriz judeo-helenística. A ser assim, pela locução "segundo a carne" devemos entender a precaridade

151 Esta é a interpretação de E. SCHWEIZER. " R o e m 1,3f und der Gegensatz von Fleisch und Geist vor und bei Paulus", em Neotestamentica. Deutsche und englische

Aufsaetze 1951-1963, Zuerich Stuttgart 1963, 180-189; E. Schweizer afirma que, sob

o influxo do helenismo, a oposição veterotestamentária "canie-espirito" foi radicali- zada num sentido espacial e cosmológico, tendo-se chegado, finalmente, à evolução do esquema horizontal tipicamente judaico (éon presente éon futuro) para o esquema vertical helenistico (mundo superior mundo inferior). Este ensaio exerceu grande influência sobre a exegese posterior. Cf. F. H A H N , o.e., 252; W. K R A M E R , o.e., 105s; J . B L A N K . o.e.. 250s.

Esta é a tese defendida por H . S C H L I E R , " Z U Roem, l , 3 f ' , e m H. Baltensweiler B. Reicke (ed.). Neues Testament und Geschichte. Zuerich Tuebingen 1972, 207- - 2 1 8 ; id.. Der Roenwrbrie/. 2 5 - 2 7 . A crítica recente tem-se mostrado favorável a esta t e s e . C f . E . K A F S E M A N N , D i e R o e i n e r . T u e b i n g e n 1 9 7 3 , 8 s ; H . - J . V A N D E R M I N D E , Schriß

und Tradition hei Paulus. Muenchen Paderborn Wien 1 9 7 6 . 40s; J . S C H M I T T , DBS 1 0 . 5 0 2 .

C f . E . S C H W E I Z E R , a.c.. 1 8 0 ; E . P E T E R S O N , " D a s A m u l e t v o n A c r e " , e m

Fruehkirche. Judentum und Gnosis. Studien und Untersuchungen. Rom - Freiburg

Wien 1959, 346-354.

da natureza humana, em contraste com a condição nova do Ressuscitado, que se encontra na esfera de Deus.

A cláusula " c o m p o d e r " (en dynamei), que alguns autores consi- deram pré-paulina l 55,é muito provavelmente uma adição redaccionall5h. Não resta dúvida que a expressão (en dynamei) acarreta uma sobre- carga para a estrutura simples do enunciado tradicional. Por outro lado, tanto na forma como no conteúdo, este dado encontra bons paralelos nas cartas de Paulo (cf. 1 Tes 1,5; 2 Tes 1,11; 1 Cor 2,5; 6,14; 15,43; 2 Cor 6,7; Rom 15,13). A dificuldade está no sentido preciso a atribuir à locução: ligá-la directamente ao título "Filho de Deus", designando o poder com que o Filho foi constituído mediante a sua ressurreição, ou antes ligá-la ao particípio "constituído", exprimindo nesse caso o poder que o Pai manifestou ao ressuscitar o Filho. Na segunda interpretação, o Apóstolo afirma que Cristo, pela ressurreição dos mortos, foi simples- mente constituído ou declarado filho de Deus l57. Este título será então sinónimo de "Senhor''(kyrios), que noutros textos designa Cristo enquanto ressuscitado (Fil 2,6-11; Ef 1,18-21; Act 2,32-35; 13,23-34), numa releitura cristológica do SI 2,7 l5ii. Trata-se da filiação de Jesus, não em virtude da sua procedência eterna do Pai, mas enquanto pela incar- nação se tornou para nós Filho de Deus.

Todavia, como já tivemos ocasião de explanarl5y, com esta expres- são o Apóstolo não entende designar apenas o poder que o Pai manifes- tou no acontecimento pascal. Nela inclui também o poder que Cristo recebeu do Pai, não para sair vitorioso da morte, mas para nos dar uma vida nova, dado que pela ressurreição se tornou "espírito vivificante" (1 Cor 15,45). Deduzimos esta interpretação não só do lugar que a expressão ocupa na frase — em que parece determinar o título "seu filho", que a precede imediatamente - , mas a partir de todas as passagens paralelas, nas quais o conceito do poder adquirido por Cristo na sua ressurreição ocupa um lugar central (cf. 1 Cor 6,14; 2 Cor 13,4; Rom 6,4; Fil 3,10; Ef 1,19).

155 Cf. F. H A H N . o.c.. 252; J. B L A N K , O.C.. 250s; E. LINNF.MANN, a.c.: E. KARSF.- M A N N , O.C.. 1 0 .

156 C f . E. SCHWEIZER,A.c.. 180; W. KRAMER,O.C.. 107; H.SCIILIFR.í/.C.. 209-211;

id.. DerRoemerbrief, 24s; K. W F . N G S T , 113s; P. V I E L I I A U E R . O . C . , 3 1 ; J. B E C K E R , o.c.. 23; J. S C H M I T T , DBS 10,502.

157 Cf. M.-E. BOISMARD, " C o n s t i t u é fils de Dieu (Rom 1 , 4 ) ' R B 60 (1953) 1-17.

I5S Cf. P. BEASLEY-MURRAY, " R o m a n s 1: 3f: an Early Confession of Faith in thc

Lordship of J e s u s " , TyndBM (1980) 147-154. "" Cf. supra, pp. 28-29.

Os mencionados desenvolvimentos do enunciado primitivo des- tinam-se a corrigir a cristologia arcaica do judeo-cristianismo palesti- nense ,WI. Com efeito, a génese daquela fórmula encontra-se na releitura judeo-cristà da profecia de Natã sobre o descendente de David:

"Quando os teus dias estiverem completos e vieres a dormir com teus pais, suscitarei (anastèsô) a tua linhagem (to sperma sou) após ti, gerada das tuas entranhas (ek tès koilias sou), e estabelece- rei para sempre o seu trono. Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho" (2 Sam 7,12-14).

A fórmula de Rom 1,3-4 reflecte a exegese que a tradição rabínica fez desta passagem através dos tempos 161. A semelhante utilização da tradição no enunciado tradicional talvez já faça referência o Apóstolo no v.2, ao falar do evangelho de Deus "prometido por meio dos seus pro- fetas nas Sagradas Escrituras".

Após o exílio, os textos representativos da tradição das promessas a David acentuam cada vez mais a dimensão escatológica, centrada na esperança de uma figura concreta (cf. Jer 33,14-16; Zac 3,8; 6,12; 9,9; 1 Cr 17,11). A exegese judeo-cristã entendeu a profecia de Natã como referência ao acontecimento pascal: o verbo anistasthai ("suscitar") anuncia a "ressurreição" de Cristo que "pela (ex) ressurreição dos mor- tos" recebeu a filiação divina prometida ao rei-messias. A razão desta interpretação reside no uso frequente que na tradição regal-messiânica se faz do verbo anistasthai, que tanto significa " s u r g i r " , "fazer surgir", como "ressuscitar" (2 Sam 7,12; 1 Cr 17,11; Is 11,10; Jer 23,5; 37,9 LXX; cf. 4Q F1 1, 10-13; Sal Salom 17,21.42;TgIs 11,10; TgJer 30,9)l62. Segundo aquela tradição, o descendente de David havia de exercer um domínio universal sobre todos os povos (cf. SI 2.18.72.110; Gen 49,10; Is 11,10; 55,3-5). A dimensão universalista do messianismo bíblico e judaico favoreceu, sem dúvida, a formulação do domínio universal de Jesus, exaltado como "Filho de Deus" na sua ressurreição dos mortos. As adições posteriores marcam a progressão do messianismo terreno

"'" Cf. F. MANNS, " U n e formule de foijudéo-chrétienne: Romains 1,3-4", SBFA 12 (1977)43-51.

Cf. D. C. DULING. " T h e Promises to David and their Entrance into Christia- nity Nailing down a Likely Hypotesis", NTS 2 0 ( 1 9 7 3 / 7 4 ) 5 5 - 7 7 ; C. B U R G E R , Jesus

ais Davidssohn, Goettingen 1970.

do "filho de David" para o messianismo transcendental do "Filho de Deus" IW.

Pode concluir-se, deste modo, que um dos enunciados mais arcai- cos das primitivas comunidades cristãs seja a ressurreição de Jesus apre- sentada, à luz das tradições messiânicas do Antigo Testamento e do judaísmo sobre o descendente de David, como o acontecimento central da fé cristológica, o acontecimento pelo qual Jesus é constituído Senhor universal - o Senhor confessado na fé e proclamado na missão.

No documento Ressurreição e fé pascal (páginas 71-76)