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Fórmula cristológica

No documento Ressurreição e fé pascal (páginas 45-71)

O acontecimento pascal nos enunciados de fé

2. Fórmula cristológica

No parágrafo precedente tratámos da fórmula tradicional que cele- bra o poder e a epifania de Deus no acontecimento pascal. As passagens comentadas afirmam ou supõem o facto da ressurreição de Jesus, mas não fazem qualquer referência à sua paixão e morte. E é natural que assim seja, pois o que os textos acentuam é a acção de Deus sobre Jesus e não a acção dos homens. Mas há um tipo de formulações antigas construídas com base na antítese "morte-ressurreição". Denominamos este tipo genericamente como fórmula cristológica, por ter Cristo como sujeito.

A antítese relativa a Jesus "morto e ressuscitado" é atestada, por sua vez, sob duas formas: uma, breve, que não abrange senão os verbos da paixão e da ressurreição (1 Tes 4,14; Rom 8,34; 14,9; cf. Act 17,3; Apoc 2,8); outra, mais extensa, que tende a precisar o conteúdo salvífico da cruz e da ressurreição (Rom 4,25; cf. 1 Tes 5,10; 1 Ped 3,18). Chamaremos à primeira "fórmula cristológica simples" e à segunda "fórmula soteriológica".

A F ó r m u l a c r i s t o l ó g i c a s i m p l e s

Aantítese "morte-ressurreição", sem qualquer interpretação sote- riológica, é atestada no escrito mais antigo do Novo Testamento, na seguinte frase:

" S e cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há-de levá-los em sua compa- nhia" (1 Tes 4,14).

profeta escatológico , morto e ressuscitado. Assim R. PESCH, " Z u r Entstehung des Glaubens an die Auferstehung Jesu. Ein Vorschlag zur Diskussion", TQ 1 5 3 ( 1 9 7 3 ) 2 0 1 - - 2 2 8 , 2 7 0 - 2 8 3 ; K . B E R G E R , Die Auferstehung des Propheten und die Erhoehung des

O Apóstolo pretende' 'remediar as deficiências de f é " dos Tessalo- nicenses (cf. 3,10), dando-lhes instruções concretas sobre um problema especial, a saber, o destino dos mortos (4,13-18). Alguns membros da jovem comunidade cristã viviam angustiados e tristes devido à incerteza sobre a sorte dos que morreram antes da parusia de Cristo. Paulo exor- ta-os, fundamentando-se na fé sobre a ressurreição de Cristo (v. 14) e num dito tradicional apocalíptico sobre a precedência dos mortos em relação aos vivos na vinda do Senhor (vv. 15-17). A argumentação não é parti- cularmente consequente, na relação da apódose (v,14b) com a prótase (v. 14a)62. A quebra de ritmo e de lógica na construção da frase supõe con- dicionamentos literários, que poderão ter sido impostos por uma fórmula pré-paulina, sugerida pela linguagem arcaica utilizada: a antítese "morte- -ressurreição" — sem qualquer interpretação soteriológica-, a singular ocorrência do verbo anistèmi— que em Paulo não se refere senão aqui à ressurreição de Jesus — e o próprio nome " J e s u s " , que não se impõe pelo contexto63. Todavia alguns autores hesitam em considerar a fórmula como tradicional64; mas reconhecem, no mínimo, que a estrutura da frase foi modelada por Paulo com referência a uma fórmula tradicional65.

A fórmula é introduzida com o verbopisteuein, como noutros casos similares (1 Cor 15,2; 2 Cor 4,13; Rom 10,9), que fazem parte do que- rigma tradicional. O nomensubjecti do enunciado, Ièsous, sem qualquer aposição, justifica-se apenas pela sua presença na fórmula tradicional, não pelo contexto, onde se lêem os sinónimos " S e n h o r " (vv 15.16.17) e " C r i s t o " (v.16)66. Não menos tradicional é a antítese constituída por dois membros opostos: "morreu e ressuscitou" (apethanen kai anestè). O tema da "morte e ressurreição", com boa atestação no N.T., é trans-

62 Cf. T . H O L T Z , o.e., 1 8 9 , n. 2 3 5 : " D e uma persuaçào subjectiva deduz-se uma certeza objectiva" (Dobschuetz). A prótase exerce a função de uma frase causal.

6 3 H . - F . R I C H T E R , Auferstehung und Wirklichkeit, Berlin-Augsburg 1969;

S . V I D A L , 1 2 7 - 1 4 3 .

6 4 W . K R A M E R , o.e., 2 5 ; K . W E N G S T , o.e., 4 5 - 4 6 ; T . H O L T Z , o.e., 1 9 0 .

65 Assim P. S I B E R , o . e . , 23-26; W. H A R N I S C H , Eschatologische Existenz, Goettin-

gen 1973, 32-33; G. L U E D E M A N N , o.e.. 234-235; T. H O L T Z , o.e., 190; Cf. N . H Y D A H L , "Auferstehung Christi — Auferstehung der Toten (1 Thess 4,13-18)", em S. Pedersen (ed.), Die paulinische Literatur und Theologie, Arhus-Goettingen 1980, 119-135.

66 Segundo D. M. S T A N L E Y , o.e., 86, o nome " J e s u s " sugere a origem palesti- nense da fórmula. Ao contrário, W. HARNISCH,,q.c., 37-38, vê aí um motivo polémico. Por seu lado, T. H A U T Z , o.e.. 190-194, retém como incerta a proveniência do nome

" J e s u s " de uma fórmula antiga, não vendo qualquer significado na mudança de sujeito da apódose em relação à prótase.

mitido quer numa estrutura simples, apenas com os verbos da paixão e ressurreição opostos mediante a partícula kai tomada no sentido adver- sativo (1 Tes 4,14; 2 Cor 5,15; Rom 6,9; 7,4; 8,34; cf. Act 4,10; 5,30; Mc 6,16 par.), quer numa forma determinada pelo conteúdo salvífíco da cruz e da ressurreição, designadamente valorizando já a cláusula do sofrimento redentor (Rom 4,25; cf. 1 Cor 15,3b-4; Mc 8,31 par; Lc 24, 7.46). O estudo comparado destes diversos fragmentos leva-nos a afirmar a anterioridade da fórmula breve em relação à fórmula longa67. A men- ção sucinta da morte e ressurreição não se enquadra no género dos enun- ciados destinados a recapitular a história da salvação, mas obedece a um objectivo doutrinal, e mais precisamente messiânico, ao serviço de uma cristologia em formação e desenvolvimento 6K.

A fórmula constituída pelos dois membros antitéticos não resulta da confluência de enunciados primitivamente independentes, nem deve ser considerada como criação da primitiva comunidade cristã. Na ver- dade, ela reproduz o tema veterotestamentário do Deus que " f a z morrer e viver, que faz descer ao Sheol e daí subir' ' ( 1 Sam 2,6; Dt 32,39; SI 30,4; Tob 13,2; Sab 16,13). Aplicando a Jesus a teologia da eleição e da pro- tecção do justo perseguido, mas elevado e reabilitado, o judeo-cristia- nismo compreendeu a paixão de Cristo como uma "humilhação" e a sua ressurreição como uma "elevação" (cf. 1 Sam 2,7-8; SI 113, 7-8; Lc 1,52) O acontecimento pascal começou deste modo a ser expresso mediante o passivo divino ou teológico de um verbo da ressur- reição (egeirein ou anistènai) determinado pelas preposições ek ou apo (cf. Mt 14,2; 27,64; 28,7), seguidas do plural nekrôn, significando que a obra de Deus sobre Jesus se traduziu numa " s u b i d a " a partir da esfera ou do reino da " Morte". O tema da ' 'elevação' ', atestado explicitamente no verbo hypsousthai ("ser elevado") na forma do passivo divino (Fil 2,9; Jo 8,28), no fragmento antigo de Rom 1,3-4 e nas fórmulas cul- tuais (1 Cor 12,3; 16,22), nasceu como objecto de oração (cf. 1 Ped3,22), tendo-se transformado em motivo da reflexão apostólica. Na mesma perspectiva deve interpretar-se o enunciado antitético, onde a morte de

h l Cf. J. SCHMITT. " L e "Milieu' littéraire de la 'Tradition' citée dans I C o r . XV.

3b-5", 169-184.

M C f . J . S C H M I T T , DBS 1 0 . 4 9 9 .

"" Cf. G. W. E. NlCKKLSBURG, Resurrection. Immortality and EternaI Life in

Intertestamental Judaism. Cambridge London 1972,48-11 1; J. ROLOFF, " A n f a e n g e

der soteriologischen Deutung des Todes Jesu (Mk 10,45 und L k 2 2 , 2 7 ) " , NTS 19 ( 1972/ 73) 38-64.

Cristo não reveste aspecto de fraqueza, mas é considerada como acção salvadora de Deus, que "entregou" o seu Justo (1 Cor 11,23; Rom4,25) a fim de o exaltar70.

O primeiro elemento do enunciado é constituído pelo verbo apethanen, termo técnico da tradicional "fórmula de morte": "Cristo morreu por n ó s " (Christos hyper hèmôn apethanen), com toda a proba- bilidade transmitida na catequese de forma estereotipada (cf. 1 Tes 5,10;

1 Cor 8,11; 2 Cor 5,14-15; Gal 2,21; Rom 5,6-8; 14,15), que acusa a influência de Is 53,1-12 7I. Esta fórmula corresponde ao tema da " e n t r e g a " (paredothè) e, como ele, interpreta a morte de Cristo em sentido soteriológico (hyper hèmôn). Todavia, nada nos leva a concluir que o enunciado dos membros antitéticos seja posterior ao enunciado do membro único, ou que o tema da " e n t r e g a " (paredothè) seja secundário em relação ao tema da " m o r t e " (apethanen)72. Os meios judeo-cristãos palestinenses deverão ter expresso a fé inicial em razoável variedade de fórmulas.

O segundo elemento é formado pelo intransitivo anestè, que, referido à ressurreição de Jesus, é um hápax no epistolário paulino. Alguns autores defendem que este verbo pertence à terminologia original da fórmula tradicional73. Outros, pelo contrário, argumentando a partir do contexto (v. 16a), que pode ter determinado a escolha deste termo, têm dificuldade em retê-lo como testemunho da linguagem tradicional primi- tiva 74. De qualquer modo, o uso cristológico do verbo anastènai faz parte da linguagem tradicional dos sumários da paixão (Mc 8,31; 9,31; 10,34; Lc 18,33; 24,7). O vocábulo em apreço não é aqui utilizado para assina- lar, em contraposição com o verbo egeirein, que Jesus se ressuscitou a si mesmo, no sentido joanino (cf. Jo 10,17), como interpretam alguns

70 Cf. W . P O P K E S , Christus traditus, Zuerich 1967, 153-295; J . S C H M I T T , " L e 'Milieu' littéraire de la 'Tradition' citée dans I Cor., XV, 3 b - 5 " , 172-177; id., DBS 10, 495-501.

71 Cf. K. W E N G S T , o.e., 78-86; S. V I D A L , o.e.. 261-288.

12 Cf. J. SCHMITT, " L e 'Milieu' littéraire de la 'Tradition' citée dans I Cor., XV,

3 b - 5 " , 175.

73 Assim W . H A R N I S C H , O. C„ 3 2 ; S . V I D A L , o.e., 1 3 7 .

74 Cf. P . SLBER, o.e., 25; G. L U E D E M A N N , Paulus, der Heidenapostel, I: Studien zur Chronologie. Goettingen 1980,235. O mesmo parecer é expresso por B. Rigaux e

J. Schmitt no diálogo entre os dois, na sequência da comunicação ao congresso romano de 1970 apresentada por J. SCHMITT, " L e 'Milieu' littéraire de la 'Tradition' citée dans I Cor.. XV, 3 b - 5 " , 181-182.

comentadores75. Efectivamente, para Paulo, como para qualquer judeu, a ressurreição é obra de Deus-Pai. Assim o entendeu ele ao mencionar o nome de " D e u s " na apódose (v. 14b) e ao utilizar de novo este termo no v.l6, a propósito da ressurreição dos mortos.

No sentido transitivo, o verbo anastènai ocorre na apresentação da mensagem pascal dos Actos (2,42.32; 3,26; 13,32.34; 17,31), a partir da releitura judeo-cristã da profecia de Natã (2 Sam 7,11-14), testemunhada em Rom 1,4, onde de Jesus se afirma que f o i ' 'estabelecido Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos" (ex anastaseôs nekrôn). O anúncio profético, segundo o qual Deus havia de "suscitar" (qwm — anistasthai) um descendente da linhagem de David, foi interpretado pela exegese judeo-cristã em referência ao acontecimento pascal. Pela sua ressurreição (ex anastaseôs), Jesus recebeu a filiação divina prometida ao rei-messias76. No Novo Testamento o anastènai cristológico aparece com frequência ligado ao título de ''filho do homem'' (Mc 8,31; 9,9-10. 31; 10,34; Lc 18,33; 24,7), que lhe transmite a sua coloração escatológica (cf. Act 10,41-42).

Somos portanto levados a concluir que o segundo membro de enun- ciado antitético de 1 Tes 4,14 significou, desde a sua formação inicial, a exaltação de Jesus como salvador escatológico, em conformidade com a releitura judeo-cristã de 2 Sam 7,12-14. O Apóstolo atesta a fórmula tradicional no contexto da esperança da salvação futura, como já acon- tecia nas fórmulas teológicas anteriormente analisadas (1 Cor 6,14;

15,15; 2 Cor 1,9; 4,14; Rom 8,11). A ressurreição de Jesus demonstra o poder salvador de Deus e como tal fundamenta a esperança cristã.

O enunciado antitético, na sua forma breve, semelhante ao anterior, é atestado na carta aos Romanos, numa exortação à unidade dos fiéis, que se fundamenta na relação com o Senhor e no juízo escatológico:

"Ninguém de nós vive e ninguém de nós morre para si mesmo, porque se vivemos é para o Senhor que vivemos, e se morremos é para o Senhor que morremos. Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor. Com efeito, Cristo mor- reu e voltou à vida para ser o Senhor dos mortos e dos vivos" (Rom 14,7-9).

7 5 C f . G . K E G E L , o.e., 3 0 ; K. W E N G S T , o.e.. 4 6 .

7,1 Cf. J. SCHMITT, DBS 10, 5 0 2 - 5 2 4 ; C. MACHOLZ, " D a s ' P a s s i v u m d i v i n u m ' ,

A imagem da servidão social, já anteriormente utilizada para des- crever a existência cristã em união com Cristo ressuscitado (Rom 6,

15-18), leva o Apóstolo a evocar aqui de novo o fundamento da relação do cristão com o Senhor glorioso: "Cristo morreu e voltou à vida" (Christos apethanen kai ezèsen). Na base da argumentação está o con- ceito do Senhor escatológico, juiz universal dos mortos e vivos. O sujeito recebe a designação de " C r i s t o " , que parece pertencer ao enunciado tra- dicional. A função messiânica de Jesus remonta à comunidade de expres- são aramaica; porém, a denominação pessoal do Ressuscitado com o nome " C r i s t o " , em posição enfática, fica a dever-se às igrejas vindas do judaísmo helenístico 77.

O segundo elemento da antítese, constituído pelo verbo zèn, justi- fica-se a partir do contexto, onde este termo ocorre com profusão ( - 6 vezes nos vv. 7-9). Efectivamente, o motivo da vida nova faz parte da parenese paulina (cf. 1 Tes 5,10; 2 Cor 5,15; 6,9; Gal 2,19) e apostólica (1 Ped 2,24; 1 Jo 4,9), pelo que se justifica a sua atestação em diver- sos enunciados querigmáticos (2 Cor 8,4; Apoc 2,8) e catequéticos (Mc 16,11; Lc 24,5.23; Act 1,3), de elaboração mais recente.

Apesar desta alteração de carácter redaccional, a passagem con- serva a estrutura e o sentido da fórmula antitética tradicional, segundo a qual Jesus, pela ressurreição dos mortos, é constituído o Senhor esca- tológico.

Também a forma participial confirma as conclusões a que chegámos pela análise precedente. Com dois particípios opostos antiteticamente, o Apóstolo apelida Jesus como "aquele que morreu e ressuscitou" (ho apothanôn kai ho egertheis), sem qualquer especificação de natureza soteriológica (2 Cor 5,15; Rom 8,34; cf. 1 Tes 5,10; Rom 6,9; 7,4). Sem dúvida, o dúplice particípio estereotipado está para a fórmula breve assim como o particípio teológico está para a afirmação simples do facto pascal. Cristo é designado como agente da obra salvífica7S. A redacção paulina interpreta a fórmula cristológica à luz dos motivos tradicionais da exal- tação e intercessão (2 Cor 5,16-17; Rom 8,31-39; cf. Heb 7,25; 9,24; SI 110,4), projectando assim o conteúdo do enunciado no horizonte esca- tológico: pelo acontecimento pascal, Jesus foi exaltado como salvador definitivo.

7 7 C f . J . S C H M I T T , DBS 1 0 , 4 9 5 ; M . H E N G E L , a.c., 1 4 6 - 1 4 7 .

78 Cf. J. SCHMITT, " L e ' M i l i e u ' l i t t é r a i r e de la 'Tradition'cité dans 1 Cor., XV.

B - F ó r m u l a s o t e r i o I ó g i c a

A oposição antitética que acabámos de analisar encontra-se desen- volvida num enunciado mais extenso, em que se concretiza e explicita a dimensão salvífica não só da morte mas também da ressurreição de Cristo. No fim do cap. 4 da carta aos Romanos, querendo mostrar que a justificação de Abraão por meio da fé no poder de um Deus fiel às suas promessas era o tipo da nossa justificação, o Apóstolo apresenta a seguinte fundamentação da fé cristã:

"Cremos naquele que ressuscitou dos mortos, Jesus nosso Senhor, o qual foi entregue pelas nossas faltas e ressuscitado para a nossa justificação" (Rom 4,24-25).

As fórmulas atestadas nesta passagem constituem uma unidade, mas representam duas tradições independentes: uma teológica partici- pial, a outra soteriológica7V. Na segunda indica-se o significado da res- surreição de Jesus e a sua relação com a nossa justificação mediante o acto de fé. Por outras palavras, afirma-se que pela fé nos tornamos par- ticipantes da vida de Cristo ressuscitado, adquirindo assim a justiça. Este texto constitui o exemplo mais representativo daqueles que atribuem à ressurreição de Cristo um valor soteriológico 80.

O primeiro membro da antítese é constituído pela expressão " f o i entregue pelas nossas faltas" (paredothè dia ta parciptômata hèmôn). O verbo "entregar" (paradidonai) tem um carácter litúrgico, que lhe advém das tradições primitivas sobre a história da paixão (cf. Mt 17,22; 26,2; 27,2.18.26 e par.)81. Apesar das dificuldades que há em se determi- nar a história da tradição deste motivo cristológico, julgamos poder afir- mar que os discípulos entenderam a "entrega' ' de Jesus à luz dos relatos bíblicos sobre o "justo sofredor" (cf. Job 9,23-24; 16,11; SI 37,32-33; 71,4; 82,4; 97,10) e do IV cântico do servo de Jahvé (Is 52,13-53,12). Mais tarde, surge a interpretação soteriológica, conforme a atestação da

n Sobre a fórmula teológica, cf. supra, pp. 37-40.

s<) Cf. S. L Y O N N E T , Études sur l'épitre aux Romains, Roma 1989, 16-35. 81 Cf. K . R O M A N I U K , L 'amour du Père et du Fils dans la sotériologie de saint

Paul, Roma 1961, 74-95; "L'origine des formules pauliniennes 'Le Christ s'est livré

pour nous', 'Le Christ nous a aimés et s'est livré pour n o u s " , NT 5 (1962) 55-76; M. 1.

ALVF.S, O.C.. 282-283; W. POPKES, o.e„ 193s. 258-266; N. PERRIN, 204-212; S. VIDAL, o.e.. 189-199.

morte de Jesus' 'pela multidão' ' ( M e l 0,45) e o testemunho de Rom 4,25, elaborada com base na "fórmula de entrega" (cf. Gal 1,4; 2,20; Rom 8, 32; Ef 5,2.25) 82. Que o enunciado de Rom 4,25 constitua uma releitura do Deutero-Isaías, ressalta desde logo à vista, não só em virtude do verbo utilizado —paradiáonai —, mas também a partir do justificativo que com- pleta o seu significado: "pelas nossas faltas". Uma formulação seme- lhante encontra-se em Is 53,5: "pelas nossas iniquidades, pelos nossos pecados". Já nas pareneses mais antigas os verbos da paixão - pare- dothè, apethanen, estaurôthè, epathen — começam a receber a determi- nação causal mediante as preposições hyper, peri e dia com acusativo (cf. 1 Tes 5,10; 1 Cor 1,13; 2 Cor 5,15; Gal 1,4; 2,20; Rom 5,6.8; 8,32;

14,15; etc.). Ora tanto o verbo paradiáonai como a preposição que o especifica pertencem à linguagem sacrificial e como tais foram utilizados pelo profeta para significar a morte do servo de Jahvé em expiação pelos pecados dos ímpios. Os exegetas judeo-cristãos fizeram uma releitura do IV cântico do servo, aplicando-o a Jesus, qual vítima que se oferece ao Pai no sacrifício da cruz, obtendo para os pecadores o perdão e o regresso a Deus.

O segundo membro do enunciado está elaborado em paralelismo com o primeiro:

ho paredothè dia ta paraptômata hèmôn kai ègerthè dia tèn dikaiôsin hèmôn

Observe-se a isometria das sentenças, o uso dos passivos teológicos e respectiva colocação no início das frases, o carácter tradicional das formas e do vocabulário. Todos estes traços sugerem um original semítico de pendor cultual, quer se trate de uma homologese 8\ quer de uma liturgia baptismal84. Esta formulação remete-nos de novo para

A "fórmula de entrega" tradicional tem umas vezes Deus por sujeito (Rom 3, 32), dependendo do relato sobre o sacrifício de Abraão (Gen 22,16), outras tem um sen- tido reflexivo, com Cristo como sujeito (Gal 1,4; 2,20; Ef 5,2.25). Em geral, admite-se que a fórmula de "auto-entrega" é a mais recente. Cf. W. POPK.ES, o.e., 251-253; N . P E R R I N , o.e., 2 1 2 ; K . W E N G S T , o.e.. 6 1 .

w Cf. H. S C H L I E R , Der Roemerbrief Freiburg-Basel-Wien 1977, 136ss. SJ Cf. E . K A E S E M A N N , An die Roemer, Tuebingen 1973, 120ss; G . S T R E C K E R , "Befreiung und Rechtfertigung", em Rechtfertigung. Fst. E. Kaesemann. Tuebingen 1976, 479-508. Por seu turno, U. W I L C K E N S , Roemer I, 279-280, duvida que se trate de

uma fórmula pré-paulina, sobretudo no que diz respeito ao significado soteriológico da ressurreição.

Is 53,11, onde se põe em contraste " p e c a d o " (hamartia) e "justifica- ç ã o " (dikaioun). Com efeito, o substantivo dikaiôsis não tem aqui o sen- tido paulino de justificação adquirida, como em Rom 5,18, mas designa o acto pelo qual se obtém a justiça divina. Ao citar este enunciado tradi- cional, o Apóstolo não pretende contrapor as duas grandes etapas do acontecimento salvífico, como se Cristo nos obtivesse a remissão dos pecados só com a sua morte, e a justificação só com a ressurreição. Na verdade, para Paulo, como de resto também para João, morte e ressur- reição constituem dois aspectos de um único mistério. Para ambos os teólogos do Novo Testamento, o regresso do homem a Deus não se operou à maneira de um processo de ordem biológica, mas por um acto de liberdade: a obediência e o amor de Cristo em relação ao mandato do Pai (cf. Jo 13,1; 18,lss; Rom 5,19; 8,32; Fil 2,8). A morte de Cristo é redentora enquanto expressão suprema do amor e da obediência85. Neste aspecto, morte e ressurreição, longe de se oporem, encontram-se indis- sociavelmente unidas, como dois aspectos de um só e único mistério. A ressurreição está já incluída na morte como condição da sua eficácia salvadora. É em virtude da situação de ressuscitado que Cristo nos comunica efectivamente o Espírito pelo qual, na morte, ele triunfou sobre o pecado e se encontra agora na glória. A ressurreição de Jesus abre-nos a possibilidade de participarmos efectivamente em todo o seu mistério86.

C - O e n u n c i a d o c a t e q u é t i c o d e 1 C o r 15,3b-5 A antigaparadosis citada no início do cap. 15 da I carta aos Corín- tios (vv. 3b-5) constitui o testemunho mais completo acerca do primitivo querigma sobre a ressurreição de Cristo. O texto reveste-se de grande interesse, quer pelo carácter arcaico das suas expressões, quer porque se apresenta como uma síntese do evangelho paulino. Por outro lado, este fragmento condensa os enunciados anteriores e, simultaneamente, fun- damenta as reflexões posteriores do querigma, tais como as que se encon- tram exaradas nos Actos dos Apóstolos e nos Evangelhos87. Mediante a citação do enunciado tradicional, pretende o Apóstolo fornecer uma base

85 Cf. S. LYONNET, " D i e u n'a pas épargné son propre Fils, mais l'a livré (Rom 8,

3 2 ) " , em Etudes sur l'épitre aux Romains, Roma 1989, 255-259. 8 6 R . B A U L È S , L'évangile puissance de Dieu, Paris 1968, 160s.

87 A bibliografia sobre este texto é muito extensa. Até finais de 1973, veja-se o

sólida de argumentação em defesa da ressurreição dos mortos, a fim de tranquilizar as inquietudes que tinham surgido na jovem comunidade de Corinto. Atinge este propósito recordando a sua pregação fundamen- tal (vv. 1-2.11) e a consequente resposta da fé, que conduz à salvação. O Apóstolo, introduzindo o seu testemunho com a fórmula técnica de ' ' transmissão "í i 8, liga a sua pregação do Evangelho à tradição cri stã ante- rior, que era transmitida numa fórmula fixa (cf. 1 Cor 11,2). O fragmento reproduzido constitui uma unidade literária, cuidadosamente composta num paralelismo simétrico, ao mesmo tempo antitético e sintético:

"Transmito-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi:

Cristo

(A) morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, (B) foi sepultado,

(A') ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras (B') apareceu a Cefas, e depois aos Doze".

A estrutura subjacente apresenta-se numa forma antitética deter- minada pelos verbos apethanen e etaphè — egègertai e ôphthè, dispostos em dois pares (AB/A'B'), e recaindo a acentuação sobre o primeiro de cada par: apethanen e egègertai. Também os pares estão construídos em paralelismo sintético: a morte comprova-se pela sepultura, enquanto a ressurreição é atestada pelas aparições. A isometria dos membros con- firma este paralelismo: frase tripartida em A A \ e frase de um só membro em BB' Os termos fundamentais do enunciado (apethanen e egèger- outros títulos registados por S. V I D A L , O.C., 155, n . l ; J. S C H M I T T , DBS 10, 578-582;

A. SISTI, " L a risurrezione di Cristo nella catechesi apostolica (1 Cor 15,1-11)", ED 28 (1975) 187-230; J. KLOPPFNBORG, " A n Analysis o f t h e Pre-Pauline Formula 1 Cor 15: 3b-5 in Light of Some Recent Literature", CBQ4Q (1978) 351-367.

O binónimo "transmitir-receber'' (paradidonai-paralambanein) corresponde aos termos masar-qibbel, pelos quais os rabinos indicavam a transmissão fiel da Toni e respectiva exegese por meio da tradição oral. Cf. F . B U E C H S E L , paradidòmi. em TWNT

2 , 1 7 3 - 1 7 4 ; G. D E L L I N G , paralambanõ. em TWNT 4 , 1 3 ; R . D E I C H G R A E B E R , Cot- tcshymnus und Christushymnus in derfruehen Christenheit, Goettingen 1 9 6 7 , 1 0 9 - 1 1 0 .

89 O membro relativo às aparições (B'), com a menção dos beneficiários das mes-

mas, apesar de ser mais extenso que o seu paralelo (B), deve ser considerado como origi- nal. pois que a assimetria no final do enunciado denota que se trata de material tradicional. Por isso julgamos que não se deve eliminar da fórmula primitiva a referência ' 'a Cefas

No documento Ressurreição e fé pascal (páginas 45-71)