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2 O PLANO NACIONAL DE GERENCIAMENTO COSTEIRO EM DIÁLOGO COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE

2.3 CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA E LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA

O estudo, no nível internacional ou nacional, sobre o descompasso entre as prescrições legais ligadas à problemática dos bens comuns e a realidade social vem ganhando importância, na medida em que os indicadores da crise socioecológica apontam para um quadro de intensiva degradação dos recursos naturais, que vêm comprometendo as bases naturais da vida no planeta. O modelo de desenvolvimento economicista tradicional parece não ter encontrado, na legislação, um limite à altura que faça frente a sua dinâmica própria. O Estado, apesar de editar atos normativos tendentes, no plano ideal, a conter o ritmo de degradação socioambiental e favorecer uma aproximação com a sociedade na discussão democrática sobre assuntos de interesse coletivo, tem se revelado inapto a fazer valer o seu conteúdo e garantir uma normatividade generalizada e includente. Nessa perspectiva, pretende-se discorrer sobre o sentido simbólico atribuído à legislação e à Constituição90.

90 Em vários países, há uma tendência de regressão – ou retrocesso – na

legislação, que ocorre, no mais das vezes, de maneira insidiosa, por meio de modificações às regras procedimentais (reduzindo a amplitude dos direitos à informação e à participação do público), sob o argumento de “aliviar os procedimentos” (PRIEUR, 2012, p. 13).

Em um determinado sentido, a legislação simbólica constitui a “produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo- jurídico”, ganhando importância, em verdade, a referência político- valorativa ou político-ideológica (NEVES, 2011, p. 30; 1996a). Mas existe ambivalência do termo no seguinte sentido:

[...] o simbólico não se reduz ao “ideológico” no sentido de uma ilusão negadora de outras alternativas ou ao “retórico” no sentido de uma mera persuasão descomprometida com o

acesso aos direitos, pois também,

paradoxalmente, incorpora o espaço da crítica ao modelo normativo de fachada. Além do mais, qualquer recurso à força simbólica é sempre arriscado. Por um lado, a afirmação simbólica de direitos e institutos jurídicos, sem qualquer compromisso com o real acesso aos mesmos ou à sua efetivação, pode levar à apatia pública e ao cinismo das elites, como também pode conduzir à mobilização social que contribua para a sua concretização normativa e efetivação (NEVES, 2005, p. 5-6). Dessa forma, a referência simbólica a um instituto jurídico caracterizado por alto grau de ineficácia jurídica “serve tanto ao encobrimento dessa realidade e mesmo à manipulação política para usos contrários à concretização e efetivação das respetivas normas, quanto a uma ampla realização do modelo normativo no futuro” (NEVES, 2005, p. 5).

O legislador, muitas vezes por pressão popular, elabora leis para satisfazer expectativas dos cidadãos, sem a existência de condições mínimas de efetivação das respectivas normas e, por vezes, obstruindo o caminho para a resolução dos problemas.91 Não se verifica, assim, a eficácia da lei como concretização

91 Caubet, ao discorrer sobre os princípios declarados na Rio-92, destaca

que, no âmbito do mundo globalizado, esses princípios parecem truísmos

retóricos. Sua implementação choca-se como os interesses concretos

que apontam para a intensiva exploração de tecnologia e para o sigilo das decisões, em um contexto de crescente concentração de renda entre as mãos de cada vez menos pessoas (2007, p. 9, grifo nosso).

normativa do texto legal (NEVES, 2011)92. Tendo em vista que a ineficácia e a inefetividade são conceito relativos, graduais, pode- se afirmar que, se atingirem grau muito elevado (com as expectativas normativas das pessoas e dos órgãos estatais não se orientando pelos dispositivos), nos encontramos diante da “falta de vigência social da lei ou de carência de normatividade do texto legal” (NEVES, 2011, p. 48).

Neves acrescenta, por outro lado, que o problema da

constitucionalização simbólica é típico da modernidade periférica93, ocorrendo o “bloqueio permanente e estrutural da concretização dos critérios/programas jurídico-constitucionais pela injunção de outros códigos sistêmicos e por determinações do mundo da vida”. A práxis estatal fica orientada para fugir da sua aplicação e violá-la continuamente (Constituição), em uma “realidade política desjuridificante” e “jurídica desconstitucionalizante”, marcadas por uma esfera pública desprovida de pluralidade e uma tendência particularista e difusa do meio social94 (NEVES, 2011, p. 93-99; 1996a, 324). Mas, em caso extremos, a constitucionalização simbólica pode levar à desconfiança pública no sistema político e nos agentes estatais, ou mesmo a demandas por ampliação da cidadania, as quais dependem da evolução das condições sociais (NEVES, 2011; NEVES, 1996a; NEVES,1996b).

92 Para Neves (2011), o conceito de efetividade está relacionado ao

atendimento aos fins almejados pelo legislador ou pela lei (ainda que a norma jurídica não tenha eficácia). O autor dá o exemplo de uma lei editada para conter a inflação, que é cumprida, mas, apesar disso, não se consegue a contenção do processo inflacionário. A lei, na hipótese, tem eficácia mas não tem efetividade.

93 Para Neves (2011, p. 99), a constitucionalização simbólica diferencia-se

da legislação simbólica pela sua maior abrangência nas dimensões social, temporal e material. Na modernidade periférica, para Neves, “as injunções particularistas da dominação econômica realizam-se de forma desnuda, destruindo abertamente e com tendências generalizantes a legalidade no plano jurídico e os procedimento democráticos na esfera política (NEVES, 2011, p. 174).

94 Para Neves (1996a, p. 323), a “desconstitucionalização significa, pois, a

desjuridicização pela fragilidade do código jurídico na sua incapacidade de generalização congruente e a falta de autonomia/identidade consistente de uma esfera de juridicidade”.

Sob perspectiva teórica diversa - colocando ênfase no poder social das significações (semiologia política do Direito) -, Warat preocupa-se com a estereotipação dos conceitos com uma função legitimadora (1990). O autor destaca o perigo do excesso de determinações no direito – afetado por uma “metástase informativa da transmodernidade”, sem criatividade, fazendo com que temas como a solidariedade, democracia, direitos humanos,

cidadania, censura, exercício dos direitos sejam alterados por uma

sobredose de informações que lhes fazem perder a consistência, “quase como se não existissem” (1993, p. 7).

O consenso sobre os valores contidos nesse modelo representa uma ilusão que “se simula realizada ainda que os fatos demonstrem o contrário”, não se apostando na finalidade e no resgate do político (1993). O autor vai mais além e destaca que o “capitalismo multinacional precisa de uma fórmula de governabilidade sem política, e de uma simbologia meramente retórica da democracia” e que a crítica do direito exige uma atitude de vigília sobre a legislação instituída e sobre as suas garantias, bem como uma reflexão sobre a busca de novas possibilidades ético-racionais-legais para a autonomia (1993, p. 9).

A reprodução de um “espaço comunitário descentralizado e participativo” não constitui, na realidade brasileira, um objetivo fácil, porque a estruturas sociais estão contaminadas desde as suas origens por uma tradição elitista centralizadora, dependente e autoritária. Assim, a ruptura demandaria transformações nas práticas, na cultura e nos valores do modo de vida cotidiano:

Além da subversão em nível do pensamento,

discurso e comportamento, importa

igualmente reordenar o espaço público individual e coletivo, resgatando formas de ação humana que passam pelas questões da ‘comunidade’, ‘políticas democráticas de base’, ‘participação e controle popular’, ‘gestão descentralizada’, ‘poder local ou municipal’, ‘deliberações autonômicas’ e “sistema de conselhos” (WOLKMER, 2015, p. 237-238).

Não se perde de vista, portanto, que a utilização recorrente de textos legais que preveem a instituição de uma gestão democrática, descentralizada e participativa pode ser analisada

sob a perspectiva de que o expediente constitui referência simbólica, principalmente no sentido atribuído por Neves (2005), tornando mais difícil o exercício da crítica diante da existência desses dispositivos, em teoria, mais voltados ao reconhecimento da pluralidade constitutiva da sociedade. O reconhecimento legal, nesse sentido, pode gerar uma falsa crença de que se está a caminho da concretização normativa do texto legal. A concretização normativa do texto legal, no entanto, depende de outros fatores situados no contexto do sistema jurídico.

2.4 O CONCEITO DE ECOCIDADANIA E A IMPOSIÇÃO DE