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A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E OS DEVERES IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO EM MATÉRIA DE

CULTURAL CATARINENSE

4.3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E OS DEVERES IMPOSTOS AO PODER PÚBLICO EM MATÉRIA DE

GESTÃO DO PATRIMÕNIO NATURAL E CULTURAL COSTEIRO

A aplicação dos textos legais concernentes à gestão dos recursos costeiros revela-se problemática na medida em que a referência à integração, participação, democracia e descentralização vem sendo feita de modo simbólica (NEVES, 2005), sem que, em verdade, estabeleçam-se as pré-condições para que haja um envolvimento autêntico e contínuo dos representantes dos diversos universos de justificação, usuários desses recursos. De um modo geral, a visão tecnocrática é a que predomina144. Em seu âmago há incompatibilidade dos citados preceitos legais - mais vocacionados a inspirar um regime de

144 Visão tecnocrática entendida como a “sapiente aplicação das leis

econômicas por parte dos governos técnicos cuja legitimação provém dos mercados e só a estes prestam contas” (FERRAJOLI, 2015, p. 155).

parceria sociedade civil/Estado - com os interesses diretos do capital especulativo.

Na obra de Ferrajoli (2015; 2012; 2011), enfatiza-se a ideia de que a fixação dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais dos quais se possa extrair uma regra de proibição efetivamente constitui os vínculos e os limites que condicionam a atividade legislativa do Estado e também a sua aplicação pelo Judiciário e pela Administração. As características da inalienabilidade, universalidade e indisponibilidade ganham especial destaque na análise dos direitos fundamentais, os quais se colocam como contrapoderes representados pelos direitos de liberdade e sociais, que delimitam a esfera do “indecidível” e do “indecidível que não”. O autor italiano mobiliza, então, o conceito de democracia substancial, que diz respeito àquilo “que de um lado é proibido e, de outro, é obrigatório decidir, quaisquer que sejam as maiorias contingentes” (FERRAJOLI, 2015, p. 45-47), alertando que a crise da política torna distante a concretização dos direitos fundamentais e não conhece os tempos longos nem os espaços planetários dos desafios globais. Justifica-se, assim, a expansão do modelo garantista para o estabelecimento de garantias de proteção dos assim chamados bens fundamentais

comuns.

Entende-se que a aplicação das normas infraconstitucionais referentes à gestão do patrimônio natural e cultural costeiro tem sido feita sem que se atente que a Constituição Federal de 1988 fixa determinados parâmetros que se configuram como regras impostas ao Poder Público na condução de tal programa e que, por isso, condicionam a atividade legislativa, as atribuições administrativas e políticas do Estado e a atividade jurisdicional. A conceituação da Zona Costeira e da Mata Atlântica como patrimônio nacional145, prevendo-se a sua utilização dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, representa escolha feita pela Constituição Federal, em relação à qual se deve dar uma interpretação que lhe confira aptidão para gerar os efeitos esperados no plano factual, apesar dos condicionantes políticos, econômicos e culturais operantes em nossa sociedade.

Tal expectativa dirige-se, ainda, às disposições constitucionais relacionadas ao patrimônio cultural brasileiro,

representado pelos “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos [...]” (art. 216, caput, da CF/88). A Lei n. 7.661/88, instituidora do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, dispõe que o programa visa a elevar a qualidade da vida da sua população, “e a proteção do seu patrimônio natural, histórico, étnico e cultural” (ar. 2º, caput).

Como enfatiza Ost, a noção de patrimônio exprime categoria

prospectiva que o conduz a uma dimensão trans-histórica,

predispondo-o naturalmente a recolher a herança das gerações futuras. Pergunta-se o autor: quando falamos em patrimônio natural ou cultural “não visaremos uma ordem de realidade que nos ultrapassa, que nos é comum e que nos é cara?”. Trata-se, hoje, de uma “aspiração difusa à salvaguarda dos valores que asseguram a perenidade do grupo”, pressupondo um empenhamento partilhado (1995, p. 356). Assim:

Tanto pela sua natureza como pelo seu conteúdo, o patrimônio encaixa traços retirados da personalidade e outros do haver. Assim, estamos progressivamente cada vez mais em posição de compreender a conformidade da tese, que vê no meio, quadro das relações homem-natureza, um patrimônio comum: um patrimônio urdido de direitos privativos mas também de usos colectivos, no prolongamento dos investimentos simbólicos e vitais que a humanidade realiza, nesta natureza que lhe dá existência (OST, 1995, p. 366).

O reconhecimento da categoria patrimônio, em nosso ordenamento jurídico, está em conformidade com a construção da noção de patrimônio comum da humanidade. O recurso patrimonializado é lançado em nome do interesse geral, relevando ora a propriedade privada, ora o domínio público, ora a soberania nacional, ora o regime internacional, no qual deveria ser enfatizada a conservação das opções das gerações futuras, da qualidade do planeta e o acesso equitativo, na geração presente, ao legado obtido das gerações passadas (OST, 1995; PUREZA, 1993).

A defesa e a preservação do meio ambiente representam deveres sob incumbência da sociedade e do Poder Público, voltando-se também às futuras gerações.146 Ao Estado cabe, assim, garantir a segurança da coletividade e lidar, no plano prospectivo, com as ameaças globais, comprometendo-se com a redução dos riscos (AYALA, 2011; LEITE, 2011). Trata-se, com efeito, de reconhecer, na configuração a ser dada ao princípio da solidariedade intergeracional (LEITE, AYALA, 2012) - ou equidade intergeracional - do futuro como elemento hermenêutico, implicando o dever transgeracional capaz de formar vínculos obrigacionais com ele e de instituir-se a comunicação jurídica sobre o risco (CARVALHO, 2008; 2011).

Em relação à gestão dos recursos costeiros - alçados à categoria de patrimônio pela Constituição Federal -, incumbe ao Estado garantir a sua instituição de modo contínuo, atentando-se para o dever jurídico constitucional de realização de avaliações permanentes e, se necessário, para a adoção de correção de rumos, em atenção à efetividade de que se deve revestir uma política pública ambiental. Particularmente, a não instituição de instrumentos que visam à concretização desses objetivos - tais como programas de monitoramento, de fornecimento de informações e relatórios de qualidade - representa grave e clara violação ao dever jurídico/constitucional dirigido ao Estado de garantir a qualidade ambiental às próximas gerações. Tal dever corresponde a uma regra constitucional no sentido atribuído por Ferrajoli (2015; 2012; 2011). Não há lugar, assim, para “ponderações” entre princípios constitucionais. Nesses casos o que existe é o dever de aplicar a regra que decorre dos preceitos insertos nos artigos 225, caput e §4º, 216 e 216-A da CF/88. Não é defensável a instituição de um programa de gestão do patrimônio ambiental por meio da fixação de um instrumento único e definitivo (no caso o zoneamento ambiental), sem que fique caracterizada mínima disposição em modificar substancialmente as ações efetivadas diante de graves incorreções eventualmente verificadas. A definitividade e a rigidez parecem configurar, à luz do enfoque sistêmico-complexo, características inconciliáveis com a gravidade dos dilemas sociais com os quais nos deparamos nesse início de século.

A consideração das incertezas constitutivas da sociedade complexa global e as proporções que estão tomando a crise socioambiental em nível planetário reforçam essa preocupação. Na análise dos fenômenos, parece não haver mais lugar para uma perspectiva teórica redutora em detrimento do reconhecimento de que há inter-relações entre a realidade estudada e o seu contexto, com mútua dependência das funções que cumprem os elementos dentro do sistema total (GARCIA, 1994). Essa perspectiva ressalta a característica da flexibilidade que deveria marcar as escolhas da sociedade na gestão de sistemas socioambientais. O regime tradicional de gestão tecnocrática dos ecossistemas parece não favorecer a absorção dessa concepção.

No entanto, para além do realce que se possa conferir à disciplina constitucional da patrimonialização dos recursos costeiros - e do dever correlacionado de preservação ambiental em benefício das próximas gerações -, a problemática aqui estudada relaciona-se com a imagem homem-natureza

predominante e com os bloqueios existentes para que se estabeleça e se fortaleça a parceria sociedade/Estado em prol da criação de uma consciência patrimonial entre os atores sociais implicados.

4.4 REFLEXÕES SOBRE OS OBSTÁCULOS À FORMAÇÃO