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Constituição de 1988: redemocratização e descentralização

No documento A regulação federal como mecanismo de ajuste (páginas 107-115)

Capítulo 2 Execução local, sob regulação federal: as relações intergovernamentais estabelecidas em 1998 e nas reformas a partir de

2.2. Federalismo no Brasil após 1988 e

2.2.1. Constituição de 1988: redemocratização e descentralização

A partir dos anos 80, a discussão sobre as relações federativas no Brasil foi tratada como parte integrante do processo de redemocratização. Junto com a pressão por mudanças no regime político, estados e os municípios levantaram a bandeira da descentralização tributária e financeira, bem como por maior autonomia a estas instâncias de governo na elaboração e implantação das políticas públicas.

A descentralização estava atrelada ao processo de redemocratização (AFFONSO, 1995; ALMEIDA, 2005), sendo comum relacioná-la à possibilidade de maior participação popular, permitindo uma gestão mais democrática das políticas sociais. Segundo Arretche (2000), o Estado brasileiro passou por um redesenho institucional neste período, passando de um padrão centralizado para um modelo descentralizado de oferta das políticas sociais, assumindo a forma de relações federativas. Sem dúvida, a Constituição de 1988 é um marco histórico41 que consolidou dois processos em andamento: redemocratização e descentralização. Para analisar melhor este movimento, o gráfico 2.1 abaixo mostra as participações das esferas de governo na arrecadação entre 1970 a 2006.

Gráfico 2.1 - Participação das esferas de governo na arrecadação - 1970 a 2006 União Estados M unicípios 0% 20% 40% 60% 80% 100% 197019721974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 Fonte: Varsano (1998) para os dados até 1995 e IBGE. Sistema de Contas Nacionais, para os

dados de 1996-2006. Elaboração do Autor.

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Nota-se uma tendência centralizadora no início da série, indicada pelo aumento da participação da União na arrecadação que respondia por 66,7% do total em 1970 e passou a 76,5% em 1983, quando esta atingiu seu pico. Em contrapartida, os governos estaduais perderam bastante espaço, reduzindo sua participação em exatamente 10 p.p. no mesmo período, o que corresponde praticamente ao ganho observado na arrecadação federal. Por sua vez, os governos municipais mantiveram sua arrecadação própria estável no período, em um patamar bastante baixo, em torno de 2,5%.

Embora não revele a disponibilidade total de recursos às respectivas esferas – o que só ocorre após as transferências intergovernamentais – a concentração da arrecadação no nível central indica, segundo Prado (2003), um forte aumento do poder da União sobre o gasto público, dada a possibilidade de vincular e condicionar os repasses aos governos subnacionais, o que de fato ocorria neste período42. Entretanto, observe-se também um aumento da participação da União nas receitas disponíveis neste mesmo período, em detrimentos dos governos estaduais e municipais, conforme mostra o gráfico 2.2 abaixo.

Gráfico 2.2 - Participação das esferas de governo na receita disponível - 1970 a 2006 União Estados M unicípios 0% 20% 40% 60% 80% 100% 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 198819901992199419961998 2000200220042006 Fonte: Varsano (1998) para os dados até 1995 e IBGE. Sistema de Contas Nacionais, para os

dados de 1996-2006. Elaboração do Autor.

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De acordo com Lopreato (1997), uma parte importante do acesso aos recursos federais era feito por transferências negociadas, “através do crédito das agências oficiais, das autoridades monetárias, dos convênios, dos fundos e programas e dos repasses a fundo perdido (...) que tiveram papel decisivo no financiamento estadual e no jogo político das autoridades federais com as forças regionais/ estaduais” (p. 96).

A participação da União nas receitas disponíveis cresceu quase 15% (9 p.p.) de 1970 a 1983, ao mesmo tempo em que os conjuntos dos estados e dos municípios reduziram suas participações em 27% (29,2% para 21,3%) e 11% (10% para 8,9%), respectivamente (gráfico 2.2). Esta concentração de recursos na esfera central ocorreu pelo aumento da arrecadação federal, conforme visto no gráfico 2.1 e pela diminuição dos repasses constitucionais via fundos de participação dos Estados e Municípios (FPE/FPM), que tiveram seus percentuais de vinculação dos tributos federais reduzidos na composição destes fundos, o que provocou uma redução do valor destas transferências pela metade após 1968 (LOPREATO, 1997).

Além da centralização fiscal, é importante destacar que este período também foi marcado por uma centralização política e de competências. Em relação à primeira, as evidências são bem claras e vão desde a ausência de autonomia política dos estados e de alguns municípios até a possibilidade intervenção federal nos governos subnacionais, além da competência delegada ao governo federal de decidir sobre o desmembramento e até a extinção dos Estados (AFFONSO, 1997). Quanto à centralização de competências, destaca- se a criação de agências federais para formular, implementar e gerir políticas sociais, controlando grandes fundos financeiros, os principais exemplos são o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (SINPAS). No setor educacional, o Ministério da Educação (MEC) detinha competências exclusivas para normatizar currículos, carreiras e programas auxiliares, bem como centralizava a aquisição de material escolar e de insumos básicos para o funcionamento de escolas de 1º e 2º graus (hoje, ensino fundamental e médio) (FAGNANI, 1997).

Toda esta centralização – política, fiscal e de competências – na esfera federal provocou um forte movimento de reação das forças políticas ligadas às esferas subnacionais em favor da descentralização, em um momento de recuperação da autonomia política destas esferas. É este movimento que marcou o período entre 1983 até a promulgação da nova Constituição, cujos efeitos descentralizadores foram sentidos até o início dos anos 90.

No campo fiscal, observe-se que antes da promulgação da nova Carta, a participação da União na arrecadação já havia diminuído para 72% em 1987 (gráfico 2.1), ao mesmo tempo em que a fatia federal nas receitas disponíveis também se reduziu em cerca de 5 p.p. entre 1983-1987 (gráfico 2.2). Já as esferas subnacionais aumentaram suas

participações na arrecadação total – neste caso, apenas os governos estaduais– e nas receitas disponíveis, com uma expansão de cerca de 10% nos estados e de mais de 40% nos municípios.

A descentralização fiscal foi resultado da pressão política dos governos estaduais, eleitos democraticamente em 1982, cujo pleito ampliou a força dos opositores ao regime militar, especialmente dos governadores eleitos, que ganharam peso como interlocutores na definição do pacto político e exerciam forte influencia sobre as bancadas estaduais na Assembleia Constituinte (ABRUCIO, 1998). Sendo a maioria deles eleita pelo PMDB, partido originário da frente de oposição democrática aos governos militares, a influência dos governadores também foi importante na formação de uma agenda de reforma progressista, cujas propostas foram incorporadas no novo texto constitucional (FAGNANI, 2005).

Os avanços em direção à descentralização fiscal e política obtidos ao longo dos anos 80 foram intensificados com a promulgação da Constituição Federal. A nova Carta trouxe o reconhecimento dos municípios como entes federados autônomos, uma especificidade do federalismo brasileiro, bem como foram ampliadas as participações nos recursos fiscais dos Estados e municípios, especialmente destes últimos, por duas vias: i) descentralização da competência tributária, com a ampliação da base tributária do ICMS e do número de tributos municipais, beneficiando principalmente os governos estaduais; ii) descentralização da competência financeira, com o aumento das transferências fiscais dos Fundos de Participação de Estados e municípios (FPE/FPM), por esta via, foram os municípios os principais beneficiados. (VARSANO, 1998; AFONSO E LOBO, 1996; RIANI, 2002; BARBOSA, BARBOSA, 2006).

Os gráficos 2.1 e 2.2 comprovam as tendências apontadas acima. Em relação à arrecadação tributária, a participação da União atingiu seu menor nível em 1991, enquanto que as participações de Estados e Municípios alcançaram 31,2% e 5,4%, respectivamente, com destaque para os governos estaduais, cuja expansão foi de quase 10 p.p neste período. Em relação aos recursos disponíveis, o destaque maior fica com os municípios, cuja participação cresceu mais de 80% no período 1983-1991, quando o patamar atingiu 15,7% das receitas; os recursos disponíveis aos governos estaduais também aumentaram, alcançando um patamar máximo de 29,6%. Por outro lado, a participação da União na

arrecadação e nos recursos disponíveis apresentou uma trajetória decrescente no mesmo período.

Além da descentralização fiscal, houve perda da capacidade regulatória da União a partir de 1988, já que os governos subnacionais obtiveram maior grau de autonomia na aplicação dos recursos descentralizados (SERRA; 1994; AFONSO, 1992). Outro fator relevante que reforça este argumento é o fato deste processo de descentralização ter ocorrido, em grande parte, por meio das transferências intergovernamentais, pois este mecanismo provocou também “a elevação das vinculações dos gastos da União, em franco contraste com a expressiva liberdade de aplicação dos governos subnacionais” (AFFONSO, 1995, p. 68), com exceção da vinculação de receitas ao financiamento da educação.

De acordo com Serra e Afonso (1999), a estrutura fiscal definida na Carta Magna é marcada por uma forte descentralização de poderes e recursos tributários em favor das esferas subnacionais, principalmente, aos municípios. No entanto, os elevados níveis de participação dos governos subnacionais nos recursos disponíveis, via arrecadação ou via transferências, não caracterizam “um processo planejado e organizado de descentralização fiscal, que concilie redistribuição de receitas e divisão de encargos” (p.22).

O argumento dos autores é que os processos de descentralização política e fiscal – ocorridos desde os anos 80 e aprofundados na nova Constituição – não foram acompanhados por uma revisão na distribuição de competências entre as esferas de governo. Diferentemente da distribuição das receitas, o texto constitucional não definiu claramente as responsabilidades e competências pela oferta dos serviços públicos. Neste sentido, o processo de descentralização fiscal ocorre sem coordenação ou planejamento que concilie receita e encargos.

Na mesma direção, Affonso (1995) argumenta que este descompasso entre descentralização fiscal e de encargos observado na década de 80 é um dos aspectos que caracterizam a crise federativa da primeira metade dos anos 90. O autor destaca o crescimento da participação dos Estados (anterior a 1988) e dos municípios (pós-1988) na receita pública e no gasto público, mostrando que também houve descentralização de encargos, embora esta tenha ocorrido “de maneira descoordenada e diferenciada por regiões” (p. 67). Por outro lado, a União perde capacidade fiscal, seja pela ampliação da vinculação das suas receitas às transferências, seja pela crise fiscal e da dívida dos anos 80.

O mesmo autor coloca que a descentralização de competências ocorreu de forma descoordenada logo após a promulgação da Constituição, pois foram desconsideradas as diversidades espacial e populacional dos municípios brasileiros, as diferentes capacidades operacional e administrativa dos governos locais, bem como não houve um planejamento estratégico, impedindo na prática que o processo ocorresse de forma organizada e com ampliação da eficiência das políticas públicas, tal como foi a tônica das discussões na Assembléia Constituinte.

Outro ponto relevante diz respeito à competição entre os entes federados por recursos fiscais – antes marcada pela “queda de braço” entre governos central e subnacionais pela descentralização de receitas – que, com a promulgação da nova Constituição, ganhou nova dimensão horizontal, caracterizada pelo conflito entre estados e/ou municípios, também conhecido como guerra fiscal. Este novo tipo de disputa é tratado como um sinal evidente de uma nova crise federativa (AFFONSO, 1995) ou como um entrave às políticas industrial, comercial e regional (SERRA e AFONSO, 1999).

No entanto, Arretche (1999) trata este conflito como uma “conseqüência provável da descentralização da autoridade política (sobre políticas fiscais e sociais, por exemplo) que, em condições de mobilidade dos capitais, aumenta a capacidade de pressão das empresas sobre os governos locais, na medida em que a ameaça de saída dos investimentos em direção a outras localidades pode de fato ocorrer” (p.23). Tal fato também decorre em função da ausência de regulação sobre o comportamento fiscal dos entes federados, os quais não estavam submetidos, por exemplo, a uma lei federal capaz de impor restrições às renúncias fiscais.

Mas, a ausência de regulação se explica por um modelo de federação, definido pela CF 88, onde os governos locais são plenamente autônomos e o governo central não dispõe de prerrogativa para exercer o papel de coordenação federativa ou as razões estão relacionadas à ausência de regulamentação dos dispositivos constitucionais, que provocou um vácuo na definição das competências atribuídas a cada esfera de governo? Arretche (2009) refuta a tese de que a CF 88 deixou o governo federal fraco em relação a sua capacidade de coordenação federativa e, por outro lado, deu ampla autonomia alocativa para os governos locais, tal como apontado por Souza (2004).

Por exemplo, em relação à regulação das finanças públicas, Arretche (2009) afirma que a CF 88 remeteu para lei complementar federal a definição das normas das finanças públicas e os limites de despesa com pessoal ativo e inativo, conforme os artigos 163 e 169. Assim, “as regras dispostas pela LRF não estavam previstas pelos constituintes, mas a regulamentação federal das finanças subnacionais não apenas não foi negada pelo contrato original como era esperado que assim o fosse” (p. 392). A LRF foi aprovada mais de 10 anos depois de 1988 não porque o texto constitucional não previa a regulação, mas sim por esta questão ter ficado de fora da agenda dos governos durante este período de vácuo institucional. Segundo Arretche (2009), a “agenda de ordenamento das finanças dos governos subnacionais estava dando continuidade às deliberações da Constituição de 1988” (p. 392).

No campo das políticas sociais, a Constituição de 1988 combinou medidas que garantiam uma série de direitos sociais, ampliando o acesso da população a determinados bens e serviços públicos e garantindo a regularidade do valor dos benefícios, cujo financiamento é efetuado mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios (CASTRO, et.al., 2009, p. 64-5). Dentre os princípios para a atuação do Estado na área social, dois estão mais diretamente relacionadas aos objetivos desta tese: a universalidade da cobertura e do atendimento e o caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa.

Para garantir a ampliação da oferta descentralizada, a Constituição aprofundou o movimento de descentralização que já vinha se configurando desde o início da década de 1980, ao transferir “competências tributárias entre as esferas governamentais, beneficiando os estados e, principalmente, os municípios, além de ampliar transferências constitucionais, que alteraram a repartição da arrecadação tributária em favor destas esferas” (CASTRO, et.al., 2009, p. 67).

Desta forma, houve clareza quanto à descentralização fiscal, porém não ficaram claras as responsabilidades pela oferta das políticas sociais entre as esferas de governo, já que a provisão ficou sob competência partilhada entre todos os níveis de governo na maioria das políticas sociais setoriais (FAGNANI, 1999; LOBO, 1995). Assim, qualquer ente federativo estava constitucionalmente autorizado a implementar programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento. Simetricamente, nenhum

ente federativo estava constitucionalmente obrigado a implementar programas nestas áreas (ARRETCHE, 2004). De acordo com Castro et. al. (2009), esta indefinição em relação à distribuição dos encargos sociais entre os entes federados exigia posteriormente uma regulamentação por meio de legislação ordinária e, enquanto isso não ocorreu, houve desequilíbrios e controvérsias que perduraram nos anos posteriores à promulgação da Constituição.

Apesar de diversos programas nas áreas de saúde, educação, assistência social, habitação e saneamento terem sido desenvolvidos simultaneamente pelos governos federal, estaduais e municipais, a atuação comum não garante uma atuação conjunta para fazer frente aos problemas sociais brasileiros, ou seja, as competências partilhadas, por si só, não garantem cooperação ou uma ação coordenada entre os três níveis de governo.

De acordo com Arretche (2004), até meados dos anos 90, a distribuição federativa dos encargos na área social derivava menos de obrigações constitucionais e mais da forma como historicamente estes serviços estiveram organizados em cada política particular - isto é, do legado das políticas - o que explica a permanência da estrutura centralizada para as políticas de saúde e desenvolvimento urbano e descentralizada para a política de educação fundamental. O princípio de atuação descentralizada não era auto-executável, era necessário introduzir novas regras para estimular a descentralização e induzir os municípios a assumirem e ampliarem a oferta descentralizada das políticas sociais, pois diferentemente da pressão pela descentralização de recursos, não havia pressão de baixo para cima para a descentralização dos encargos.

Em suma, conclui-se que as mudanças nas relações federativas introduzidas (ou consolidadas) pela Constituição Federal de 1988 resultaram em uma descentralização fiscal, principalmente via transferências fiscais (PRADO, 2003; AFONSO e LOBO, 1996; AFFONSO, 1995); reduzindo a capacidade fiscal e regulatória da União (SERRA; 1994; AFONSO, 1992); com ampla autonomia dos governos subnacionais (AFFONSO, 1995; LOPREATO, 1997); sem definição clara de competências entre as esferas de governo (SERRA e AFONSO, 1999), especialmente na área social (ARRETCHE, 2004; ALMEIDA, 1996; LOBO, 1995; FAGNANI, 1999) e sem coordenação federativa do processo de descentralização (AFFONSO, 1995; ARRETCHE, 1999, 2004; AFONSO, 1999), por conta da ausência de legislações complementares para regulamentar dispositivos

constitucionais que previam a regulação federal (ARRETCHE, 2009), como no caso das finanças públicas e para garantir a efetiva implementação da agenda social definida na Carta de 1998.

Após a Constituição de 1988, o desafio colocado era o estabelecimento de mecanismos de coordenação federativa, sem a alteração no regime político, e tal tarefa começou a ser executada junto com a implantação do Plano Real na segunda metade dos anos 90, quando as reformas nas políticas sociais e nas relações federativas também entraram na agenda governamental.

No documento A regulação federal como mecanismo de ajuste (páginas 107-115)