• Nenhum resultado encontrado

LRF: regras e limites à autonomia local

No documento A regulação federal como mecanismo de ajuste (páginas 143-150)

Capítulo 3 Regulação sobre as finanças municipais: a LRF como instrumento de indução ao ajuste fiscal

3.1. LRF: regras e limites à autonomia local

Conforme foi visto no capítulo 2, ao longo dos anos 90, ocorreram importantes alterações práticas no arranjo federativo brasileiro através da introdução de mecanismos de coordenação federativa, dentre os quais a própria LRF que disciplinou a gestão fiscal dos três níveis de governo. Entende-se que estas reformas institucionais atuaram na regulamentação de alguns dispositivos constitucionais e promoveram emendas

61

Este recorte temporal foi restringido pela disponibilidade de dados municipais para a construção dos indicadores fiscais, pois apenas a partir do banco de dados contábeis dos municípios (Finbra), disponibilizado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), é possível calcular o resultado primário e o conceito de receita corrente líquida, definido no texto da LRF.

constitucionais, com o intuito de restringir a autonomia dos governos subnacionais em relação à gestão fiscal e às decisões de gasto.

De acordo com Arretche (2009), as reformas aprovadas após 1995 representaram “uma mudança importante em relação às deliberações da CF 88, que conferia ampla autonomia de gasto a Estados e municípios” (p. 391)62

, pois a aprovação dessa legislação significou substancial redução da autonomia decisória dos governos estaduais e municipais sobre a alocação de suas próprias despesas. Entretanto, a autora ressalta que “parte dessa agenda de ordenamento das finanças dos governos subnacionais estava dando continuidade às deliberações da Constituição de 1988” (p. 392). A LRF pode ser citada como exemplo, pois, “em seus arts. 163 e 169, a CF 88 remeteu para lei complementar federal a definição das normas das finanças públicas e os limites de despesa com pessoal ativo e inativo. Assim, as regras dispostas pela LRF não estavam previstas pelos constituintes, mas a regulamentação federal das finanças subnacionais não apenas não foi negada pelo contrato original como era esperado que assim o fosse” (p. 392).

O objetivo da regulação federal sobre as finanças públicas, de acordo com a teoria do federalismo fiscal, deve colocar restrições à autonomia dos governantes via legislação federal e, com isso, estabelecer constrangimentos orçamentários auto-executáveis (hard- budget constrains) que impeçam o acesso irrestrito ao endividamento e que criem incentivos negativos (punições) para adequar o comportamento fiscal dos governos às políticas de estabilização, ao mesmo tempo em que responsabilizam os gestores públicos por eventuais descumprimentos dos limites definidos legalmente (SHAH, 2000; TER- MINASSIAN, 1997).

De uma maneira geral, a coordenação federativa exercida pela União impõe limites à autonomia dos governos subnacionais ao estabelecer regras na alocação de recursos e restrições à gestão fiscal. Conforme ressaltado anteriormente, isto só foi possível após o fortalecimento da União com o sucesso da estabilização, uma vez que o ajuste das contas públicas foi colocado como condição necessária para o controle da inflação63. Sob este

62

Com exceção da área da educação que já contava com a vinculação de receitas antes mesmo da promulgação da Carta de 1988.

63

Com isso, observou-se o fortalecimento do discurso da austeridade fiscal. Ao relacionar estabilidade monetária com equilíbrio fiscal, foi possível perceber uma mudança na percepção da sociedade em relação à postura fiscal dos governantes, onde a austeridade passou a ser premiada, em contradição ao pressuposto teórico de que o eleitor faz escolhas baseado diretamente nos benefícios dos bens públicos ofertados e

argumento, a regulação sobre a gestão fiscal sobre os três níveis de governo – primeiramente, por meio dos acordos de renegociação das dívidas e, depois, pela LRF – contribuiria para tornar o comportamento fiscal das esferas subnacionais mais adequado à política econômica (de combate à inflação e ajuste fiscal).

A hipótese é que ocorreu uma convergência do resultado primário municipal em direção ao ajuste fiscal, sendo esta uma tendência geral obtida pela restrição imposta à autonomia dos governos locais64. Sob regulação, espera-se que o comportamento fiscal dos municípios se torne mais permissivo ao ajuste fiscal e mais homogêneo entre si (apesar da enorme disparidade existente entre eles), revertendo o resultado primário negativo.

É importante ressaltar que a LRF não foi o único e nem o primeiro mecanismo de regulação sobre as finanças subnacionais. Defende-se aqui que a LRF deve ser tratada como a consolidação de um processo de regulação das finanças públicas que antes era efetuado através de diversos mecanismos – os quais vão desde os termos dos acordos com a União até as vinculações constitucionais – e, com a LRF, a matéria fiscal passou a contar com um ordenamento jurídico-institucional único, com o intuito de disciplinar o comportamento fiscal dos governantes, tornando-o mais permissivo ao ajuste fiscal, a partir da especificação das regras e da previsão de punição àqueles que descumprirem os limites definidos na LRF.

A regulação federal sobre o comportamento fiscal dos entes federados teve início com os processos de renegociação das dívidas dos governos subnacionais, especialmente dos Estados com a União, com esta última assumindo a dívida daquelas instâncias, em troca do compromisso dos governadores com uma agenda de ajustes das finanças estaduais (LOPREATO, 1997). Contundo, mesmo após duas operações de socorro financeiro (bailouts) em 1994 e 1997, os Estados ainda apresentavam uma trajetória crescente da dívida e recorrentes déficits primários65. Resultados primários negativos também eram observados nos municípios, embora estas esferas tivessem um nível de endividamento bem menor que os governos estaduais.

inversamente ao nível de tributação. Os dados de Vazquez e Santos (2007) apontam para esta tendência, contudo esta hipótese precisaria ser testado por outros estudos mais específicos.

64

Este resultado também ocorreu em nível estadual, conforme os dados de Vargas (2006) e Cossio (2005).

65

Tendo em vista, o histórico de descumprimentos dos acordos e de reedição de novos programas de socorros financeiros (bailouts), a LRF, em seu artigo 35, prevê que não serão permitidas operações de crédito entre entes da federação, vetando, portanto, novos refinanciamentos da dívida subnacional, impedindo inclusive qualquer mudança nos contratos já assinados no âmbito do Programa de Reestruturação Fiscal e Financeira.

Diante deste quadro de desequilíbrio orçamentário dos governos subnacionais, o governo federal ainda enfrentava dificuldades de alcançar as metas de superávit primário estipuladas para o setor público como um todo. Para reverter este quadro, era necessário estabelecer um compromisso mais forte com metas fiscais, que envolvesse as esferas subnacionais, já que estas são responsáveis por boa parte da execução orçamentária. Portanto, somente submetendo Estados e municípios a regras mais rígidas seria possível alcançar os objetivos do programa de ajuste fiscal.

Paralelamente, foi introduzida na agenda a necessidade de controlar a expansão dos gastos correntes dos governos e, em especial, das despesas de pessoal. Neste sentido, foi aprovada a Lei Camata que estabeleceu um teto máximo de gastos com pessoal para as três esferas de governo. Posteriormente, a LRF tratou com maior abrangência a regulação sobre as finanças públicas, pois reforçou e especificou o limite já estabelecido às despesas com pessoal, além de ter colocado novas restrições às decisões dos governantes em matéria fiscal.

Apesar dos acordos e das legislações anteriores, a regulação federal sobre a gestão fiscal dos três níveis de governo se materializa mais claramente com a aprovação da LRF, sendo um importante instrumento de regulação federal sobre o comportamento fiscal dos três níveis de governo66. O objetivo da Lei é estabelecer um mecanismo de regulação federal sobre a gestão fiscal dos três níveis de governo, independente de alterações no comando do governo federal ou dos governos subnacionais, uma vez que o compromisso com o ajuste, já estabelecidos nas clausulas dos acordos de renegociação de dívidas e em convênios para os repasses de recursos, agora estava incorporado em uma legislação válida para todo o território nacional. Com isso, buscou-se ampliar o controle efetivo sobre o comportamento fiscal dos governos subnacionais, a fim de que estes não mais ameacem o controle da inflação e, ao mesmo tempo, amplia o compromisso com as metas de ajuste fiscal e com o controle da relação dívida/ PIB, elementos-centrais da estratégia macroeconômica pós-Real.

Em relação à política fiscal, tornou-se imperativo e central, no âmbito da estratégia macroeconômica, a busca do ajuste fiscal, especialmente após o acordo com o FMI, na final

66

Segundo Silva (2005), a LRF é um caso exemplar de um novo papel do Estado que além das funções alocativa, distributiva e estabilizadora, passou mais recentemente a desempenhar um papel regulador, inclusive sobre ele mesmo.

de 199867, que exige como contrapartida a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir, pelo menos em parte, as despesas com juros nominais. Portanto, era necessário reverter a situação de desequilíbrio das contas públicas, a qual foi evidenciada quando a estabilização econômica foi conquistada, ficando clara a ausência de planejamento orçamentário e a deterioração dos orçamentos públicos.

Diante das exigências postas, a LRF (Lei Complementar n.º 101, aprovada em maio de 2000, regulamentou o capítulo da Constituição Federal sobre as finanças públicas, com o intuito de estabelecer um maior controle sobre comportamentos fiscais das três esferas de governo e garantir um ajuste fiscal permanente do setor público como um todo. Caso os dispositivos desta lei não fossem cumpridos, os governos estariam sujeitos a punições, como a suspensão de transferências voluntárias da União ou o sequestro de repasses constitucionais, bem como os governantes estão sujeitos à perda do mandato, inelegibilidade e até a reclusão nos casos definidos como crime fiscal (lei nº 10.028, aprovada junto com a LRF) 68.

A LRF foi inspirada, principalmente, no Budget Enforcement Act (BEA) dos Estados Unidos, no Fiscal Responsibility Act (FRA) da Nova Zelândia e nos limites de endividamento e do estoque da dívida estabelecidos pelo Tratado de Mastricht. Segundo Toledo e Rossi (2002), a LRF se inspirou nestas experiências internacionais nos seguintes aspectos: no controle do equilíbrio orçamentário indiretamente, admitindo déficits no curto prazo, desde que mantido o efetivo compromisso de ajuste no longo prazo, tal como observado no Tratado de Mastricht; tomou também como modelo a experiência norte- americana, no que tange à exigência de compensação para a renúncia de receitas e para as novas despesas obrigatórias de caráter continuado, além do controle específico sobre alguns itens de despesa, tais como o gasto com pessoal e com a função legislativa, cuja ênfase era o controle da política fiscal dos governos locais; já os mecanismos de ampliação da

67

O programa de estabilidade macroeconômica, anunciado em outubro de 1998, baseou-se em três pilares fundamentais: a política monetária baseada em metas inflacionárias; a realização de reformas microeconômicas de desregulação e de promoção da livre-concorrência e; o aprofundamento do Programa de Estabilidade Fiscal, que fizeram parte do acordo do Brasil com o FMI.

68

A LRF cria um sistema de controle institucional múltiplo, que permite que todos os poderes estejam sujeitos igualmente ao cumprimento de regras e à fiscalização. Há punições institucionais que inclui a suspensão de transferências voluntárias, de operação de credito e de garantias, além de pessoais aos gestores responsáveis, tais como a perda de cargo, a inabilitação para o exercício de função pública, a prisão e multa. Estas últimas punições estão disciplinadas na Lei 10.028/00, conhecida como Lei de Crimes Fiscais. (Nascimento, 2002)

transparência nas etapas de planejamento e execução orçamentárias foram inspiradas na experiência neozelandesa69.

Segundo Lima (2003), as principais regras definidas pela LRF envolvem quatro aspectos das finanças públicas:

a) Resultados Primários – embora não tenha proibido os déficits primários, a LRF determinou que anualmente a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) fixe a meta fiscal para o exercício.

b) Limites de endividamento – conforme o artigo 52, inciso VI, da CF de 1988, os limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios deveriam ser definidos pelo Senado, a partir de proposta do Executivo federal. A LRF determinou que a proposta federal fosse enviada no prazo de 90 dias após a sua publicação. A proposta foi enviada no prazo e o Senado fixou os limites apenas para Estados e municípios, mas não para a União. Os limites foram definidos em proporção da Receita Corrente Líquida - RCL e, caso estes fossem descumpridos, implicaria em suspensão de qualquer transferência voluntária70.

c) Limite às Despesas de Pessoal – A LRF reafirmou o limite já estabelecido pela Lei Camata, definindo a Receita Corrente Líquida – RCL como denominador e criou subtetos para os poderes executivo e legislativo71.

d) Restrições à criação de despesas correntes – que só poderiam ser criadas caso fossem cancelassem outras despesas igualmente permanentes ou se houvesse a ampliação das receitas também de forma permanente. A mesma regra é válida para a concessão de benefícios tributários.

Em suma, a LRF estabeleceu tetos máximos para o gasto com pessoal, operações de crédito72, endividamento; reafirma os limites mínimos para os gastos com educação (25%), saúde (15%) e coloca restrições especiais para o último ano de governo. Ao colocar estas regras em uma lei e, em complemento, prever que o não cumprimento daquelas implica em

69

Esta análise em perspectiva comparada com outras experiências internacionais está fora do escopo de análise deste estudo. Para um maior aprofundamento, ver Loureiro (2001).

70

Os limites para a dívida eram de 2 e 1,2 para Estados e municípios, respectivamente.

71

Os limites para as despesas de pessoal as despesas de pessoal da União em 50% e as de Estados e municípios em 60%.

72

A LRF estabelece que as operações de crédito destinam-se exclusivamente para despesas de capital. Esta restrição é conhecida na literatura como a “Regra de Ouro” da Lei Fiscal.

um crime fiscal, a intenção era estabelecer um comportamento fiscal mais austero para os três níveis de governo.

No que tange aos efeitos da LRF sobre as relações federativas, ao tornar mais rígidas as instituições que regulam o processo orçamentário válidas para as três esferas de governo, esta regulação da gestão fiscal significa, inexoravelmente, limitar a autonomia dos governos subnacionais na sua função alocativa. Segundo Almeida (2005), a lei fiscal é uma medida centralizadora que impõe limites, regras e punições a fim de “incentivar” os governantes a cumprirem os compromissos com a disciplina fiscal. Neste sentido, Abrucio (2005) afirma que a LRF funciona como um mecanismo de coordenação federativa que estabelece instrumentos de enforcement mais efetivos, que dificultam uma postura contrária à nova regulamentação, especialmente, por conta das penalidades73. Já Arretche (2009) destaca a ampliação da “extensão em que a União normatiza o modo como Estados e municípios executam suas próprias políticas e recolhem seus próprios impostos, afetando todos os membros da federação” (ARRETCHE, 2009, p. 400).

De acordo as teorias neoclássicas do federalismo fiscal, a LRF é um requisito importante para adequar o sistema fiscal brasileiro ao modelo idealizado, pois institui constrangimentos orçamentários auto-executáveis (hard-budget constrains), impede o acesso irrestrito ao endividamento (WEINGAST, 1995; OATES, 1999), cria mecanismos de coordenação federativa necessários para adequar o comportamento fiscal dos governos locais às políticas de estabilização (SHAH, 2000; TER-MINASSIAN, 1997) e, por fim, responsabiliza os gestores sobre o gasto e cria incentivos ao esforço fiscal.

Para o FMI, a LRF representa um “divisor de águas”, conforme avaliação extremamente positiva sobre as contas e práticas fiscais no país, sublinhando o grau de transparência fiscal alcançado. (Report on the Observance of Standards and Codes - ROSC, IMF, November of 2001, apud in LEITE, 2002). A OCDE também divulgou análise amplamente favorável à posição fiscal brasileira, com atenção aos avanços da LRF, ressaltando que os governos subnacionais não mais ameaçam a estabilidade macroeconômica. (Brazil, OECD Economic Surveys nº 15, Paris, OECD, jun. 2001, apud in LEITE, 2002).

73

É possível concluir que a LRF se revelou um importante instrumento de regulação das finanças públicas das três esferas de governo, pois introduziu, por meio de uma legislação nacional, uma série de regras, punições e incentivos institucionais voltados ao controle da gestão fiscal, de caráter permanente e independente do partido político de quem esteja no poder. Por outro lado, a regulação exercida por meio desta legislação federal afetou as decisões alocativas dos governos subnacionais, ao impor restrição à autonomia dos governos locais nas matérias fiscal e orçamentária.

No entanto, qual é a efetividade deste instrumento de regulação sobre a gestão fiscal dos governos locais? As influências da LRF se manifestam uniformemente nos municípios, independentemente do porte populacional, do PIB municipal e de outras características estruturais dos municípios? Diante destas questões, pretende-se avaliar os efeitos da LRF sobre as finanças municipais, a partir da análise da trajetória do indicador fiscal selecionado (resultado primário em relação à receita corrente líquida (RP/RCL), verificando se a Lei Fiscal estabeleceu uma tendência convergente em relação ao ajuste fiscal.

No documento A regulação federal como mecanismo de ajuste (páginas 143-150)