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Governo Lula (2003-2006): o aprofundamento do ajuste em um cenário internacional favorável

Capítulo 1 Política econômica versus política social: onde está o conflito?

1.1. Política Macroeconômica e contas públicas no Brasil no período 1995-2006, à luz dos determinantes/condicionantes externos

1.1.2. Política Macroeconômica no Brasil Pós-Real (1995-2006)

1.1.2.3. Governo Lula (2003-2006): o aprofundamento do ajuste em um cenário internacional favorável

O governo Lula tomou posse em meio à crise econômica cujos efeitos principais foram a desvalorização cambial, a aceleração inflacionária e o crescimento da dívida pública. Segundo Lopreato (2006:196), “o pequeno raio de manobra limitou as alterações dos rumos da política econômica e a visão inicial, de que a conservação da lógica anterior era opção tática, logo foi superada, dando margem à certeza de que não haveria mudança de rota na definição dos marcos gerais da política econômica e da estratégia de desenvolvimento”.

O argumento hegemônico é de que a ampliação do ajuste fiscal - para um nível capaz de cobrir os déficits nominais provocados pela incidência dos juros altos sobre a dívida - é condição necessária para a posterior queda das taxas de juros e para o crescimento econômico sustentável. Tal argumento embasa a proposta de Déficit Nominal Zero, apresentada pelo Deputado Delfim Netto, que coloca a necessidade de estancar o valor nominal da dívida pública via a obtenção de resultados primários, para que a taxa de juros - entendida como sinônimo de risco e desconfiança pelos mercados - possa iniciar uma trajetória de queda, ou seja, a redução da relação Dívida/PIB e dos indicadores de

rating da economia brasileira são pré-requisitos para a queda dos juros reais (DELFIM

NETTO e GIAMBIAGI, 2005; GIAMBIAGI, 2006b).

Este argumento orientou o governo Lula na decisão de aprofundar ainda mais o ajuste fiscal e de não interferir nos desequilíbrios provocados pela volatilidade cambial e pelas elevadas taxa de juros, ambas determinadas pelos movimentos dos capitais financeiros em um ambiente de mobilidade plena. Em relação a estes últimos, Prates (2006) coloca que o governo Lula ampliou a abertura financeira, por meio da facilitação dos residentes manterem depósitos no exterior e também pelos incentivos fiscais concedidos para investidores estrangeiros adquirirem títulos da dívida pública. Dessa maneira, é possível afirmar que o governo Lula dá continuidade à política econômica centrada no câmbio flutuante com livre mobilidade de capitais e no alcance a qualquer custo das metas

de inflação, as quais são garantidas pela elevação dos juros, e tendo o superávit primário como âncora deste regime.

As primeiras medidas do novo governo foram: elevar a meta de superávit primário para 4,25% do PIB (em todos os anos do mandato), rever e reafirmar as metas de inflação, medidas pelo IPCA, em 8,5% em 2003 e 5,5% no ano seguinte, o que representa uma forte queda em relação ao índice de 12,5% de 2002, e elevou as taxas de juros nominais - Selic (para 26,5%), visando o controle da inflação (GIAMBIAGI, 2006a).

Estas medidas resultaram em um crescimento econômico bastante reduzido em 2003, parcos 1,1% (gráfico 1.3). Em relação às finanças públicas, o aumento dos juros elevou as despesas com encargos financeiros ao maior patamar do período pós-Real (8,54% do PIB), provocando um déficit nominal de 4,65%, mesmo com o elevado superávit primário obtido (3,9%)17, conforme observado na tabela 1.1. O déficit público nominal (em função dos gastos com pagamento dos altos juros) e o baixo crescimento do PIB contribuíram para o crescimento da relação Dívida/PIB (tabela 1.2) que atingiu seu maior nível em 200318 (52,36%), com aumento da dívida interna em mais de 4 p.p. em relação ao PIB. Em contrapartida, a dívida externa inicia sua trajetória de queda, em razão da melhora no cenário internacional e da entrada de capitais externos, que corroboram para a valorização do real frente ao dólar.

O cenário internacional contribuiu para o desempenho da economia brasileira e para a melhoria da situação das contas públicas nos anos seguintes do Governo Lula. Segundo Castro et. al. (2008), houve crescimento mais forte da economia mundial, expansão da liquidez no mercado externo, redução das taxas de juros internacionais e o aumento dos preços das commodities que beneficiaram especialmente o setor exportador. Além do crescimento das exportações brasileiras, os autores também destacam o aumento dos investimentos e da demanda doméstica, puxada pela ampliação do nível de ocupação de mão-de-obra e dos rendimentos médios reais do trabalhador formal.

Em 2004, o bom desempenho da economia brasileira (gráfico 1.3), a redução das taxas de juros (gráfico 1.4) e o aumento do superávit primário (gráfico 1.1) explicam a redução da relação Dívida/PIB (gráfico 1.2) neste ano em mais de 5,5 p.p., que se deve, em

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Considerando a antiga série do PIB, o resultado primário foi de 4,25%

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grande parte, à redução do endividamento externo, mas também houve queda no percentual da dívida interna em relação ao PIB. No entanto, deve-se destacar o papel do crescimento econômico na redução da relação Dívida/PIB, uma vez que a redução desta razão ocorreu devido ao crescimento do denominador (PIB) em proporção superior à expansão do numerador (Dívida), ou seja, o déficit nominal de 2,43% foi compensado pelo crescimento real do PIB de 5,7%.

Entretanto, o conservadorismo da política econômica interrompeu, em setembro de 2004, a trajetória de queda da taxa de juros nominais (Selic), iniciada em junho de 2003. A razão colocada foi a necessidade de controle das pressões inflacionárias, deflagradas pelo aumento da demanda. Na época, travou-se um forte debate sobre as verdadeiras causas da inflação e sobre a efetividade do aumento das taxas de juros para o seu controle, uma vez que os índices de inflação evidenciavam a pressão dos preços administrados sobre estes índices. Assim, qual seria a efetividade do aumento de juros para controlar uma inflação de custos? Nenhuma, pois uma política monetária restritiva tem pouco efeito sobre os preços administrados, que são reajustados pelos índices definidos nos contratos19 que, por sua vez, não foram revistos ou renegociados.

Mesmo assim, o Banco Central reinicia a trajetória crescente dos juros nominais (gráfico 1.4), a fim de garantir o alcance da meta de inflação, o que de fato ocorreu20, mas a custo de uma desaceleração econômica. A taxa de crescimento econômico em 2005 foi de 3,2% (gráfico 1.3), bem abaixo do crescimento estipulado pelo governo; já a relação Dívida/PIB permaneceu praticamente no mesmo patamar, graças à queda do endividamento

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Os reajustes dos preços administrados estavam indexados ao IGP (Índice geral de Preços), que sofre forte influência do câmbio, cujos índices foram elevados nos anos de 2002 e 2003.

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Segundo Cintra (2005) “em meados de 2004 as expectativas de inflação para 2005 deveriam estar convergindo para a meta ajustada de 5,1%, mas os analistas de mercado continuavam estimando o IPCA em torno de 6% - (por meio do) Boletim Focus. Assim, em setembro de 2004 o Copom iniciou um movimento de alta da taxa de juros de curto prazo a fim de desacelerar a economia - de 4,9% em 2004 para o entorno de 3,5% em 2005 - e desencadear uma deflação nos preços livres e comercializáveis para que o índice de preços convergisse para a meta. De fato, com a alta dos juros e a correspondente valorização cambial os preços livres ficaram em torno de zero entre junho e setembro e os comercializáveis apresentaram deflação. Os preços monitorados, no entanto, permaneceram em torno de 1%, pois foram reajustados automaticamente pela inflação passada. Dessa forma, em setembro de 2005, quando o Copom reduziu em 0,25 ponto percentual a taxa de juros básica, a variação acumulada em doze meses dos preços livres ficou em 4,55% e a dos comercializáveis em 3,46%, mas a dos preços monitorados foi de 9,66%. Esses números revelam mais uma vez a inadequação desse regime de metas para a inflação: para que o IPCA diminuísse de 7,18% em agosto de 2004 para 6,04% em setembro de 2005, a taxa de juros foi elevada em 3,75 pontos percentuais, a taxa de câmbio valorizada em 20% e a taxa de crescimento do PIB reduzida em 1,5 ponto percentual.” (p. 47 apud de CASTRO, RIBEIRO E DUARTE, 2007). Obs.: a análise do autor não considera a nova série do PIB, divulgada em maio de 2007 pelo IBGE.

externo, ajudado pela valorização cambial, pois a dívida interna cresceu em quase 4 p.p. do PIB (tabela 1.2), bem como houve um maior déficit nominal em relação ao ano anterior (tabela 1.1).

O enrijecimento da política monetária, com a trajetória ascendente da taxa básica de juros que durou até setembro de 2005, provocou uma contração bastante forte na economia e na inflação, gerando dúvidas dentro do próprio governo se a austeridade da política monetária não teria sido exagerada. Apenas em maio de 2006, o nível da taxa de juros retorna ao patamar inferior a setembro de 2004. No último ano do primeiro governo Lula, o desempenho econômico melhorou e a inflação ficou abaixo da meta estabelecida pelo Banco Central, bem diferente de 2002, ano das últimas eleições gerais.

No que tange às contas públicas, o ano de 2006 possui duas especificidades: 1-) continuidade da queda da relação Dívida/PIB, em razão da redução do endividamento externo, inclusive com a “zeragem” da dívida externa brasileira (tabela 1.2); 2-) apesar dos dispêndios com os juros terem diminuído em comparação ao ano anterior, houve um aumento do déficit nominal, pois desta vez o resultado primário foi também menor do que o registrado em 2005 (tabela 1.1).

Estes resultados evidenciam a lógica o desenho da política macroeconômica - iniciada no segundo governo FHC e que teve continuidade no primeiro mandato de Lula - que combina o arrocho monetário e fiscal. O objetivo central é a manutenção da inflação dentro das metas estabelecidas previamente pelo Banco Central, que se utiliza da taxa básica de juros para garantir este fim, produzindo três efeitos: 1-) sacrifício do crescimento econômico, que causa naturalmente pressões inflacionárias quando ocorre crescimento da renda; 2-) apreciação do câmbio, pois os juros brasileiros colocados em patamares bem superiores aos juros internacionais atraem investimentos externos, de caráter financeiro - especialmente em período de elevada liquidez no mercado internacional - que atuam na direção de valorizar o real frente ao dólar, o que também colabora para o alcance das metas de inflação (pass-thought); e 3-) aumento dos gastos do governo com o pagamento de juros, cujos recursos são provenientes da economia primária realizada pelo setor público, ou seja, os superávits primários cada vez maiores têm o duplo papel de viabilizar recursos para o pagamento dos encargos financeiros da dívida (juros e amortizações) e de reduzir o déficit nominal e manter sobre controle a relação Dívida/PIB.

Devido ao período de alta liquidez internacional, observou-se ao longo do governo Lula uma apreciação do real frente ao dólar em razão da forte entrada de dólares na economia brasileira - através de capitais financeiros e também, em menor grau, via IDE - o que permitiu a eliminação do endividamento externo21 e a redução do peso dos títulos da dívida interna indexados ao dólar (LOPREATO, 2006). No entanto, a situação da dívida interna sofre com o peso dos juros nominais, que é o fator determinante deste endividamento, após a queda observada em 200422. Nos últimos dois anos, o enorme esforço fiscal tem sido insuficiente para reduzir o déficit nominal, devido ao peso dos encargos com o pagamento dos maiores juros do mundo.

Não obstante, alguns autores afirmam que o esforço fiscal foi pequeno e que é necessário aprofundar o ajuste, a fim de zerar o déficit nominal (DELFIM NETTO e GIAMBIAGI, 2005; GIAMBIAGI, 2006a, 2006b) o que permitiria, em seguida, uma redução no patamar de juros. Porém, não há evidências teóricas desta pré-condição e nem tão pouco existem garantias da posterior queda dos juros quando o déficit nominal zero for alcançado.

Deve-se ainda compreender que o resultado das contas públicas tem na política fiscal uma variável de ajuste, mas a sua determinação provém dos movimentos do câmbio e dos juros e do nível de atividade econômica (BIASOTO JR, 2004, p.10). Em outras palavras, a ausência de controle sobre as flutuações nas taxas de câmbio e de juros, subordina o papel da política fiscal à redução dos efeitos sobre as contas públicas, funcionando como fiadora da política econômica. Logo, não se pode atribuir a responsabilidade pelos juros altos, pelo risco-país e pelo baixo crescimento à gestão fiscal (LOPREATO, 2006). Além disso, a obtenção do superávit primário para o pagamento de juros gera efeitos restritivos sobre a economia, pois mesmo com o déficit nominal, há uma clara transferência de renda, via pagamento de juros, daqueles que pagam impostos, através de um sistema tributário de caráter regressivo, para os detentores de títulos da dívida pública, que correspondem à camada mais abastada da sociedade e que possuem uma menor propensão ao consumo (MACEDO E SILVA, 2005).

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No entanto, uma nova reversão no ciclo de liquidez internacional e uma nova fuga de capitais podem colocar sob questão esta redução da vulnerabilidade externa.

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O resultado de 2004 mostra a possibilidade, apontada em Lopreato (2006), de eliminar o déficit nominal e reduzir a relação dívida/PIB, em um contexto de maior crescimento econômico.

Por fim, deve-se ter claro que a obtenção de um resultado primário positivo não é apenas um índice e é preciso ter em conta a maneira como este é realizado, bem como os seus efeitos sobre a economia e sobre o financiamento das políticas públicas, especialmente, neste trabalho, aquelas de caráter social e universal. A seção seguinte mostrará a subordinação dos gastos sociais e dos investimentos em relação às despesas financeiras, em função dos pilares da política econômica.