• Nenhum resultado encontrado

III. CONSCIÊNCIA POLÍTICA, UNIDADE POLÍTICA E ORDEM JURÍDICA

2. Unidade política como fundamento histórico-cultural da ordem jurídica

2.1. Constituição, direito e Estado

Tanto no capítulo destinado à exposição do pensamento de Hegel, quanto no de Schmitt, tratamos de pontuar e ressaltar que ambos se fundam em uma contraposição radical a um pensamento de viés liberal que visa a estabelecer na liberdade individual o fundamento da ordem jurídico-política. Enquanto em Schmitt essa contraposição entre o ético e o econômico, fundamental para a constituição de seu pensamento, não é, contudo, colocada no seu seio como o conteúdo determinante do conflito que para ele caracteriza o político, nessa contraposição entre interesse individual e vontade substancial Hegel estabelecerá o conteúdo essencial que determina a superação daquela negatividade no plano concreto do político, que é o Estado.

Tratamos de apresentar, de maneira assaz resumida, é verdade, na filosofia moral de Kant a manifestação mais acabada em seu tempo do esquema de pensamento liberal - que nela se apresenta tanto na fundação contratual do Estado na liberdade subjetiva quando no fundamento moral do conteúdo do direito. A esta abstração Hegel fará a mais feroz oposição

355

teórica, crítica, mas mais que isso, e por isso mesmo, dela fará o derradeiro degrau para erigir seu pensamento político. Coisa semelhante ocorre com Schmitt em relação a Kelsen, o expoente do normativismo – normativismo esse que para aquele é a formulação mais acabada do liberalismo do século XIX, em sua sanha de esvaziar o direito, divorciando-o de seu conteúdo concreto, o que ocorre, sobretudo, quando pretende desatrelá-lo do Estado que lhe coloca356.

Dessa forma, tem-se que, tanto para Kelsen quanto para Kant, como ensina Goyard- Fabre, ―para atingir a fundação do direito, é preciso ‗orientar o pensamento para seu a priori

jurídico‘‖. 357

Apesar de a aproximação entre os pensamentos de Kant e Kelsen ser tão multifacetada, possuindo tantos pontos de contato e afastamento quanto a aproximação entre Hegel e Schmitt, e da mesma forma demandaria um trabalho inteiro dedicado a essa temática358, acreditamos que, positivamente, o principal e mais evidente elo consiste na peremptória negação da fundação do direito na empiria da ordem concreta. Assim, para

ambos, ―nenhum conceito jurídico provém de condições empíricas: o direito não encontra sua fonte, antes do direito, na experiência regida pelas leis da natureza, nem, para além do

direito, num paradigma transcendente.‖ 359

É dessa abstração racional na qual a reflexão liberal jogou Estado e direito, então, que Hegel e Schmitt tentarão resgatá-los, restabelecendo seu estatuto substancial e a dignidade que a história lhes confere como elementos da cultura, fundados na substância concreta da unidade política à qual aderem. Assim coloca César Augusto Ramos:

Em bases diferentes, mas com o mesmo objetivo de destacar o conceito do político como elemento decisivo da sociabilidade, tanto Hegel como Schmitt expõem teses que atestam o caráter positivo do Estado na afirmação do político. Ambos recusam a instrumentalização do Estado em favor da sociedade o que leva à negação do político ou à sua neutralização e despolitização. Tanto um como outro repudiam a

356

Ressalva-se que a filiação de Kelsen ao liberalismo não se esgota no fato de ele fundamentar o direito na liberdade individual, fato, aliás, discutível, mas na própria tentativa de desubstancializar o direito, retirando dele qualquer fundamento concreto, e conferindo-lhe tão somente um fundamento de validade formal.

357

GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 366.

358

Cf. GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen. 2. Ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

359

GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 338. E prossegue, explicitando o que considera o traço comum entre o pensamento de ambos:

―A juridicidade do direito reside em seu princípio interno de possibilidade, isto é, nas leis da liberdade próprias da razão pura prática. [...] A razão necessária do direito é portanto sua fundação imanente; é indissociável do poder de constituição e da organização da razão. Assim o direito só é inteligível reportado ao horizonte transcendental de sentido e de valor que, na medida em que indica a exigência pura a priori da razão, o motiva, o constitui, o organiza e o legitima.‖ (GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad.

idéia liberal/do privilégio da sociedade civil face ao Estado, o qual surge apenas como mal necessário ou mero instrumento dos interesses privados. Portanto, a crítica ao liberalismo de Hegel como de Schmitt significa, também, a crítica à negação do político e à instrumentalização do Estado, ou seja, a hipótese de que a sociedade deve, ela mesma, encontrar formas de auto-regulação econômica e política excluindo como objetivo final o Estado.360

Com efeito, Hegel dirá que o liberalismo

apregoa o princípio atomístico, aquele que insiste no domínio das vontades individuais, afirmando que toda forma de governo deve emanar desse poder expresso e ter a sua sanção. Ao afirmar esse lado formal da liberdade – essa abstração -, o grupo em questão impede que qualquer organização política se estabeleça firmemente. Os arranjos específicos de governo são bombardeados pelos defensores da liberdade como mandatos da vontade particular e tachados de amostras de poder arbitrário.361

O Estado hegeliano constitui, destarte, o grande esforço de superação dessa perspectiva individualista liberal, tanto no que concerne ao aspecto da vontade subjetiva quanto da liberdade individual, termos correlatos da afirmação liberal da proeminência do individual em relação ao ético. Enquanto o primeiro aspecto, o da vontade subjetiva, é apresentado através da formulação kantiana da razão pura prática e inserido no sistema como o momento da moralidade superado na eticidade, o segundo aspecto, o da liberdade individual, aparece como desdobramento da eticidade no momento particular da sociedade civil superada no Estado como totalidade ética. A filosofia de Hegel concerne então a uma superação global de todos os elementos dados pelo liberalismo no plano da sua filosofia de totalidade: do individual ao ético, do subjetivo ao objetivo, do abstrato ao concreto, do particular ao universal. Mayos, no mesmo sentido, comenta:

O que acontece, isso sim, é que Kant e muitos outros têm diferentes posições contra Hegel, não identificando na sua totalidade a verdadeira liberdade com o Estado, com o direito consuetudinário ou com o percurso efectivo da história. Os kantianos, os liberais e os individualistas nunca darão o salto hegeliano que assimila a liberdade com o espírito objetivo, com as garantias objectivas e promulgadas de tal liberdade, por muito que possam entender que estas são, muitas vezes, a única realização positiva e a única satisfação efectiva da liberdade; desta forma, só com elas a liberdade adquire existência e garantia objectiva.362

360

RAMOS, César Augusto. Hegel E Schmitt: uma relação ambígua em torno da afirmação do político. Síntese

Nova Fase, Belo Horizonte, v. 23, n. 74, 1996, p. 382. 361

HEGEL,G.W.F. Filosofia da História. 2. ed. Brasília: UnB, 1999, p. 370.

362

SOLSONA, Gonçal Mayos. G. W. F. Hegel. Vida, pensamento e obra. Trad. Catarina Mourão. Barcelona:

Planeta De Agostini, 2008, p. 126. Disponível em:

A adesão do indivíduo ao Estado é determinada em Hegel pelo patriotismo, o influxo ético que faz com que a liberdade individual apresentada na sociedade civil como interesse econômico seja identificada com a ordem objetiva possibilitando a liberdade substancial que se dá no e pelo Estado racional, a totalidade que assume a diferença como elemento fundante da identidade entre os cidadãos do Estado ético. O elemento de unidade é dado dialeticamente pela suprassunção do indivíduo cindido numa totalidade orgânica na qual é todo, sendo parte. Assim, com Bourgeois,

se a sociedade expõe no elemento da diferença, portanto dos indivíduos que se afirmam assim no primeiro plano, a identidade deles e do todo, o Estado é antes a autodiferenciação, nos indivíduos, de sua identidade originária então presente e atuante neles: o patriotismo é a prova dessa essência ontológica própria do Estado,

cuja expressão normativa é que ‗a obrigação suprema dos [indivíduos é] ser

membros do Estado.363

Se o patriotismo determinará, assim, a integração do indivíduo no Estado como totalidade por ser este o momento singular do Espírito Objetivo, o racional da liberdade em si e para si, realização plena da razão na história, essa integração deverá possuir, também em conformidade com a determinação necessária da liberdade, a forma de uma Constituição, a Constituição do povo do Estado, ou melhor, a Constituição pela qual o povo se faz Estado. Essa Constituição do Estado racional deverá estabelecer normativamente, no plano do direito estatal interno, as determinações pelas quais a liberdade se objetiva racionalmente.

Poderia se entender, com isso, que as determinações da Constituição do Estado efetivo, por serem a forma racional, portanto necessária, da objetivação do Espírito, deveriam atender uniformemente a um modelo superior, supra-normativo de racionalidade que ditaria de maneira universal os conteúdos aos quais todo e qualquer Estado que se pretenda racional deve se submeter.

No entanto, a razão dialética hegeliana não concerne a uma dicção do dever ser puro do Estado desde o ponto de vista racional abstrato. O Estado, por ser o racional concreto do Espírito Objetivo, não abre mão da história e da cultura exatamente porque tem neles as bases de sua efetividade. Nesse sentido já mostramos, inclusive, que a Constituição do Estado não

pode prescindir da ―contingencialidade‖ histórica (que não é nada contingente) de sua base

nacional porque é nessa positividade da existência concreta do povo que reside a existência racional do Estado, tanto do Estado apenas em-si, quanto do Estado em-si e para-si. Desta

363

BOURGEOIS, Bernard. Hegel – os atos do espírito. Trad. Paulo Neves. São Leopoldo: UNISINOS, 2004, p. 125.

sorte, não há falar em Estado desatrelado de sua positividade histórica, pois a eticidade que nele se desdobra de maneira mais efetiva concerne exatamente à reconcialiação do Espírito com sua obra, a cultura. Sua efetividade reside não no abandono de suas determinidades históricas, mas, pelo contrário, de sua afirmação máxima. Neste consorte, a associação política, apesar de concernir racionalmente à integração do indivíduo no Estado, não se dá afastada das particularidades concretas mediante as quais essa integração se verifica historicamente. A totalidade do Estado concerne ao estatuto racional do povo enquanto tal, de modo que suas particularidades estão, muito antes que dispensadas, pressupostas. Com efeito, Hegel dirá:

Visto que o espírito apenas é enquanto efetivo, enquanto o que ele se sabe, e o Estado, enquanto espírito de um povo, igualmente é a lei compenetrando todas as

suas relações, os costumes e a consciência de seus indivíduos, assim a constituição

de um povo determinado depende, em geral, do modo e da cultura da autoconsciência do mesmo; nessa reside sua liberdade subjetiva, e com isso a efetividade da constituição.

Querer dar a priori a um povo uma constituição, ainda que mais ou menos racional quanto ao seu conteúdo, - essa fantasia negligenciaria precisamente o momento pelo qual ela é mais do que um ente de pensamento. É por isso que cada povo possui a constituição que lhe é adequada e que lhe compete.364

Bourgeois explica:

Uma constituição não pode ser, propriamente falando, ‗feita‘, pois ela se antecipa de

certo modo a si mesma num devir que é o do espírito de um povo: sua estrutura

objetiva ‗depende, de maneira geral, da maneira de ser e da cultura da consciência de si‘ de um povo, e é ‗nesta última [que] reside [a] liberdade subjetiva‘ desse povo, ‗e, nisto, a efetividade da constituição‘. Eis porque ‗cada povo possui a constituição

que lhe é apropriada e lhe pertence‘, o que prova negativamente, por exemplo, o fracasso de Napoleão ao tentar em vão impor aos espanhóis uma constituição não obstante mais racional, em si, que a deles.365

Pode-se dizer, então, que a Constituição que tem a forma racional em si e para si do povo constituído como Estado racional concreto, traz em seu bojo, por isso mesmo, a substância particular do ethos desse povo, e por isso é sua obra máxima, tanto por ter a forma racional em-si e para-si conforme os contornos sistemáticos, quanto por efetivar sua particularidade no plano de sua existência histórica. Explica Bourgeois:

364

HEGEL, G. W. F.. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou, Direito natural e ciência do estado em

compêndio. Trad. Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa, Greice

Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010, p. 259-60, § 274.

365

BOURGEOIS, Bernard. Hegel – os atos do espírito. Trad. Paulo Neves. São Leopoldo: UNISINOS, 2004, p. 124-5.

Certamente, a Constituição não será a de um Estado vivo se não organizar o espírito de um povo ou a alma de uma nação, mas a realidade natural da nação ou do povo, celebrada por um romantismo que exalta ao mesmo tempo a emancipação das individualidades, só pode afirmar-se através dessas últimas pela ‗constituição‘ do Estado, expressão anti-romântica de sua racionalização concreta.366

É dizer, o Estado só é universal, se é também um Estado particular367; o conteúdo político-jurídico determinado por sua Constituição racional lhe dará a universalidade que reivindica apenas se tiver no povo sua realidade concreta, porque seu fundamento histórico- universal, enquanto fundamento espiritual, reside no espírito do seu povo, em seu ethos particular.368Ora, como lembra o Lima Vaz, ―ethos, em grego, significa costume. Portanto, o caráter ético significa aquela unidade plasmadora dos costumes de um povo que faz com que

aquele povo unifique todas as manifestações da sua vida, da sua atividade.‖ 369 Essa

unificação se dá, em sua expressão mais efetiva, mediante sua formalização pela Constituição. A forma racional universal que a Constituição confere à unidade do povo não se dá de maneira extrínseca, por justaposição, mas interna, por elevar a particularidade desse povo à máxima estabilidade formal no plano da liberdade concreta que assim se realiza. Tem-se, então, que ―a substância que se sabe livre, em que o dever-ser absoluto é igualmente ser, tem

efetividade como espírito de um povo.‖ 370. À Constituição compete a elevada tarefa de

traduzir o ser do espírito do povo em termos de dever-ser. O ethos do povo tem no Estado constitucional sua máxima realização, pois a Constituição formaliza sua substância, e universaliza sua particularidade realizando historicamente (portanto racionalmente) a efetividade do seu espírito dando-lhe existência concreta. E, dessa forma, com essa arrumação, o povo constituído como Estado estabelecerá como direito positivo, isto é o direito

366

BOURGEOIS, Bernard. Hegel – os atos do espírito. Trad. Paulo Neves. São Leopoldo: UNISINOS, 2004, p. 126.

367 ―Porque a substância é a unidade absoluta da singularidade e da universalidade da liberdade, é assim a

efetividade e a atividade de todo o Singular, [que consiste] em ser e cuidar para si, [o que] está condicionado

tanto pelo Todo pressuposto em cuja conexão, somente, existe; quanto também por uma passagem para um produto universal.‖ (HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. São Paulo: Loyola, 1995, p. 296, § 515.)

368É por isso que Hegel afirma na Filosofia da História que ―Frederico II deve ser ressaltado em particular, por ter abrangido, no pensamento, o fim universal do Estado, e por ter sido o primeiro regente a manter o universal no Estado e não ter preferido o particular quando este era oposto ao fim do Estado. Sua obra imortal é uma legislação natural, o direito nacional.‖ (HEGEL,G.W.F. Filosofia da História. 2. ed. Brasília: UnB, 1999, p. 362.) O que ele está dizendo é que o fim universal que Frederico II deu ao Estado foi justamente um direito nacional particular, de modo que isso fez de seu Estado um Estado universal.

369

LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. O conceito de sociedade civil em Hegel. Belo Horizonte: DCP, FAFICH, 1982. Apud: MIRANDA-COSTA, Ílder. Sem título. Belo Horizonte: UFMG (Trabalho apresentado nos Seminários Hegelianos VI), 2008, p. 20.

370

HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. São Paulo: Loyola, 1995, p. 295, § 514.

posto por ato de vontade seu, o conteúdo particular que é seu, da comunidade nacional, isto é, seu ethos, cuja expressão máxima é a Constituição:371 Assim, dirá Hegel:

A garantia de uma constituição, isto é, a necessidade de que as leis sejam racionais e sua efetivação seja assegurada, reside no espírito do conjunto do povo, a saber, na determinidade segundo a qual ele tem a consciência-de-si de sua razão (a religião é essa consciência em sua substancialidade absoluta) e então, ao mesmo tempo, na

organização efetiva, enquanto desenvolvimento daquele princípio. A constituição

pressupõe aquela consciência do espírito e, inversamente, o espírito pressupõe a constituição, pois o espírito efetivo mesmo tem a consciência determinada de seus princípios somente enquanto estão presentes para ele como existentes.

A questão: a quem, a que autoridade – e organizada de que modo – compete fazer

uma Constituição, é a mesma que esta: quem tem de fazer o espírito de um povo. Se

se separa a representação de uma constituição da do espírito, como se ele bem existisse ou tivesse existido sem possuir uma Constituição à sua medida, tal opinião prova somente a superficialidade do pensamento sobre a coerência do espírito, de sua consciência sobre si e de sua efetividade. O que assim se chama fazer uma Constituição, em razão dessa inseparabilidade, nunca se encontrou na história, tampouco como fazer um Código de leis: uma Constituição só se desenvolveu a partir do espírito, em identidade com o seu próprio desenvolvimento; e, ao mesmo tempo com ele, percorreu os graus necessários e transformações através do conceito. É o espírito imanente e a história – é na verdade a história e somente sua história – por quem as Constituições são feitas e foram feitas. 372

Em Schmitt temos uma construção muito semelhante. Para ele, o Estado, igualmente, se estrutura mediante um conteúdo particular, concretamente determinado, exatamente o que lhe irá estabelecer como uma unidade política, que é informada pela igualdade substancial do povo. A grande diferença é que, enquanto o Estado de Schmitt estanca nessa afirmação abstrata de sua unidade pela identidade de seus membros mediante a negação estática da desigualdade ameaçadora representada por seu inimigo, Hegel fará da particularidade concreta da nação apenas um momento - se bem que essencial, evidentemente - da universalidade do Estado, mas que só se completa racionalmente quando este concerne à

realização efetiva da liberdade. De qualquer forma, como dirá Salgado, ―tal como Hegel

371

Com efeito, dirá Hegel já no § 3 da Filosofia do Direito: ―O direito é positivo, de maneira geral a) pela forma de ter validade me um Estado, e essa autoridade legal é o princípio para o conhecimento do mesmo, a

ciência do direito positiva. b) Segundo o conteúdo, o direito recebe um conteúdo mediante o caráter nacional particular de um povo, do grau de seu desenvolvimento histórico e da conexão de todas as relações que pertencem à necessidade natural. [...] No que concerne ao elemento histórico do direito positivo, [...] a consideração histórica verdadeira, o ponto de vista autenticamente filosófico, [consiste em] examinar a legislação em geral e suas determinações particulares, não de maneira isolada e abstrata, porém como momento dependente de uma totalidade em conexão com todas as suas determinações particulares, que constituem o caráter de uma nação e sua época; é nessa conexão que recebem sua verdadeira significação, assim como sua justificação.‖ (HEGEL, G. W. F.. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou, Direito natural e ciência do estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, Danilo

Vaz-Curado R. M. Costa, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010, p. 49-50, § 3.)

372

HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol III. A Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. São Paulo: Loyola, 1995, p. 311-312, § 540.

compreende a unidade de um povo por meio do Estado, Schmitt assegura-se desse princípio. ‖ 373

Nesse, ínterim, dirá Schmitt que o Estado de Hegel

no consiste en la paz civil, la seguridad y el orden de un funcionalismo legal

previsible y coactivo. No es ni mera decisión soberana, ni una ‗norma de normas‘, ni

una combinación alternativa entre excepción y legalidad de ambas representaciones del Estado. Es un concreto orden de ordenes, uma institución de instituciones.374

Adotando esse ideal de Estado e pretendendo restabelecer à existência política a dignidade que o liberalismo lhe furtara, Schmitt se põe a combater a este com o mesmo vigor que Hegel. Como explica Kervégan, ―o que aproxima o jurista Carl Schmitt de Hegel é uma