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II. AMIGO E INIMIGO, UNIDADE POLÍTICA E ORDEM CONCRETA EM CARL SCHMITT

2. Unidade política e ordem jurídica

2.1. O normativismo kelseniano e a Teoria Pura

Um dos pontos centrais do pensamento schmittiano que ainda não abordamos e com o qual muitas vezes ele é identificado de maneira peremptória e reducionista é o decisionismo. Com efeito, tal posicionamento ante a ciência jurídica conforma seu pensamento desde seus primeiros escritos, e o texto em que ele o expõe de maneira mais detida é em sua Teologia

Política237, de 1922, reeditado em 1933, onde trata especificamente da doutrina da soberania.

Logo no início do texto, no capítulo dedicado à definição de soberania, Schmitt lança o

236

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – Anti- Semitismo, Imperialismo e Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 189.

237

SCHMITT, Carl. Teologia política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996.

notório e polêmico aforismo: ―Soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção.‖ 238

Com essa assertiva, como veremos, ele pretende colocar sua tese segundo a qual a decisão é que fundamenta a ordem, bem como comprovar tal afirmação através da figura do estado de exceção. Assim, como já evidenciamos o caráter polêmico e combativo do pensamento Schmitt, é exatamente mediante esse pressuposto que interpretaremos essa afirmação a partir do pensamento ao qual ela se contrapõe: o normativismo. Para tanto, admitindo a abrangência e complexidade desse conceito, preferimos nos reportar especificamente ao pensador que de maneira mais radical assumiu essa maneira de pensar e ao qual Schmitt mas veementemente combateu em sua crítica ao normativismo por ver nele sua mais alta expressão: Hans Kelsen.

O pensamento de Kelsen alia sua concepção normativista do direito e do Estado à doutrina juspositivista: sua percepção da realidade do Estado como puramente normativa se junta ao ponto de vista positivista segundo o qual uma realidade normativa só tem seu fundamento de validade em um critério formal, e, desta forma, Kelsen conclui que o direito deve ser estudado pelo jurista apenas desde essa perspectiva formal. Aqui adentramos nos domínios da Teoria Pura do Direito, que na realidade concerne à formatação epistemológica do pensamento normativo-positivista kelseniano exposta no livro de mesmo nome, publicado em 1934. Segundo Mata-Machado, tal teoria representa o ponto de cumeada a que alçou a doutrina juspositivista, que já vinha sendo elaborada já desde o séc. XIX.239 Nos dizeres desse consagrado autor,

a teoria pura do Direito extrai as últimas conseqüências da filosofia e da teoria jurídicas do século XIX, originariamente anti-ideológicas e positivistas‖. Entre os

propósitos mais acentuadamente expressos da Teoria Pura está o de ‗isolar a

exposição do Direito positivo de toda sorte de ideologia jusnaturalista em termos de

justiça‘. Por isso mesmo, Kelsen pode afirmar, enfaticamente: ‗a Teoria Pura do Direito é a teoria do positivismo jurídico‘.240

Kelsen, no prefácio da Teoria pura do direito, ao dissertar sobre a resistência encontrada pela Teoria Pura em razão da negativa dada por essa, ao levar às últimas consequências alguns dos postulados já presentes nos juspositivistas que o precederam, de aceitar que o objeto do Direito possa ser definido a partir de conteúdos particulares, acaba por

238

SCHMITT, Carl. Teologia política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 87.

239

Se bem que outros autores costumam apontar Hobbes como o precursor das doutrinas positivistas.

240

MATA-MACHADO, Edgar de Godoi. Elementos de teoria geral do Direito. Belo Horizonte: Vega, 1976, p. 132.

traçar um quadro nítido da natureza da oposição feita pelos partidários do direito natural aos desenvolvimentos de seu normativismo:

A luta não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas conseqüências que daí resultam, mas pela relação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objetiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter um caráter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas fés, como ideal de uma religião, de uma nação, ou de uma classe.241

O que se nota aí, então, é a inadmissão por Kelsen de uma Ciência do Direito cujo objeto seja dado por conteúdos particulares cuja validade jurídica seja aferida com vistas a um critério valorativo que, mesmo remontando, na teoria, a uma instância superior e objetiva, não é objetivamente demonstrado de maneira satisfatória, e acaba por ser fruto de juízos de valor. Contra isso, Kelsen propõe um modo de conhecer o direito alheio a todo e qualquer juízo subjetivo, porque este direito agora está desvinculado do conteúdo que consubstancia. Pugnando pela delimitação precisa de seu objeto e construção rigorosa do método do Direito, para assim livrá-lo de todos os ―elementos que lhe são estranhos‖, Kelsen constrói um método em sua Teoria Pura do Direito, que, adverte logo no início da obra:

Quando a si própria se designa como ‗pura‘ teoria do Direito, isto significa que ela

se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, definir como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é seu princípio metodológico fundamental.242

Todo o esforço de Kelsen consiste em instituir uma pureza metodológica 243 na Ciência do Direito para que ela possa, assim, conhecer seu objeto em sua essência intrinsecamente peculiar. Não mais o direito enquanto fato, não mais o direito enquanto valor, não mais o direito enquanto norma supra-positiva: o jurista, de agora em diante, deverá estudar o direito conforme aquilo que Kelsen percebeu, juntamente com os juspositivistas, ser

241

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XII.

242

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 01

243

Ressalte-se, como faz Matos, que ―Kelsen jamais quis construir uma ciência do direito puro. Tal

representaria uma ingenuidade vã. O purismo kelseniano refere-se à teoria, à forma de conhecer e estudar o direito, e não ao próprio direito em si‖. (MATOS, Andityas Soares de Moura Costa-. A concepção de justiça de Hans Kelsen em face do positivismo relativista e do jusnaturalismo absolutista (Dissertação de mestrado). Belo

sua essência: a validade formal. E essa percepção, que Kelsen apreendeu de maneira muito mais radical que qualquer outro, como dito, não foi nada arbitrária, mas nasceu da aferição de que o conteúdo do direito é essencialmente mutável no tempo e no espaço, de modo que o fato de uma norma estatal, em um dado tempo ou lugar, proibir uma conduta, e outra norma igualmente estatal promulgada em época ou local diferentes permitir a mesma conduta não faz com que nenhuma delas perca seu caráter essencial de normas jurídicas. O que confere juridicidade a uma dada norma é sua positividade, sua validade formal.

Kelsen não nega que o direito possa ser estudado pela psicologia, pela sociologia, pela ética ou pela teoria política, porque não nega que o direito possua aspectos que interessem também a esses ramos do saber. Mas ele não admite que tais estudos abarquem a essência do direito, exatamente porque para ele o direito possui uma natureza especial que transcende a essas abordagens particularistas, que partem de conteúdos inefetivos:

Quando a teoria pura pretende delimitar o conhecimento do Direito em face dessas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.244

O que Kelsen faz aqui, não se pode deixar de perceber, é identificar ―a natureza do

direito‖ numa operação eminentemente lógico-transcendental, pois ele descarta todos os

conteúdos particulares que o direito possui ou pode possuir no plano dos fatos ou dos valores para instituir tão somente o elemento formal como o conformador de sua ―natureza‖.

Conforme ensina Matos:

A única pretensão da Teoria Pura do Direito é conhecer seu objeto – razão pela qual o purifica metodologicamente -, o que não seria possível sem o formalismo. Ora, não se faz ciência de uma ordem jurídica particular, estudando o conteúdo de suas normas, mas antes do direito positivo em geral que, segundo Kelsen, só pode ser objeto de uma ciência formal exatamente porque essa não se ocupa de conteúdos mutáveis e mutantes ao sabor das circunstâncias políticas, econômicas, ideológicas, éticas, culturais, etc.245

Mas se é verdade que tal operação é coerente com a percepção da realidade jurídica que é de frequente transformação, não se pode, entretanto, negar que é também uma operação

244

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 2

245

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A concepção de justiça de Hans Kelsen em face do positivismo

que evidencia uma opção filosófica fundamental de transcendência, pois refugia o direito, pelo menos o direito enquanto essência a ser penetrada pelo jurista, em um plano completamente apartado da realidade díspar e caótica que aparece como matéria jurídica. O direito se transforma, ou pelo menos se assume como forma, e se despe dos conteúdos fáticos e axiológicos que antes se acoplavam a ele como corpos estranhos. Esses, se desprendendo daquele, serão estudados pelas ciências incumbidas de suas particularidades epistêmicas, e o direito resta purificado de todos os elementos alienígenas para que assim possa ser mais rigorosamente conhecido pelo jurista a partir de sua essência que, repita-se, é formal. Podemos dizer que Kelsen identifica a essência ontológica do direito como forma, e para tanto opera uma transcendência em relação a tudo aquilo por ele identificado como conteúdos particulares que estão positivados justamente pelo elemento formal da norma jurídico- positiva, esta, e não aquele, constituindo o objeto do Direito. É só a partir deste ponto de partida que ele pode formular seu método da Teoria Pura do Direito: identificado o objeto como um objeto formal, o método restará adaptado a essa essência de seu objeto.

É por assumir uma postura francamente anti-ideológica no âmbito do Direito que Kelsen identifica a ontologia do direito como forma. O direito, enquanto objeto de estudo jurídico, deveria se apartar de toda e qualquer fundamentação ideológica, por objetiva ou subjetiva, moral ou imoral, boa ou má que fosse, exatamente porque esses conteúdos não lhe são próprios, e por isso não competem ao jurista. Decerto que essa construção desperta as maiores animosidades por parte daqueles que, por mais bem intencionados que estejam, desejam ver atrelada à essência do direito os conteúdos normativos que almejam positivar. Kelsen, contudo, desalojou toda a discussão valorativa acerca de conteúdo normativo do direito e tratou de exilá-la na seara política, procedimento esse de tal modo rigoroso e elegante, que até fica parecendo isento de preocupação política.

É nesse diapasão que, dentro de seu âmbito formal de investigação, irá esboçar sua teoria do ordenamento remetendo-o a um critério igualmente formal para a conformação da sua unidade. Com efeito, eleva ele a concepção típica do normativismo segundo a qual toda norma jurídica tem seu fundamento de validade em outra norma jurídica superior (e não em uma decisão) à sua extrema e, desde este ponto de vista, necessária consequência de se fundar toda a ordem jurídica em uma norma abstrata – a norma fundamental. Na estrutura piramidal do ordenamento preconizada por Kelsen, chega-se à norma fundamental de natureza pressuposta que é a condição de validade formal de todas as outras normas jurídicas. Como dito, este é um corolário da concepção desse autor acerca da correlação entre os atos de

aplicação e criação do direito. Segundo esse modelo, o ato de criação do direito é a aplicação de uma norma superior, que autoriza a criação da norma inferior. Aí se encontra vislumbrada a essência hierárquica do direito que conforma o aspecto piramidal do ordenamento jurídico. Chegando-se, então, ao topo da pirâmide, teríamos, a princípio, a Constituição como o ponto do qual se originam todas as outras normas. Contudo, percebe Kelsen que a simples existência da Constituição enquanto norma posta não explica a validade do ordenamento, visto que a Constituição, também ela, exigiria a existência de outra norma superior que a tenha dado causa. Com isso, cria Kelsen a norma fundamental como fundamento último de validade formal de todo o sistema, cuja existência, contudo, não é posta, mas pressuposta. Tal opção de parar sua averiguação do fundamento último de validade do direito em uma norma sem conteúdo resulta de sua concepção epistemológica do Direito como uma ciência pura, sem a qual ele haveria de se enveredar pelo campo da filosofia (metafísica), sociologia, etc, campos do saber para ele vedados à investigação jurídica.

Poderia se dizer, então, que apesar de Kelsen proscrever à ciência do direito a busca por um fundamento material de validade do direito – ainda que circunstancial, haja vista que ele adota como postura filosófica o relativismo axiológico – ele poderia conceder a outras ciências, tal como o faz em relação ao conteúdo do direito, a possibilidade de auscultar o fundamento concreto de validade do ordenamento. De fato, uma leitura que leva em conta tão somente a Teoria Pura poderia depreender que o normativismo kelseninano seria puramente epistemológico.246

246

Nessa perspectiva, afirma Travessoni Gomes que ―a norma fundamental é um fundamento epistemológico.

Decorre a postulação do fato de que uma norma só retire seu fundamento de validade de uma outra norma e, ainda, de não poder admitir uma dedução ad infinitum.‖ (GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen. 2. Ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 286-287.) Mas mesmo essa

perspectiva estritamente epistemológica é insuficiente e está sujeita a inúmeras críticas, como a capitulada por Salgado no prefácio da referida obra: ―Com razão observou Bobbio a desnecessidade de uma pureza tal que

pusesse o direito como saber sem pressupostos ou desligado da realidade externa; isso resultaria num sincretismo da postura filosófica – que tem a pretensão de conhecer sem pressupostos, por ser de totalidade – com a científica strictu sensu, a qual, sendo um conhecer particular, tem de inserir o direito no real como um todo e admitir a sua vinculação, mesmo que seja casual, com outros fenômenos não especificamente jurídicos e que devem ser tratados na ultrapassagem da fronteira epistemológica do recorte temático dado pelos respectivos objetos formais de outras ciências, no caso, a que nasce do fato do poder de que nasce a constituição.‖ (SALGADO, Joaquim Carlos. Prefácio. GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen. 2. Ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 286-287.) Assim, também,

Voegelin, ao criticar o positivismo, em referência clara, porém não explícita, a Kelsen, coloca que os princípios

que orientam o método da Ciência Política ―devem ser retomados através de um trabalho de teorização que tenha origem na situação histórica concreta do seu próprio tempo e leve em conta a amplitude global do conhecimento empírico desse tempo. [...] A ciência é a busca da verdade com respeito aos vários domínios da existência. Para ela é pertinente o que quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos são pertinentes na medida em que seu conhecimento contribua para o estudo da essência, enquanto que os métodos são adequados na medida em que possam ser usados efetivamente como meios para chegar a esse fim. Se não se medir a adequação de um método pela sua utilidade com relação ao propósito da ciência; se, ao contrário, se fizer do

Contudo, pode-se constatar em diversas outras obras de Kelsen, sobretudo aquelas sobre teoria do direito e do Estado, que seu formalismo não é puramente epistemológico, tal como esposado na Teoria Pura na figura da norma fundamental, mas se patenteia sobremaneira na perspectiva normativista pela qual concebe a ordem jurídica. Para ele, a norma é substância e fundamento da ordem jurídica. Não é outro o motivo pelo qual ele adota a teoria monista de direito e Estado, que os considera como uma e a mesma coisa, pois pretende fazer desaparecer completamente o Estado enquanto instância concreta de poder distinta e paralela à norma. Assim, para ele,

Es sabido que la esfera existencial del Estado posee validez normativa y no eficacia causal; que aquella unidad específica que ponemos en el concepto de Estado no radica en el reino de la realidad natural, sino en el de las normas o valores; que el Estado es, por naturaleza, un sistema de normas o la expresión para designar la unidad de tal sistema; y sabido esto, se há llegado ya al conocimiento de que el Estado, como orden, no puede ser más que el orden jurídico o la expressión de su unidad. 247

Percebe-se que o monismo kelseniano é decorrência lógica das premissas de seu normativismo. Por tentar fundar a ordem jurídica em uma norma, conferindo-lhe caráter formal, não pode reconhecer a realidade substancial correlata ao direito que é o Estado como um ente autônomo, pois dessa forma teria que admitir que suas determinações pudessem ser diferentes das determinações jurídicas, o que, para um normativista da estatura de Kelsen, é inconcebível. Como explica Andityas Matos,

Kelsen conclui que o Estado não se manifesta mediante um conjunto específico de fatos sociais, sendo apenas um reflexo das modalidades deônticas do direito, em especial da unidade sistemática que qualquer ordenamento jurídico (Rechtsordnung) deve pressupor para existir enquanto tal. É impossível identificar atos do Estado sem presumir a validade de normas jurídicas e, paralelamente, não se compreende a unidade do Estado até que se estabeleça uma relação com a unidade da ordem jurídica.248

uso de um método o critério da ciência, então estará perdido o significado da ciência como um relato verdadeiro da estrutura da realidade, como a orientação teórica do homem em seu mundo e como o grande instrumento para a compreensão da posição do homem no universo.‖ (VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. Brasília: UnB, 1982, p. 18-9.)

247

KELSEN, Hans. Teoría general del estado. Trad. Luis Legaz Lacambra. México: Nacional, 1979, p. 21.

248

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Kelsen contra o Estado. Em: MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; SANTOS NETO, Arnaldo Bastos (orgs.). Contra o absoluto: perspectivas críticas, políticas e filosóficas da obra de Hans Kelsen. Curitiba: Juruá, pp. 75-118, 2011, p. 88.

No mesmo sentido, atesta Goyard-Fabre que a formulação dualista que concebe direito e Estado como entes distintos249,

por mais tradicional que seja, é indefensável na medida em que pressupõe que a realidade social da comunidade política é anterior ao aparelho jurídico que a estrutura. O dualismo assim adotado é desprovido de pertinência: uma pluralidade de indivíduos forma uma comunidade estatal se, e somente se, uma ordem normativa coercitiva reja suas condutas; a comunidade que chamamos de Estado não se distingue portanto da ordem jurídica que a organiza.250

Kelsen negará toda e qualquer forma de fundamento que não seja normativo ao Estado, negando, assim, a substancialidade de uma pretensa unidade política que o conforme. Não há falar em nenhum tipo de vínculo concreto entre os – para ele – indivíduos que formam o Estado, pois tal vínculo haveria de pressupor um fundamento substancial, o que ele rechaça. Assim, a unidade do povo para ele não é nada mais que a unidade formal estabelecida pela unidade fundamental do ordenamento, que, aí sim, conferirá unidade à coletividade; o povo é uma unidade jurídica, e apenas perante o ordenamento jurídico aparece como seu elemento pessoal de validade. Desta sorte,

É o conceito jurídico de Estado que os sociólogos aplicam quando descrevem as relações de dominação dentro do Estado. As propriedade que atribuem ao Estado são concebíveis apenas como propriedades de uma ordem normativa ou de uma comunidade constituída por tal ordem.251

249

Trata-se da formulação consagrada por Jellinek, para quem Estado e direito são entes distintos, sendo que o primeiro é uma realidade histórico-social anterior ao direito, e que verdade, o conforma. O Estado seria objeto de