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I. HEGEL, HISTÓRIA E ESTADO

1. Espírito, história e Estado

1.4. Revolução e reconhecimento

61 ―O mundo ético vivo é o espírito em sua verdade; assim que o espírito chega ao saber abstrato de sua essência, a eticidade decai na universalidade formal do direito. O espírito, doravante cindido em si mesmo, inscreve em seu elemento objetivo, como em uma efetividade rígida, um dos seus mundos – o reino da cultura – e, em contraste com ele, no elemento do pensamento, o mundo da fé – o reino da essência.

No entanto, os dois mundos, apreendidos pelo espírito, que dessa perda retorna a si mesmo – apreendidos pelo conceito – são embaralhados e revolucionados pela [pura] inteligência e por sua difusão, o iluminismo. O reino dividido e distendido entre o aquém e o além retorna à consciência-de-si, que agora na moralidade se apreende como essencialidade, e apreende a essência como Si efetivo. Já não coloca fora de si seu mundo e o fundamento dele, mas faz com que dentro de si tudo se extinga; e, como boa-consciência, é o espírito certo de si mesmo. O mundo ético – o mundo cindido entre o aquém e o além- bem como a visão moral do mundo – são assim os espíritos, cujo movimento e retorno ao simples Si para-si-essente do espírito vai desenvolver-se. Surgirá, como meta e resultado deles, a consciência-de-si efetiva do espírito absoluto.‖ (HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. 5ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008, pp. 306-7, §§ 441-3.)

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SALGADO, Joaquim Carlos. O aparecimento do Estado na ―Fenomenologia do Espírito‖ de Hegel. Revista

A Revolução Francesa é, talvez, o evento histórico mais importante do Ocidente para Hegel, pois representa o ponto de chegada de todo o processo que resultará no restabelecimento da bela totalidade, o grande ideal de existência política para Hegel desde os tempos de juventude, mas agora elevada a um momento superior tendo em vista a mediação da subjetividade livre. No plano objetivo, esta era, desde seu aparecimento, a meta do Espírito: ser em-si e para-si, existir efetivamente e saber de sua existência como efetiva. Ora, a consciência imersa na totalidade não poderia conhecer a substância como algo externo, para assim, querer nela se efetivar como unidade, pois lhe faltava a vontade subjetiva; era, assim, uma universalidade abstrata. Apenas quando essa vontade substancial se aliena e volta para si mesma, reivindicando a dignidade de sua particularidade, ela pode se reconhecer fora da substância, para, assim, querer nela integrar-se novamente, mas agora de maneira consciente, mediada, concreta. Reivindica, assim, uma universalidade em si e para si, uma singularidade.

Ora, sem a Revolução Francesa não poderia Hegel desenvolver a teoria política do Estado contemporâneo tal como a concebeu: sistema convencional de realização da liberdade. Eis porque Hegel reconhece na Revolução Francesa o momento histórico da realização da liberdade, objetiva e subjetiva, bem como do direito nela fundado, pois uma constituição foi elaborada segundo o conceito do direito; nela tudo

encontra seu fundamento. Pela primeira vez, ‗desde que o sol está no firmamento‘ o

homem constrói a realidade segundo o modelo do pensamento.63

A liberdade é, em verdade, o grande fundamento da Revolução Francesa, já que sua efetividade é a construção de uma organização política livremente pactuada por indivíduos livres, resultando, assim, no reconhecimento de que todos são livres: ―os orientais só sabiam que um único homem era livre, e no mundo grego e romano alguns eram livres, enquanto

nós sabemos que todos os homens em si – isto é, o homem como homem – são livres.‖ 64 O

Estado pós-revolucionário consiste na organização racional da liberdade, sendo que a declaração de que todos são livres decorre precipuamente do reconhecimento de que todos

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SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p. 307. Essa esplêndida passagem de Hegel sobre a Revolução que Salgado cita assim se encontra na Filosofia da História: ―Nunca,

desde que o Sol começou a brilhar no firmamento e os planetas começaram a girar ao seu redor, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o νοῠς rege o mundo; mas só agora o homem percebeu que o pensamento deve governar a realidade espiritual. Assim se deu um glorioso amanhecer. Todos os seres vivos pensantes comemoraram essa época. Naquele período, reinou um sublime entusiasmo, um entusiasmo do espírito, que estremeceu o mundo como se só agora tivesse acontecido a verdadeira reconciliação do divino com o mundo.‖ (HEGEL,G.W.F. Filosofia da História. 2. ed. Brasília: UnB, 1999, p. 366.)

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são livres. Ou seja, estamos diante de uma segunda figura fenomenológica do reconhecimento, mas agora um reconhecimento concreto da outra consciência-de-si não mais apenas como o outro de mim, mas como o outro de mim livre. Com efeito, alerta Karine Salgado:

O tema do reconhecimento é tratado no plano fenomenológico em dois momentos abstratos e anteriores à Filosofia do Direito (plano sistemático do tratamento do reconhecimento) e ao seu realizar-se concreto, o Estado. São estes momentos a relação entre o senhor e o escravo e a Revolução Francesa.65

É o reconhecimento concreto do indivíduo como indivíduo livre que se dá na Revolução Francesa, então, que possibilitará o aparecimento do Estado concreto cujo tratamento sistemático será dado por Hegel na Filosofia do Direito. Isso ocorre porque o indivíduo moderno que na Fenomenologia realiza a mediação para o momento do Estado ético mediato o faz pela ação revolucionária, mediante a qual se descobre indivíduo livre, que pode, portanto, agir livremente no plano político de modo a conformar racionalmente um

Estado que será a morada da liberdade de todos. É assim que, conforme Salgado, ―o Estado de Hegel, pós revolucionário, realiza essa unidade da liberdade substancial e da liberdade subjetiva.‖ 66 Por isso,

A Revolução é a marca do ‗destino‘ histórico ocidental, da cisão e da reconciliação,

da partida e da chegada, do abandono e do retorno triunfal. Afirmação absoluta do indivíduo livre, ela prepara o encontro harmonioso dessa individualidade com a comunidade, cuja realização a história ocidental persegue tragicamente, desde a fragmentação da bela totalidade ética da polis grega. A nova era que se abre torna impossível aceitar a vida na sociedade contemporânea sem o conceito harmonioso da sociedade política e do indivíduo que a compõe e nela exerce a sua liberdade. Nela novamente o homem põe-se, frente a frente, no combate pelo reconhecimento da liberdade individual, fazendo a experiência da morte, na trágica eliminação do ser-para-si vivente.67

O que vimos nesse capítulo foi a formação fenomenológica do Estado em duas figuras ainda abstratas. A primeira, que concerne ao aparecimento do Estado exterior, do Espírito e da

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SALGADO, Karine. A Revolução Hegeliana em Joaquim Carlos Salgado – Breves Comentários sobre a Obra

A Idéia de Justiça em Hegel. Em: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges (Coord.). Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 105.

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SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p.320.

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história, é a dialética do senhor e do escravo, através da qual a consciência-de-si se identifica com as outras consciências-de-si no plano da razão.68

Já a segunda figura do reconhecimento é a Revolução Francesa, na qual o Espírito, sabendo-se livre, isto é, reconhecendo a liberdade de todos, objetivará sua liberdade no Estado racional concreto. Sendo a Revolução uma figura fenomenológica, nela o Espírito ainda está sujeito aos revezes que marcam a experiência da consciência, e por isso, antes da efetivação do Estado concreto dela resultante, a liberdade individual que nela se projeta ainda é abstrata, e por isso o Espírito experimenta a perda de si no Terror69, para, após, reencontrar- se.

Superado esse momento, findo seu calvário, chega o Espírito à sua manifestação fenomenológica no Estado pós-revolucionário, o Estado que Hegel vê nascer, e a tarefa do Filósofo agora será oferecer-lhe, para além da explicitação da racionalidade do devir histórico-fenomenológico que possibilitou seu surgimento, o tratamento sistemático exigido por sua racionalidade imanente, isto é, sua necessidade lógica dentro do sistema, para além de sua necessidade histórica determinada pelo percurso do Espírito. Por isso Salgado coloca que, após a análise fenomenológica do reconhecimento na Revolução, chega-se

ao plano sistemático do tratamento do reconhecimento, a Filosofia do Direito, em que o reconhecimento deixa de ser um momento abstrato para realizar-se

concretamente na sua forma mais alta, ‗a existência política como esfera do consenso plenamente racional‘, no seio da qual o desejo é substituído pela vontade

racional e o trabalho servil pelo trabalho livre. Nesse caso, já não se trata mais de uma consciência de si no plano da existência singular, mas de uma consciência de si no plano da realidade efetiva, a consciência de si universal, cuja expressão é o Estado.70

68 ― ‗Trata-se do começo exterior e fenomenal dos Estados, não do seu princípio substancial.‘A luta pelo reconhecimento é assim o modo de aparição da convivência dos homens. Pode ser o começo dos Estados na sua exterioridade, vale dizer, na esfera do meramente existente, mas não é a luta e a violência que constituem o fundamento do Estado ou do direito. Pode-se dizer que, no máximo, é o começo aparente dos Estados, não o seu princípio substancial que, para Hegel, é o fundamento racional ou sua explicação na esfera do conceito, a ser estudado na Filosofia do Direito.‖ (SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p. 267.) Mariá Brochado comenta: ―O reconhecimento da liberdade é tratado na Fenomenologia ainda como momento abstrato. A luta pelo reconhecimento é o modo de aparição da convivência dos homens, sendo, portanto, o começo dos Estados na sua externalidade, mas não pode ser o fundamento [do conceito] de Estado ou do direito. Este fundamento será estudado na Filosofia do Direito, no qual o reconhecimento será retomado num plano sistemático – e não mais fenomenológico.‖ (BROCHADO, Mariá. A Dialética do Reconhecimento em Hegel. Em: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA, José Luiz Borges (Coord.). Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 101-2.)

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Sobre o terror na Revolução Francesa, cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola, 1996, p. 269 e ss.; e COELHO, Saulo de Oliveira Pinto. Revolução e Terror como Figuras-Chave

para a Compreensão da Liberdade no Estado Racional Hegeliano. Em: SALGADO, Joaquim Carlos; HORTA,

José Luiz Borges (Coord.). Hegel, liberdade e Estado. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 117-137.

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Passemos, então, à análise, no plano sistemático, do Estado hegeliano.