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II. AMIGO E INIMIGO, UNIDADE POLÍTICA E ORDEM CONCRETA EM CARL SCHMITT

2. Unidade política e ordem jurídica

2.2. Schmitt decisionista ou institucionalista?

No extremo oposto de Kelsen, por conceber o Estado como uma realidade concreta, Schmitt negará a vinculação da ordem concreta a uma norma, e, conseqüência disto, a identidade kelseniana entre direito e Estado. Para ele, ao fundamentar toda sua teoria em uma norma cuja existência concreta não é concebida, Kelsen esvazia propositalmente o direito, tratando-o em âmbito abstrato, carente de substância. Uma norma, no plano abstrato, não pode ser a condição de validade de uma ordem concreta, e é aqui que se evidencia, para Schmitt, o ato de vontade, a decisão, como o verdadeiro fundamento de validade do ordenamento jurídico.

Assim, se o normativismo de Kelsen surgiria baseado na ideia de que o direito era essencialmente norma, [...] o decisionismo assentaria, ao invés, na noção contrária: a noção de que, não sendo o direito fora da efetivação do direito senão uma abstração vazia, ou seja, constituindo a efetivação do direito parte essencial do direito propriamente dito, a decisão inevitavelmente evocada nesta mesma efetivação não poderia deixar de ser considerada conjuntamente com a norma jurídica enquanto dimensão irredutível constitutiva do próprio direito.255

Aqui adentramos ao decisionismo schmittiano que, ao recolocar o fundamento de validade do direito na vontade do soberano, o que lhe confere um forte aspecto de realidade, consegue, ainda, abarcar um espectro fático mais amplo que aquele apreendido por Kelsen, pois abrange o famigerado, entretanto, inexpurgável, estado de exceção. Schmitt irá recolocar o elemento da decisão como o preponderante na hierarquia fundante do direito, já que, agora, é a decisão em seu caso limite, no estado de exceção, que define quem é o soberano.

Trata-se, então, de colocar a exceção como a peça chave para se interpretar a realidade. Com efeito, se uma teoria só cuida da normalidade, recortando comodamente os limites da realidade à qual ela pretende descrever, e uma outra tem o fito de abarcar tanto a

255

SÁ, Alexandre Franco de. Decisionismo e ficção no pensamento de Carl Schmitt. Em: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 105, pp. 21-46 | jul./dez. 2012, p. 38.

normalidade quanto a exceção enquanto situações igualmente observadas na realidade fática,

há que se atribuir maior valor a essa última. Para Schmitt: ―A exceção é mais interessante que o caso normal. O normal não prova nada, a exceção prova tudo; ela não só confirma a regra,

mas a própria regra só vive da exceção.‖ 256

Quando, numa situação excepcional, o ordenamento jurídico é afastado, com a criação de uma nova ordem, de um estado de exceção, o que se tem é, na verdade, a criação de um novo ordenamento por conta de uma decisão que o coloca e que não é, por sua vez, subsumível a nenhuma norma.

Como o Estado de exceção ainda é algo diferente da anarquia e do caos, no sentido jurídico a ordem continua subsistindo, mesmo sem ser uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém, nesse caso, uma indubitável superioridade sobre a validade da norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer ligação normativa e torna-se, num certo sentido, absoluta. No caso da exceção o Estado suspende o direito em função de um, por assim dizer, direito à autopreservação. Os dois

elementos do conceito ‗ordem jurídica‘ chocam-se entre si e provam sua

independência conceitual.257

O estado de exceção, exatamente por excepcionar a normalidade, prova que mesmo esta não pode pressupor um normativismo puro, tal como se, naquele caso, o direito não apenas previsse, mas também aplicasse sua própria anulação; o estado de exceção prova que mesmo a normalidade vive da decisão. Exatamente por ter sido a decisão que afastou a vigência de um ordenamento e criado outro que, conclui Schmitt, era ela que mantinha o estado de normalidade anterior. Era essa vontade, essa decisão, o fundamento de validade do ordenamento anterior, como o é em relação ao novo. Não é por outra razão que a vontade, ou melhor, a vontade do soberano, e não uma norma abstrata, que, segundo Schmitt, fundamenta

o direito. ―Até mesmo a ordem jurídica, como toda ordem, baseia-se numa decisão e não

numa norma.‖ 258

Evidencia-se a relação constituinte que há entre o ato de vontade do soberano e o ordenamento jurídico na medida em que, se é a vontade do soberano que cria e mantém o ordenamento de exceção, enquanto ordem que nega e suprime o ordenamento anterior, é porque era exatamente essa vontade que vivificava esse direito da normalidade, sustentando

256

SCHMITT, Carl. Teologia política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 94.

257

SCHMITT, Carl. Teologia política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 92.

258

SCHMITT, Carl. Teologia política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad. Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 90.

todo o sistema preexistente ao estado de exceção. Se essa vontade soberana se coadunava com o conteúdo normativo precedente não é porque ela se sujeitava a ele, ou porque se anula em tempos de normalidade, como que consumida pela normatividade abstrata que emana da norma fundamental; pelo contrário, a vontade é, sempre, o fundamento último de validade do direito, e quando tal fundamento aparentemente recai na Constituição, é porque a vontade do soberano quer que assim se proceda.

A realidade não comporta compartimentações, na forma que se poderia argumentar

para fazer pensar que, se é verdade que a ―legitimação formal‖ do estado de exceção encontra

fundamento na vontade do soberano, se dá que, quando da normalidade jurídica, o fundamento de validade repousa na norma fundamental. Mas tal entendimento não é endossável, exatamente porque, se a norma fundamental está sempre sujeita à mitigação por

parte de uma vontade soberana, de fundamental ela não tem nada. O ―comando‖ da norma

fundamental a todo momento está sujeito a mitigação por parte da vontade do soberano, exatamente porque é esta que valida a Constituição, e só por isso pode sobrestá-la. Como explica Alexandre Sá:

Para o decisionismo schmittiano, é então a mera possibilidade do surgimento de um estado de exceção que, diferenciando Estado e ordem jurídica, isola no direito, como irredutível à normatividade, o momento da decisão. É da decisão que brotam as normas jurídicas; e, portanto, é também a partir dela, enquanto indeterminada normativamente, que pode brotar a sua suspensão num caso excepcional.259

É exatamente por consistir numa manifestação perene, corriqueira, mas velada, tendo em vista a manutenção da ordem em tempos de normalidade, que a vontade do soberano pode se manifestar ostensivamente dando azo ao evento máximo de excepcionamento da normalidade. Por conseguir sobrepor-se à normalidade e se impor como exceção é que essa vontade é o ponto máximo da pirâmide normativa, o fundamento de validade de toda e qualquer ordem.260 Quando essa vontade excepciona a ordem, ela só está, na verdade, excepcionando a si mesma. É essa a vontade do soberano.

259

SÁ, Alexandre Franco de. Decisionismo e ficção no pensamento de Carl Schmitt. Em: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 105, pp. 21-46 | jul./dez. 2012, p.39.

260

Importa citar outro embasamento que Schmitt dá a seu decisionismo que consiste no exemplo de uma sentença prolatada em contrariedade à lei, que, entretanto, vincula as partes. Ora, de onde poderia ter vindo tal poder vinculante senão da própria decisão, já que a norma não a teria autorizado? Mais uma vez Schmitt observa que o fundamento de toda norma reside no ato de vontade que a colocou, em uma decisão, que, por si só, cria direito.

Mas aqui cabe um importante alerta: essa concepção de Schmitt, que costuma espantar vários leitores incautos por seu realismo cru, deve ser, contudo, depurada de interpretações inconsistentes que distorcem o decisionismo schmittiano, equiparando-o a um voluntarismo extremado, como se a decisão surgisse de um nada jurídico. Se é verdade que ela advém de um nada normativo, há que se recordar, contudo, que Schmitt não restringe o jurídico ao normativo.

Para Schmitt, é próprio do racionalismo iluminista não levar em conta o que há de

crucial na distinção entre o ‗jurídico‘ e o ‗normativo‘; tal racionalismo ‗se mobiliza

a partir do pressuposto de que uma decisão, no sentido jurídico, deve ser

pacificamente derivada do conteúdo de uma norma‘.261

Schmitt reconhecerá na decisão um vínculo mais profundo com a realidade jurídica

que é a ordem concreta que lhe conforma. Essa ―guinada‖ em direção à fundamentação da decisão na ordem concreta se verifica sobretudo no texto ―Sobre los tres modos de pensar la

ciencia jurídica‖, de 1934, no qual, como coloca Marramao, ―Schmitt havia relativizado

fortemente o tipo ‗decisionista‘, terminando por considerá-lo como a interface do tipo ‗normativista‘, remetendo-o ao seio de uma visão institucionalista e ‗ordenamental‘. 262

Nesse texto basilar para uma compreensão global de seu pensamento – posto que aqui a exposição é tanto mais sistemática que em suas outras obras – Schmitt procederá a uma distinção entre as formas fundamentais através das quais o jurista pode encarar seu objeto, e

deste modo, deixará mais clara a sua posição. Para Schmitt, ―todo jurista que adopta en su trabajo, consciente o inconscientemente, un concepto del derecho, lo concibe bien como

regla, bien como decisión o bien como un órden o configuración concretos.‖ 263 Diferencia-

se, assim, os modos normativo, decisionista ou institucionalista pelos quais se pode conceber o direito.

Mais uma vez, Schmitt irá se posicionar radicalmente contra o normativismo de Kelsen, mas aqui ele tenderá a tomar partido não do pensamento decisionista, como na

261

MARRAMAO, Giacomo. O exílio do nómos: Carl Schmitt e a globale Zeit. Em: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 105, pp. 21-46 | jul./dez. 2012, p.162

262

MARRAMAO, Giacomo. O exílio do nómos: Carl Schmitt e a globale Zeit. Em: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 105, pp. 21-46 | jul./dez. 2012, p.180

263

SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Trad. Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos, 1996, p. 06.

Teologia Política, e sim do pensamento institucionalista, ou de ordem, para onde, inclusive, fará convergir a decisão soberana264. Isto porque,

longe de se constituir como a base teórica para a defesa política de uma decisão puramente arbitrária, o decisionismo não é senão a posição teórica segundo a qual a ordem jurídica pressupõe, como condição de possibilidade da sua vigência, a vigência de uma ordem mais fundamental, irredutível à simples aplicação cega de normas, bem como a possibilidade de uma decisão capaz de se constituir como a guardiã institucional dessa mesma ordem. [...] E, desse modo, pode-se dizer que, para o decisionismo schmittiano, a decisão nunca é pura e simplesmente desvinculada, mas tem sempre inevitavelmente um vínculo fundamental. Esse vínculo, no entanto, não é o vínculo imediato a normas jurídicas, mas o vínculo primordial a uma ordem que exclusivamente poderia assegurar a existência de uma ordem jurídica e a vigência dessas mesmas normas.265

A decisão de Schmitt, apesar de não possuir nenhum vínculo normativo – isto é, ela nasce de um nada normativo –, está longe de prescindir de uma sustentação jurídica concreta, posto que a ordem concreta aparece em Schmitt como o pano de fundo de todas as relações e

determinações substanciais que a ordem jurídica estabelece. ―Não sendo determinada por normas, a decisão está já sempre vinculada à efetivação de uma ordem capaz de fazer a norma vigorar, ainda que tal ordem não se confunda com uma vigência automática de

normas jurídicas.‖266

Ora, se Schmitt depreende a própria decisão soberana – a qual ele havia defendido na Teologia Política como o fundamento do direito, argumentando a partir do estado de exceção – da ordem concreta anterior, imagine-se com que vigor ele combate o pensamento que quer

colocar em uma norma o fundamento da ordem jurídica. O pensamento que parte pura e simplesmente da norma, incide em tola abstração, ao separar o conteúdo deôntico da norma de seu substrato material. Fazendo crer que é a norma que funda a ordem social, o normativismo infunde a proposição absurda segundo a qual todas as instância políticas da vida concreta são carentes de vontade, de vida, de espírito, derivando unicamente de uma norma sem conteúdo. No afã de proporcionar um direito absolutamente objetivo e impessoal, que garanta a segurança jurídica e demais valores caros ao pensamento liberal, o

264 Como escreve Montserrat Herrero, em sua introdução à obra, ―Sobre los tres modos de pensar la ciência

jurídica constituye uma toma de posición intelectual frente a la teoría pura del derecho kelseniana.(HERRERO, Montserrat. Estudio preliminar. Em: SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia

jurídica. Trad. Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos, 1996, p. XVIII.) 265

SÁ, Alexandre Franco de. Decisionismo e ficção no pensamento de Carl Schmitt. Em: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 105, pp. 21-46 | jul./dez. 2012, p.41-2.

266

SÁ, Alexandre Franco de. Decisionismo e ficção no pensamento de Carl Schmitt. Em: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n. 105, pp. 21-46 | jul./dez. 2012, p.40.

normativismo recai no extremo reducionismo de separar norma e realidade, dever ser e ser. Montserrat Herrero explica:

Para Schmitt el concepto de derecho queda determinado primariamente por un orden concreto. El derecho no se determina en primer lugar por reglas ni por decisiones, sino por un concepto de orden prévio. El derecho es [...] un nomos. Todo derecho no puede ser más que un derecho ‗situado.‘ [...] Orden no significa en primer lugar ordenamiento, es decir, conjunto de reglas o la suma de las reglas de un conjunto, como diria Kelsen, sino la visibilidad de un nomos. Y nomos es el desarrollo de una comunidad de hombres en el espacio gracias al modo natural de ser del hombre, a las relaciones naturales que se originan entre ellos, al trabajo y a la tradición que pone de manifiesto el modo de ser de un pueblo concreto. [...] Orden significa, en resumen, un resultado de princípios morales y racionales, configurados en las costumbres, con sentimientos, condicionamentos del entorno y a partir del hecho de que el hombre no puede vivir más que en relación con otros hombres. Todo esto es lo que Kelsen depreciaría como ideología.267

Schmitt se detém com especial interesse na passagem em que Píndaro se refere ao

―nomos basileus‖, sentença essa interpretada por muitos juristas normativistas simplesmente como o ―império da lei‖ reinante no Estado de Direito. Ora, Schmitt adverte, com razão, que a

interpretação de nomos como norma jurídica, lei, tão somente, longe está de esgotar o significado que os gregos davam a este termo que abrangia também toda a ordem concreta – uma realidade jurídica – na qual se manifestava a vida ética do povo. Schmitt cita uma nota de

Hölderling a sua tradução do ―Nomos basileus‖, na qual ele escreve:

El, nomos, la ley, es aquí la medida en tanto que es la figura según la cual el hombre se encuentra a sí mismo y a Dios, a la Iglesia y al orden estatal y los viejos preceptos heredados que, de modo más estricto que el arte, conservan las relaciones vitales, en las que con el tiempo un pueblo se há encontrado y encuentra a sí mismo.268

Desta forma, Schmitt coloca com muita clareza sua opção pelo pensamento de ordem concreta, ou institucionalista, cuja premissa é a derivação da ordem normativa a uma realidade jurídica anterior que é a própria vida ética da comunidade, e que constituirá o fundamento de validade concreto da ordem jurídico-estatal. Com efeito, ele afirma em Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica, de maneira assaz peremptória, que se necessita agora do ―pensamiento concreto del orden y de la forma que há surgido para las nuevas

267

HERRERO, Montserrat. Estudio preliminar. Em: SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia

jurídica. Trad. Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos, 1996, p. XXI-XXII. 268

SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Trad. Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos, 1996, p. 17.

tareas de la situación estatal, popular, económica e ideológica y para las nuevas formas de

comunidade‖269.

Impossível desconhecer, portanto, a mitigação que o decisionismo schmittiano em sofre, em relação à sua formulação primeira, a partir dessa tomada de partido pela ordem concreta que, apesar de não afastar a decisão que instaura a ordem jurídico-normativa, confere a ela um aspecto situado, informado pela ordem jurídico-concreta que lhe subjaz; uma decisão, portanto, em nada semelhante ao aspecto voluntarista e subjetivo que muitos estudiosos vislumbram equivocadamente no pensamento schmittiano. Destarte, desenvolveremos melhor essa concepção institucionalista através da contraposição dessa concepção schmittiana – bem como seu conceito do político – com as premissas do normativismo de Kelsen.