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Construção, desconstrução e reconstrução da memória oficial do

Nos ciclos de construção, desconstrução e reconstrução da memória oficial do exército, observam-se tanto continuidades como rupturas narrativas. Umas e outras são fruto das negações e confrontações que a instituição castrense mantém, para dentro, com o relato hegemônico sobre a “luta contra a subversão”; para fora, com o discurso dos organismos de Direitos Humanos e a memória dos desaparecidos. Essas reconfigurações mostram não só que o passado resulta interpretado no contexto das interações do presente, mas que o exército está em permanente inter-relação com outros atores que excedem o estritamente institucional (Guber, 2004a: 102).

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Apesar das modificações sobre o sentido do passado recente, existe, no exército, uma narrativa aglutinante e hegemônica que persevera nos três ciclos analisados. É a que concebe a participação do exército em atividades repressivas como uma ação de guerra na qual se defendeu a pátria dos inimigos internos que a ameaçavam. Com isso, mantém-se viva, hoje, aquela moral de combate que convocou o exército, como um chamado da pátria, a dar um passo à frente e salvá-la. A retórica da guerra permite, por sua vez, remarcar o passado recente no ideal das “lutas pela independência” e da “história grande da pátria”, remetendo, desse modo, a um momento fundacional, quase mítico, no qual o exército, a nação e a guerra fundem-se na gesta patriótica.

A retórica da guerra dá conta de um trabalho memorial de ligadura, continuidade e articulação entre o passado e o presente de uma comunidade moral que se sustenta da repetição de suas tradições e rituais, mas não carece de historicidade. Daí que, nos últimos 30 anos, adquiriu diferentes nomes, segundo os contextos nos quais foi evocada: “luta contra a subversão”, “guerra suja”, “guerra não-convencional”, “guerra anti-revolucionária”, “luta contra o terrorismo”, “guerra fratricida”, “luta entre argentinos” ou “luta interna”. Embora todos busquem distanciar-se do conceito de Terrorismo de Estado – com o que se demonstrou o caráter clandestino e sistemático da política de desaparição, suas diferenças não são menores e respondem não só aos contextos interpretativos e políticos em que o passado é evocado, mas também aos interlocutores com os que se disputam sentidos e ao grupo ao que se dirige a memória.

Outra concepção persistente e de forte peso institucional é a que concebe a violência repressiva como uma resposta. Com isso, o exército procura definir uma oposição binária que separa agressores de agredidos. A violência repressiva acaba sendo explicada como uma conseqüência não desejada, mas inevitável frente à agressão subversiva. Essa concepção apóia-se em uma periodização que remonta sua origem histórica a meados da década de 60, momento no qual a Argentina é objeto de agressões do “terrorismo marxista internacional”, que “tentava fazer efetivo um projeto político destinado a subverter os valores morais e éticos compartilhados pela imensa maioria dos argentinos”. Essa interpretação da

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história argentina desconhece outros elementos políticos e sociais que contribuíram à explosão da violência, tais como a proscrição do peronismo, a sucessão de governos civis de escasso apoio popular, os reiterados golpes de estado perpetrados pelas Forças Armadas, as políticas repressivas levadas a cabo pelos governos militares etc. Além disso, esse argumento distingue dois tipos de violência: a violência institucionalizada e a violência revolucionária (Bobbio, 1988: 80). De ambas as violências contrapostas, uma estaria justificada por ser contratual , e a outra, ao contrário, estaria não-justificada por ser não- contratual. Desde essa lógica, a violência injustificada é sempre a do outro, a do inimigo do Estado.

Embora a reivindicação de reconhecimento do Estado e da sociedade civil seja uma constante na memória militar desde o Documento Final até o lema de

Memoria Completa, essa reivindicação enuncia-se desde lugares diferentes,

articula discursos diversos e justifica-se a partir de argumentos distintos. Em efeito, nos últimos 30 anos, o exército fez pública sua demanda de reconhecimento à “luta contra a subversão”. Enquanto que, num primeiro momento, a legitimidade dessa reivindicação surge do fato de sentirem-se vencedores na “guerra anti-subversiva”, num segundo momento, surge dos gestos dramáticos que rodeiam a figura das vítimas da “luta contra a subversão”. Do mesmo modo, frente às imputações de autoritarismo e às acusações de genocídio, a construção dos oficiais do exército como democratas erige-se em torno de duas figuras. Primeiro, os oficiais são apresentados como salvadores da nação, ou seja, como soldados que combateram um inimigo que ameaça sua integridade. Logo, essa figura, embora sobreviva na memória coletiva dos oficiais reformados53, no discurso oficial é substituída pela imagem dos mártires. Os oficias convertem-se em mártires que pereceram por não se renderem nem claudicarem em defesa das instituições e valores da nação.

Entre as descontinuidades da memória oficial do exército, a mudança mais notória é a admissão pública de torturas e assassinatos que foram ordenados pela

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condução do exército e executados por seus oficiais. Embora essas afirmações marquem uma distância do discurso renegatório da desaparição de pessoas, apresentam-se como um “mínimo de sinceramiento”, que procura culminar com a “reconciliação entre os argentinos”. Num gesto que afasta a verdade da justiça, essa admissão funciona como um ato performativo que pretende oferecer “penas” e “desculpas” pelos “erros históricos cometidos” em troca da reconciliação, esquecimento ou perdão. 54

A proposta de reconciliação é uma constante no discurso do exército, mas que tem sido enunciada desde diferentes posições. Num primeiro momento, a reconciliação confunde-se com a anistia e ativa-se a partir da necessidade de esquecimento das seqüelas de uma guerra que não foi nem querida nem procurada. O esquecimento tem na narrativa militar uma dimensão produtiva, uma vez que o futuro deriva da proibição de lembrar as desgraças para não dar passo à justiça, que é considerada uma ferramenta de vingança. (Loraux, 1989) Num segundo momento, o discurso da reconciliação ativa-se novamente, mas não já a partir do recurso do esquecimento, senão da memória dos próprios sofrimentos. Fazendo um uso corporativo dos padecimentos, o exército institucionaliza um discurso da vitimização, no qual todos os argentinos resultam irmanados na evocação das dores comuns.

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Na Argentina, diferente da África do Sul, as confissões dos ex-repressores não simbolizam uma forma de arrependimento público que culmina no perdão. Pelo contrario, as confissões, assim como os chamados “informes de verdad”, são utilizadas como instrução sumária para a apresentação de cargos por violações aos Direitos Humanos nos estrados judiciais.

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Capítulo II

Entre heróis e traidores:

memória e identidade dos oficiais reformados do exército

"A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual quanto coletiva, à medida que é um componente muito importante do sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de grupo na reconstrução de si."

Michel Pollak

No dia 24 de maio de 2006, realizou-se, em frente ao “Monumento a los

Caídos en la Guerra de Malvinas e Islas del Atlántico Sur”, na praça San Martín,

de Buenos Aires55, um ato comemorativo aos “mortos pela subversão”, no qual cinco oficiais da Compañía de Comandos 601 do exército que compareceram vestidos de uniforme foram, após 40 dias de detenção, finalmente expulsos da força.56 Esse ato foi o primeiro episódio público de uma sucessão de atos comemorativos que, embora sempre realizado dentro de certo entorno íntimo,

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A praça San Martín está localizada no bairro portenho de Retiro, a metros do Circulo Militar e da

Cancillería. É uma área muito transitada, já que reúne três terminais ferroviários, várias bocas de metrô e é vizinha do complexo de escritórios e da zona hoteleira mais importante da cidade de Buenos Aires. Desde 24 de junho de 1990, ali se ergue o cenotáfio aos caídos na Guerra de Malvinas. O monumento conta com um muro arredondado, na cor rosado-escuro, de 2 metros de altura por 25 de comprimento, que exibe 25 placas de mármore negro brilhante. Em cada uma dessas placas, estão inscritos os sobrenomes e nomes dos soldados, sub-oficiais e oficiais das três forças que morreram no conflito armado. Nas colunas, não se menciona a hierarquia nem a força à que pertenciam. O muro rodeia uma esplanada de cimento presidida por um mastro e uma roseta. O cenotáfio, que está erguido no mesmo terreno que o monumento ao Héroe de la

Independencia Argentina y Padre del Ejército,, permitiu tirar as comemorações da “Guerra de

Malvinas” do âmbito castrense a que estavam relegadas e devolveu aos militares um ponto

cêntrico da cidade para realizar seus atos públicos (Guber, 2004b: 144-153).

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O ato propôs-se não só a “homenagear os oficiais mortos pela subversão”, mas também a avançar com a convocatória para o dia 5 de outubro como o “dia nacional dos mortos pelo terrorismo subversivo”.

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mostra as disputas castrenses sobre o passado recente. Nos últimos anos, quando se cumpriam 30 anos da morte de oficiais do exército pelas organizações armadas durante a década de 70, os oficiais da reserva junto a familiares e amigos, aglutinados em “Comisiones de Homenaje”, converteram-se nos guardiões do fausto militar dos “mortos pela subversão” frente à política comemorativa dos comandos superiores.

Com exceção do ato em repúdio à toma do quartel de La Tablada, que se efetua todos os 23 de janeiro, na praça San Martín57, e dos atos públicos de maio

e outubro de 2006, os “atos de homenagem aos mortos pela subversão” celebram-se de maneira reservada.58 Os lugares escolhidos são as dependências de quartéis e regimentos aos quais os oficiais homenageados pertenciam, ou então onde morreram, e as igrejas castrenses onde são celebrados ofícios religiosos em suas memórias. Esses atos realizam-se, segundo cobram os organizadores, “sem evocação alguma por parte do Exército Argentino nem autoridades”59, e, em alguns casos, as autoridades a cargo das dependências militares não autorizam a colocação das placas alusivas.

Os oficiais reformados são os principais protagonistas desses atos. Não só os convocam e organizam, mas também são seus oradores, na qualidade de ex- camaradas e companheiros de promoção dos oficiais homenageados. Os oficiais reformados, além de estarem aglutinados em diferentes entidades colegiadas e de camaradagem, como o Círculo Militar, o Centro de Oficiales Retirados de las

Fuerzas Armadas e o Foro de Generales Retirados, desde maio de 2005, reúnem-

se na Unión de Promociones. Trata-se de um grupo politicamente ativo, que surge com o objetivo de defender y apoiar aos “camaradas detidos e suas famílias por violações aos Direitos Humanos”60, logo após a derrogação das leis de Punto Final e Obediencia Debida. Essa entidade está composta por membros das diferentes

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No ato de 23 de janeiro de 2005, homenageou-se também os “caídos pela pátria” –segundo versam as proclamas - no ataque ao quartel da cidade de Azul, realizado pelo ERP (Ejército

Revolucionario del Pueblo), em 19 de janeiro de 1974.

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Essa prática de realizar os “atos de homenagem” portas adentro tem seu antecedente nas missas que convocava FAMUS nos anos da transição democrática.

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camadas do Colegio Militar de la Nación, entre os quais existem fortes laços de amizade e solidariedade. Esses laços são reforçados e atualizados, por sua vez, pelas redes de ajuda mútua e organização cerimonial que se articulam com os “atos de homenagem”.

Devido à verticalidade e hierarquia próprias das instituições castrenses, costuma-se pensar que a memória oficial do exército é aceita e reconhecida por todos os oficiais; porém, entre suas filas, proliferam diferentes níveis de discurso, surgem retóricas novas, cruzadas e em tensão, e entreveram-se anunciadores legítimos e autorizados com porta-vozes não-reconhecidos. Daí que os “atos de homenagem” celebrados pelos oficiais reformados a seus camaradas propõem o desafio de compreender as tensões e conflitos, e, torno a dizer, recordar um passado violento que, desde o regresso da democracia, vem determinando a vida política e institucional do exército.

Pois bem, o presente capítulo propõe-se a dar conta, por um lado, da memória dos oficiais reformados do exército, os quais se reconhecem como parte de uma geração que tem um vínculo privilegiado com o passado recente pelo fato de terem sido contemporâneos dos acontecimentos; e, por outro lado, das práticas comemorativas nas quais, ao recordarem e homenagearem os camaradas de armas mortos na década de 70, os oficiais reformados ensaiam os conflitos que mantêm com a política comemorativa da atual condução do exército. Em termos gerais, este capítulo tem o objetivo de indagar os sentidos e significados atribuídos e expressos nos “atos de homenagem”, e sua relação com os valores da comunidade militar.

Em tal sentido, nestas páginas, procura-se responder aos seguintes interrogantes: que eventos ou fatos priorizam-se ou ocultam-se nos “atos de homenagem”? Que retóricas e performances mobilizam-se e quais caem em desuso? Quais são os personagens ou atores do passado que se reivindicam e quais se esquecem? Quem se converte em porta-vozes autorizados e quem em interlocutores legítimos? Como se redefinem as relações entre memória e

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identidade, por um lado, e entre passado, presente e futuro, por outro lado? Em suma, como se articulam mudança e continuidade na memória dos membros de uma instituição que se alimenta de seu passado e de suas tradições, mas que tem sido fortemente questionada pela sociedade civil devido à violação aos Direitos Humanos durante a última ditadura?

1. Os “atos de homenagem”: a luta pelos suportes da memória