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As desconstruções e reconstruções de memória da “luta contra a subversão” têm implicâncias no plano da identidade militar e na transmissão de suas tradições. Então, o objetivo deste primeiro ponto é identificar não só quais tradições militares preservam-se na memória da “luta contra a subversão”, mas

se à primeira pessoa do plural e surge da obrigação de todo cidadão, enquanto membro de uma comunidade política, de evitar que o dano seja cometido.

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também em quais tradições essa memória alimenta-se. Para responder a esses interrogantes, partimos do suposto de que, embora os passados violentos tenham efeitos sobre os tempos posteriores para além da vontade dos sujeitos, os oficiais que participaram no Operativo Independencia são sujeitos ativos nos processos de construção de suas memórias e de suas práticas comemorativas. Daí que, para fazer frente a uma conjuntura política e institucional de mudanças e questionamentos na qual lhe é exigido dar respostas pela violência repressiva, a geração de oficiais que foi contemporânea dos fatos elabora narrativas que oscilam entre a reconfiguração e a repetição dos sentidos que provêm do passado. Certamente, em suas memórias, produzem-se tanto continuidades quanto rupturas narrativas.

Por uma parte, e como já dissemos, a memória militar assiste a um processo de transmutação narrativa pelo qual o exército foi-se transformando, progressivamente, de vencedor na “guerra antisubversiva” a “vítima do terrorismo”. O discurso da autovitimização oculta certos fatos e ressalta outros, com o fim de produzir uma reconfiguração estratégica das diferenças reais entre perpetradores e vítimas. Nesse sentido, a figura dos “mortos pela subversão” vem a obscurecer o papel desempenhado pelos repressores e a apresentá-los no lugar das vítimas. No entanto, por outra parte, o relato que concebe a repressão como uma ação de guerra persiste como elemento hegemônico e aglutinante da memória da comunidade militar em seu conjunto. Com isso, mantém-se viva, hoje, a moral de combate que convocou o exército, como um chamado da pátria, a dar um passo à frente e salvá-la (Hershberg y Agüero, 2005: 20).

Ainda que esses deslocamentos e mutações procurem fortalecer a imagem do exército frente à crescente credibilidade do discurso dos desaparecidos e dos organismos de Direitos Humanos, mantêm uma linha de continuidade com as tradições e valores que propiciaram a violência e a criminalização das Forças Armadas. Apesar de suas diferenças, tanto a narrativa da autovitimização quanto o discurso da guerra afirmam acriticamente a violência perpetrada no passado e reproduzem cegamente os valores tradicionais da identidade militar. Em outras

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palavras, não produzem uma reelaboração crítica dos sentidos e representações que provêm do passado.

Sem cair em uma interpretação taxidermista201 sobre a relação entre passado e presente, as memórias e as práticas comemorativas dos oficiais reformados tendem a reproduzir um cenário bélico no qual se revivem velhas hostilidades e feridas. Trata-se de uma espécie de superposição do contexto de violência dos anos 70 com a conjuntura atual de produção de suas memórias. Com uma linguagem belicista, que estabelece uma continuidade entre passado e presente, a memória da “luta contra a subversão” e os “atos de homenagem” aos “mortos pela subversão” apresentam-se como o locus para uma atuação compulsiva do passado repressivo (LaCapra, 1998: 55). Vejamos essas questões detalhadamente.

Em seus trabalhos sobre representação e memória, LaCapra (1994, 1998) e Ricoeur (1999, 2003) propõem uma leitura de Duelo y Melancolía e Recordar,

Repetir y Reelaborar, de Freud (1976), além de sua utilidade terapêutica para dar

conta dos tipos de ligação que os sujeitos mantêm com seu passado quando se trata de acontecimentos traumáticos. Essa ligação pode manifestar-se de duas maneiras opostas: os sujeitos podem, por um lado, estar obcecados por esse passado, permanecer fixados e retornar a ele compulsivamente como uma espécie de atuação202, ou, por outro lado, incorporar novos discursos, entrar em diálogo com outros sujeitos, reelaborar os legados que recebem e afrontar questionamentos do tipo ético-político203. Enquanto no primeiro caso os sujeitos resistem à perda do objeto de fixação, no segundo, orientam-se ao futuro apropriando-se criticamente do passado e inclusive aprendendo com suas conseqüências.

201

O taxidermismo enfatiza a tendência à permanência e reprodução dos sentidos do passado (Aguilar Fernandez, 1996).

202

Para Freud (1976), a atuação é uma forma de repressão que se produz frente a fatos traumáticos. Trata-se de uma compulsão à repetição que se coloca de manifesto como uma tendência a atuar.

203

Tanto Adorno (1959) como Habermas (1998) fazem uso das noções de Freud de trabalho elaborativo para definir critérios de autocompreensão e autocrítica coletiva, quando os partidos políticos, as instituições ou as nações têm que afrontar passados autoritários e atender a questões de responsabilidade política por fatos de violência.

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Agora, como é o vínculo que a memória militar mantém com o passado recente? Primeiramente, a partir da narrativa da autovitimização, os oficiais reformados concentram-se na evocação dos seqüestros, ataques a quartéis e regimentos, assassinatos, júris populares e atentados cometidos pelas organizações armadas durante a primeira metade da década de 70, para restituir, no presente, o ódio de seus agressores. Trata-se de uma memória que se fixa na marca dolorosa para manter vivas as afrontas e as humilhações que, embora surjam como uma acusação aos “agressores terroristas” de ontem, transferem-se aos adversários de hoje, especialmente aos organismos de Direitos Humanos. Os ódios e ressentimentos passados dos quais os oficiais sentem-se vítimas repetem-se hoje, porém sob a forma de uma política vingativa de escárnio e desprestígio para com as Forças Armadas. Enfim, a vitimização de ontem reitera- se como uma nova vitimização psicológica e política.

Em segundo lugar, nos “atos de homenagem”, os oficiais reformados aferram-se a uma memória beligerante que apresenta tanto mais firmemente sua narrativa quanto mais nitidamente define os inimigos com os quais se enfrenta. A lógica da guerra, núcleo duro da memória militar, persiste e personifica-se, hoje, sob a forma de novos enfrentamentos, de modo tal, que o cenário da memória resulta interpretado como a manifestação de uma “guerra silenciosa” que se livra no plano da política, da justiça, da cultura e da educação. Trata-se de uma “guerra cultural” que busca a “sistemática tergiversação dos fatos” e a “agressão e o desprestígio das Forças Armadas”. A substituição da “guerra antisubversiva” pela chamada “guerra por outros meios” não só atualiza esquematicamente a oposição amigo-inimigo, mas também iguala os inimigos do passado com os adversários do presente.

Em suma, nas narrativas da memória militar, a reconstrução do passado e a descrição do presente são coincidentes. Ambos, passado e presente, resultam emparentados por uma trama em comum: a luta entre dois lados enfrentados. Desse modo, acaba-se submetendo o presente ao passado, e, assim, repetem-se compulsivamente as imagens, sentidos, linguagens e símbolos que fizeram possível a criminalização do exército. Na perspectiva dos oficiais reformados, o

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presente e o futuro são sinônimos de crise, decadência e ameaças, pois podem introduzir reelaborações críticas na memória do acontecido. Por isso, suas memórias e comemorações tornam-se o terreno privilegiado para a reiteração ritualizada do passado, no qual qualquer distanciamento ou questionamento é potencialmente percebido como uma traição.

A repetição compulsiva do passado tem efeitos sobre o cenário da memória atual. Longe de estabelecer uma distância crítica com suas tradições, a memória militar tende a normalizar, naturalizar e eternizar o discurso da guerra. Se bem que nos atos de recordação seja possível ampliar o horizonte de experiências e expectativas, porquanto passado, presente e futuro interpelam-se como interlocutores de um diálogo aberto (Gadamer, 1997), nas memórias compulsivas e repetitivas, o presente fixa-se no passado e ata-se a subentendidos que não dão lugar a novos interrogantes nem estimulam reelaborações (LaCapra, 1998: 10). Em conseqüência, o passado, mais que um legado para as novas gerações, fruto de um trabalho elaborativo que se questiona pelos aspectos que tem que continuar e pelos quais não, se converte no locus de mecanismos repetitivos, que, revividos no presente, estimulam identificações automáticas.

Na memória da “luta contra a subversão”, colocam-se em jogo, também, questões relativas à identidade militar. Ao evocar o passado recente, o exército e seus homens voltam-se sobre sua própria história e tradições para definir o que é que se deve constituir legitimamente em herança (Habermas, 1998: 54). Como já dissemos no capítulo II, em uma conjuntura política de transformação institucional, os “atos de homenagem” aos “mortos pela subversão” apresentam-se como o cenário no qual não só se evocam acriticamente as representações e crenças que fomentaram a violência repressiva, mas também onde se revelam os conflitos em torno dos valores e costumes que devem conformar a identidade militar legítima.

A memória dos oficiais reformados aferra-se aos valores militares tradicionais, os quais se identificam com um “nós” excludente e imutável, à medida que reiteram seu compromisso e adesão como “combatentes” à empreitada repressiva. Em outras palavras, os “combatentes”, no terreno militar, confundem- se com os “combatentes” no terreno da memória. E, desse modo, os oficiais que

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“combateram” no passado, assim como os que hoje o recordam, reconhecem-se e identificam-se como “soldados leais à pátria e ao exército”, e, inclusive, apresentam-se como fiadores da identidade militar. Essa espécie de sobreposição entre ontem e hoje reforça, por sua vez, a auto-imagem dos oficiais reformados como militares plenos e legítimos, “que não deixam cair suas bandeiras”. Certamente, a identidade militar aparece resguardada pelos oficiais reformados que reivindicam e evocam a “luta contra a subversão”. E, além disso, qualquer questionamento ou transformação dessa memória é percebido pelo oficiais reformados como uma demonstração da crise de valores e de costumes que está atravessando a instituição.

Em conclusão, a memória da “luta contra a subversão”, assim como os “atos de homenagem”, tendem mais a restabelecer e potencializar uma identidade corporativa militar do que a relativiza-la ou problematiza-la. Para dentro, funciona como uma memória edificante que reforça os sentimentos de pertencimento e autovalorização da comunidade militar e que estimula a transmissão e a recordação com uma forte carga afetiva às novas gerações de oficiais. E, para fora, aponta para manter a coesão social, defender as fronteiras simbólicas e salvaguardar o exército como uma comunidade moral diferenciada frente a uma sociedade que lhe exige mudanças, revisões e sinceramientos. Desse modo, a ritualização da memória da “luta contra a subversão”, nos “atos de homenagem”, funciona como um instrumento privilegiado para a reprodução do mundo simbólico ao qual pertence o oficial, para esgrimir legitimidade no marco de conflitos que se vêm produzindo no interior do exército e para fixar o presente ao passado de um modo que possa obturar qualquer tipo de reelaboração e autocrítica. Desprovida de distanciamento, inovação e elaboração, a memória perde a sua dimensão crítica, somente satisfaz o critério de fidelidade ao passado e confunde-se com a noção de tradição.