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Diferente das autoridades do exército, que evitam dar entidade oficial aos “atos de homenagem”, as famílias e os companheiros de promoção exigem que se recorde os oficiais mortos como “...homens de honra” , com o ...pessoal uniformizado e um clarim para o toque de silêncio”98. Nessas comemorações, o

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Lembremos que o capitão de corveta (R), Adolfo Scilingo, realizou suas declarações públicas depois que os comandantes das Juntas Militares receberam o indulto e porque –a seu critério- foi o silêncio oficial sobre a repressão ilegal o que impediu a promoção a oficiais como Pernías e Rolón (Verbitsky, 1995).

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Perfil, 4 de junho de 2006.

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passado parece misturar-se com o presente eterno dos rituais castrenses. A rotina das performances ritualizadas consegue que os acontecimentos evocados sejam inscritos em estruturas de sentido preexistentes (Jelin, 2002a: 24). E é dessa forma que a repetição performática confunde-se com uma repetição interpretativa que remete a um momento fundacional, quase mítico, no qual o exército, a nação e a guerra fundem-se na retórica da gesta patriótica:

“Nós sentimos e estamos convencidos de que todos são Heróis da Nação e deveriam ser honrados não só em um ponto no tempo, mas de forma permanente, aprendendo sobre suas vidas, seus atos heróicos, suas batalhas.

Ou acaso quando estamos parados nas cerimônias de homenagem aos nossos mortos, quando hasteamos a bandeira, em 25 de maio, 9 de julho ou no dia de nossa querida insígnia, não deveríamos ver em nossas mentes os Rostos do Valor que viveram, trabalharam, lutaram e morreram por essa bandeira e para que estejamos ali parados ?”.99

Os “atos de homenagem” são comemorações que, ao fazerem ingressar a memória no presente eterno dos rituais castrenses, pretendem objetivar narrativas e sentidos sobre o passado, materializando-o em práticas compartilhadas entre os oficiais reformados. Trata-se de dispositivos de enquadramento da memória à medida que constituem suportes legítimos da memória militar. Daí que os oficiais reformados exigem que “os caídos pelo terrorismo subversivo” sejam evocados nos termos e com os suportes que a tradição militar impõe: a História das gestas pátrias e nas celebrações castrenses.

Do mesmo modo, o discurso da guerra requer que a memória pratique-se sob a narrativa dos heróis e dos mártires. Por isso é que os oficiais reformados reconhecem os desaparecidos, mas “como mortos de uma guerra não- convencional”, e somente nesses termos aceitam a dor de seus familiares e amigos. Desde essa lógica de “bandos enfrentados”, os companheiros de turma e

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Texto de boas-vindas à página web da Comisión de Homenaje Permanente a los Muertos por la

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das famílias reclamam que os militares mortos converteram-se, nos últimos anos, em vítimas não-reconhecidas pela sociedade, mas, sobre todas as coisas, em heróis não-homenageados devidamente pelo próprio exército. Uma sociedade que se nega a ouvir “a outra parte da verdade” e um exército que deixa de homenagear, com todas as honras, os oficiais mortos como “heróis que defenderam a sua pátria”.

Os “atos de homenagem” transformaram-se, pois, no âmbito no qual não só se evoca aos “mortos pela subversão”, mas no qual se ensaiam tensões entre a política de memória dos mandos superiores e as práticas comemorativas dos companheiros de promoção e dos parentes. Nessas cerimônias, os oficiais reformados e as famílias dos oficiais mortos apresentam-se como os guardiões da memória da “luta contra a subversão,” enfrentados ao controle da instituição. Esses atores procuram institucionalizar os “atos de homenagem” como a performática sobre o passado oficial e legítimo do exército:

‘’’Bendini sabia (...) acerca do ato. È evidente que Bendini tem uma política diferente daquilo que eu conhecia como política do Exército’, afirma Ana Lucioni, filha do tenente coronel homenageado Oscar Lucioni e organizadora do Acto de homenaje a los muertos por la subversión de 24 de maio de 2006”.100

Para os oficiais reformados, reconhecer a catástrofe que representou o desaparecimento sistemático de milhares de pessoas implicaria um efeito de ruptura. Tratar-se-ia de um corte no trabalho memorial de ligadura, continuidade e articulação entre o passado e o presente de uma comunidade moral que se sustenta da repetição de suas tradições e rituais (Jelin, 2002b: 11). E, assim, a construção de uma memória de heróis e dos mártires garante um relato unidimensional que opaca outras ações possíveis, posto que ao ressaltar certas características como sinais do heroísmo exige silenciar outros, especialmente os

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maus atos. Desse modo, a memória da “luta contra a subversão” procura ocultar a figura controvertida dos “Generales del Proceso” e fortalecer a idéia de que os militares não matam para defender a pátria, mas que morrem por ela. Por isso, os oficiais reformados têm que mostrar a morte de seus camaradas como a morte heróica dos oficiais “que não deixaram cair as suas bandeiras, e se caíram, caíram com elas” para salvaguardar a sua pureza moral. Em síntese, a violência do passado recente resulta re-narrada como uma sucessão de martírios que aconteceu com o exército. Desse modo, procura-se requalificar a violência, delegá-la aos “inimigos da nação” e recriar os sentidos de uma comunidade sob ameaça.

Na memória dos oficiais que homenageiam seus camaradas, revivem-se cenas, expressões, rituais da “guerra anti-subversiva” à medida que condensam sentidos e valores que servem para reforçar uma identidade que se sente em xeque e ameaçada pela recuperação e a consolidação pública da memória dos desaparecidos na Argentina. Os períodos de crise ou ameaças externas constituem conjunturas de ativação da memória que podem estimular aos grupos a reinterpretar seu próprio legado memorial e questionar a sua identidade coletiva, isto é, a realizar uma volta reflexiva sobre seu passado; no entanto, no caso que nos ocupa, tende-se a cristalizar sentidos e a fortalecer posições que se negam a qualquer revisão.

Ali onde as vítimas da repressão persistem como mortos do bando subversivo e os repressores como patriotas heróicos, procura-se resistir à vigilância memorial de uma instituição obrigada pela sociedade civil e pelo Estado de Direito a gerir sua democratização.101 Em efeito, a evocação heróica da repressão ilegal é uma performance coletiva que procura restaurar a dignidade do exército como guardião da pátria, ao mesmo tempo que resguarda os indivíduos de qualquer autocrítica possível.

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O fracasso da Guerra de Malvinas, as violações aos Direitos Humanos, as intentonas golpistas das décadas de 80 e 90, a morte de um soldado por maus-tratos durante o serviço militar aumentaram o descrédito de uma instituição que teve que enfrentar um processo de mudanças institucionais.

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Por uma parte, a figura do herói permite que o passado em comum encarne- se na biografia de uma categoria ideal de pessoa. Embora a morte trágica do herói arranque o soldado do anonimato que a tropa impõe, sua canonização o faz renascer como símbolo da comunidade. O herói morre na vida e renasce simbolicamente no lugar designado pelo grupo. Em seu sofrimento e em seu sacrifício, há sempre uma lição imperecedoura e eterna (Echeverría Molloy, 2001). Sua morte é um sacrifício altruísta. O herói não só se sacrifica para salvar a comunidade, mas o faz para perpetuar seus valores e seu modo de vida, tal como se afirma em um “ato de homenagem”:

“Hoje nos congregamos aqui, na rotunda, solitária, senhorial e austera estrutura de nosso velho e querido Círculo Militar, para perpetuar o exemplo de Ibarzábal no bronze inalterável dos tempos. Deu sua vida mesma para que a pátria viva. E com isso consegue que os soldados sejam esquecidos e injuriados, depois de dar seu sangue generosamente para que vivam suas crenças, sua fé e o amor à pátria”.102

Por outra parte, no culto ao herói, cada um de seus atos e ações cotidianas aparece como surgido de sua vontade e de seu caráter pessoal. A metafísica da moralidade institucional é sua força moral e espiritual pessoal. O ideal de “bom oficial” aparece, pois, naturalizado no caráter do herói – em seu valor, suas virtudes, sua inteireza, suas convicções. E, desse modo, os oficiais reformados identificam-se com o ideal de “bom oficial” que representa a figura canonizada dos camaradas “mortos pela subversão”. E a morte do herói tem um poder regenerativo para a comunidade militar, posto que coincide com a categoria de pessoa que “enaltece a profissão e o exército”:

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Discurso da turma 80 do Colegio Militar de la Nación, no 31º aniversário da morte do coronel Ibarzábal.

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“…nos ensinou, em tamanhas circunstâncias, que não se deve estar disposto a reptar ou a vegetar. Manteve inclaudicável sua fé em Deus e na pátria. Com tal paixão que ainda custa acreditar. Imensurável. Tudo isso é o que nos faz tremer de admiração perante o valor desse soldado frente aos infortúnios e perturbações. (…) Quando os espíritos não são, nem sequer representam uma dupla paixão e somente se deixam levar à deriva, os povos alçam seus olhos a Deus e procuram os soldados de alma e vocação como ele o foi. Como o fez nosso Ibarzábal, atuando como os velhos fidalgos argentinos, com fortaleza, tenacidade e perseverança. Com prudência e diligência. Sem ostentações nem vanglórias. Com valentia e com benevolência. Com todo isso e com a sua morte, marcou-nos o caminho a seguir. Hoje integra a plêiade esclarecida daqueles cuja curta vida foi um exemplo ativo. E o presente que vivemos está necessitado desses exemplos. Passou entre nós com a serena porfia de sua relevância, com sua viril obediência e sua leal subordinação, com sua serenidade perante a morte. Deixou-nos sua lição”.103