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A obsessão e o cuidado pelos legados do passado resultam contraditórios com a política de esquecimento que o exército e seus homens vêm mantendo frente a uma sociedade que lhes reclama a verdade sobre o destino dos desaparecidos. Apesar do silêncio que envolve a desaparição de pessoas, os oficiais reformados relembram os anos da repressão ilegal, recriando versões sobre suas experiências. Mesmo que essas versões sejam ressignificadas –no plano coletivo- de acordo com as circunstâncias e o cenário político no qual a instituição desdobra suas estratégias e projetos (Jelin, 2002b: 2), cabe esclarecer que estão inscritas dentro de uma política de esquecimento, silêncio e destruição dos rastros do passado que pretende relembrar. Daí a seletividade dos fatos da memória, que, como ponto cego das entrevistas que realizei, denota a força vinculante que tem o segredo como forma de coesão entre os oficiais reformados. O primeiro benefício do segredo é a confiança mútua entre seus detentores, uma vez que da capacidade de calar-se deriva uma sensação de proteção. Trata-se de um tipo de confiança sob a qual se possa colocar qualquer tipo de conteúdo da vida em comum (Simmel, 1939). Por isso, o segredo parece depender menos da obediência do que daquilo que tem que calar. E, desse modo, institui um mecanismo pelo qual se produz automaticamente o silêncio esperado em cada um dos entrevistados.

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Discurso da Turma 80 do Colegio Militar de la Nación no 31º aniversário da morte do Coronel Ibarzábal.

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O lema “Soldado no pidas perdón por haber defendido a tu Patria...”74, com o qual a Unión de Promociones convocou ao ato na praça San Martín, no dia 24 de maio de 2006, tem que ser entendido como parte de um horizonte de significação da vida militar pós-ditadura que se inaugura, segundo a percepção dos oficiais entrevistados, com o Mensaje al País do tenente Martín Balza75. No dia 25 de abril de 1995, um dia depois que o ex-repressor Víctor Ibáñez reconhecera, na televisão, que se atiravam pessoas vivas ao mar, inaugura-se um período de tensões e descontentamentos entre a oficialidade e os mandos superiores que chega até a atualidade. E esse descontentamento não se deve às declarações de Ibáñez, mas a que, essa noite, o chefe do Exército leu, no programa de televisão

Tiempo Nuevo, um discurso no qual afirmou:

“... quero lhes dizer, como Chefe do Exército, que, assegurando sua continuidade histórica como instituição da Nação, assumo nossa parte da responsabilidade dos erros desta luta entre argentinos que hoje nos volta a comover”.76

Embora essa proclamada “autocrítica institucional” não tenha sido recebida satisfatoriamente pelos organismos de Direitos Humanos, os quais não admitiram a inexistência de listas de desaparecidos em mãos do exército77; isso é compreendido pelos oficiais reformados como um ato de traição. Em uma entrevista, um tenente não duvidou em chamar o general Balza de “general genuflexo”. O fastídio que o Mensaje al País desatou entre a oficialidade do exército78 põe em questão sua legitimidade e autoridade pública.

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La Prensa, 25 de maio de 2006.

75

O general do exército Martín Balza foi Chefe do Estado Maior do Exército Argentino de novembro de 1991 até dezembro de 1999.

76

Clarín, 26 de abril de 1995.

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“As listas de desaparecidos não existem na força que comando; se é verdade que existiram no passado, não chegaram aos nossos dias. Nenhuma lista trará à mesa vazia de cada família o rosto querido, nenhuma lista permitirá enterrar os mortos que não estão nem ajudar seus parentes a encontrar um lugar onde lhes render uma homenagem.”

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No dia seguinte à entrega do comando do exército, o tenente Balza foi expulso do Círculo Militar, presidido pelo General de Divisão (R) Ramón Genero Díaz Bessone, ex Ministro da Ditadura.

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Nas instituições hierárquicas e com fortes estruturas de mando, o poder performativo da palavra deriva da autoridade de quem a enuncia, posto que o chefe é, além disso, um porta-voz que está investido do poder de nomear e de comunicar por delegação. Não obstante, a repulsa que o Mensaje al País desatou entre os oficiais reformados mostra que o poder performativo da palavra que evoca o passado não deriva somente da autoridade de quem a enuncia, mas converte-se em uma palavra autorizada quando obtém o reconhecimento do grupo ao qual está dirigida a memória79 (Bourdieu, 1999). Os insultos de que são objeto tanto o general do exército Balza quanto a atual condução do exército a cargo do general do exército Roberto Bendini, embora tenham uma eficácia simbólica muito reduzida, posto que só comprometem seu autor, constituem um ato de destituição no sentido de que um indivíduo, atuando em nome de um grupo, lembra ao chefe que não se comporta de acordo com a essência que lhe foi socialmente reservada (Bourdieu, 1999: 65-66).

O fastídio que provocaram as declarações do tenente Balza põe em evidência que a autocrítica que realiza o porta-voz autorizado carece, aos olhos dos oficiais reformados, das características retóricas e narrativas que a instituição lhe delegou. Por isso, não é um discurso reconhecido por seus camaradas, e, mais ainda, é considerado uma traição. Um discurso é eficaz, isto é, reconhecido, quando coincidem as propriedades do discurso, as propriedades de quem o pronuncia e as propriedades da instituição que autoriza a pronunciá-lo (Bourdieu, 1999: 71). Por isso, a traição que significa o ato de “render contas”, de “pedir perdão”, mostra que essa narrativa carece das características retóricas e morais que os oficiais reformados esperam. Em suma, as disputas pela representação do passado recente são, ao mesmo tempo, lutas pelas posições de autoridade, pela legitimidade de quem toma a palavra e pelo reconhecimento do grupo ao qual se transmite a memória.

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A autoridade que funda a eficácia performativa do discurso é um percepi, um ser conhecido e reconhecido, que permite impor um percipere, ou, melhor ainda, que permite impor-se oficialmente como imponente, vale dizer, frente a todos e em nome de todos, do consenso com respeito ao sentido do mundo social que funda o sentido comum (Bourdieu, 1999: 66).

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O descontentamento com as autoridades de um exército “donde el honor es

Bendido por unas monedas”80 –como anuncia um comunicado do Grupo de

Amigos por la Verdad Histórica- acrescentou-se consideravelmente depois da

retirada das fotografias de Videla e Bignone, membros das Juntas Militares e diretores do Colegio Militar, as quais adornavam as paredes dessa instituição. Considerando que o general do exército Bendini81 retirara esses quadros frente a

27 generais e 5 coronéis maiores, e com 700 estudantes formados nos pátios do

Colegio Militar, quatro generais solicitaram seu afastamento82. A retirada dos

quadros converteu-se em um fato de grande peso simbólico entre os oficiais reformados, posto que representa outro ato de claudicação e debilidade dos generais que “não velam pela honra do exército”. Não se trata de uma reivindicação dos “Generales del Proceso”, os quais são parte também de uma casta de generais traidores por haverem aceitado os indultos e por não haverem assumido pessoalmente as responsabilidades pelo “atuado na luta contra a subversão”. A retirada dos quadros pelo general do exército Bendini significa o refortalecimento –entre os oficiais reformados - de velhos sentimentos de escárnio e vergonha aos que se sentiram reiteradamente submetidos em diferentes momentos da história política da instituição. Tal como descrevem dois oficiais a

Diario Perfil:

“E... obrigar-lhe a retirar do Colegio Militar os quadros de Videla e Bignone, diante de todos os cadetes, não é um bom modelo para os futuros oficiais. Esses quadros estavam ali por uma tradição que se segue e porque foram diretores do Colegio Militar...”.83

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Comunicado a propósito do 30º aniversário da morte do General de Brigada Arturo Horacio Carpani Costa. Por instrução de María Josefina Iturrioz Vda. de Carpani Costa, Arturo Adolfo, María Josefina, Fernando e María de la Paz Carpani Costa, assina o Dr. Juan Martín Carpani Costa. (Bendido com B é uma referência ao sobrenome do chefe do exército, general do exército Roberto Bendini e trata-se de um trocadilho com a palavra vendido, em espanhol, que da a idéia de uma pessoa subornada ou traidora. N.T.)

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O general do exército Roberto Bendini é Chefe do Estado Maior do Exército desde maio de 2003.

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“Veja você como manejou esse mesmo tema a Marinha. Ao Almirante Godoy também foi pedido o mesmo com os quadros dos chefes que estão no

Edificio Libertad. Como ele resolveu? Um dia, disse ao seu secretário que

alcançara ao seu gabinete o quadro de Massera. Dois dias depois, como sempre na última hora e quando já quase não restava ninguém, pediu-lhe o outro quadro...”.84

Das citações anteriores, depreende-se que, por uma parte, na vida militar, resulta importante delimitar a fronteira que separa o público do secreto, o confidencial associado aos atos de serviço. As celebrações, atos e comemorações pertencem ao âmbito dos ritos públicos de manifestação da autoridade, frente a todos e em nome de todos, e sua eficácia e validez derivam do sistema litúrgico: agentes, instrumentos, momentos e lugares. A atuação pública tem um poder de consagração ou, nesse caso, de destituição. Em outras palavras, consegue incidir nas representações que os agentes fazem da pessoa consagrada ou destituída e, inclusive, influi nos comportamentos que se adotam a respeito dela. Nos discursos públicos, o indicativo tem um poder imperativo (Bourdieu, 1999: 81) e, se consegue reconhecimento, pode dar existência a isso que enuncia. Como as celebrações castrenses são atos de comunicação e de consagração, atuar na última hora, quando já não resta ninguém, assegura discrição. A discrição é uma das qualidades do secreto, a qual, embora permita ausentar o ato no tempo e no espaço, não pode negar sua existência (Simmel, 1939: 365). Por isso, o serviço que presta “fazer as coisas em segredo” é que, apesar de todos saberem sobre a destituição, isso nunca assume a forma de uma acusação pública.

Por outra parte, a discrição que assegura o secreto reproduz a idéia de que a traição é tolerável quando se oculta. A oposição consagrada pelo sentido comum entre o traidor secreto e o herói público -duas caras da mesma moeda85- tem uma função social complexa. A traição é, primeiro, uma suspeita, e, logo, uma 83 Perfil, 4 de junho de 2006. 84 Idem. 85

Borges mostra, no conspirador irlandês do XIX, Kilpatrick, que a figura do herói e do traidor são indissociáveis (Borges, 1995).

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acusação contra a pureza ou contaminação da conduta e valores que detêm os membros de um grupo. Supõe, além disso, uma férrea escala de valores e um controle rigoroso sobre os comportamentos humanos. Trata-se de mais uma forma da dicotomia amigo/inimigo, que se encarna, nesse caso, em um nós que se mantém leal ao passado. Essa lealdade não só impede, como afirma um ex – oficial de inteligência do exército, qualquer tipo de raciocínio moral ou autocrítica, mas também estimula a realização de atos heróicos que confirmem a sujeição dos oficiais à escala de valores compartilhada:

“Hoje estamos vivendo uma claudicação. Não há respeito a toda uma geração que viveu duas guerras. Tudo é crítica ou autocrítica, é inaudito. Os atuais generais são maus generais e estão nos diminuindo profissionalmente. Nos questionam do exterior. Mas as novas gerações de militares saem bem, saem bem, apesar de tudo, com raiva. Dizem que só os filhos de militares têm solidariedade com as gerações mais velhas, mas não é assim, olha o caso do Pando. Não é de família militar e como arriscou a carreira. Se sentem realmente agradecidos no fundo, mas não o podem dizer. Porque o que querem é meter medo, porque você tem que ter medo, isso dizem”.86

Por último, a traição e claudicação de que é acusada a condução do general do exército Bendini expressa-se, segundo os oficiais reformados, nas reiteradas ameaças de dispensa e nas dispensas e detenções efetivas que se aplicam a oficiais em atividade que comparecem com uniforme aos “atos de homenagem”, ou que fazem declarações reivindicatórias da “luta contra a subversão”87. Na

narrativa dos oficiais reformados, essas sanções não são vistas como advertências por indisciplina, mas como uma tentativa de amedrontamento dos “atos de homenagem”.

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Entrevista a um ex-oficial de inteligência e ex-carapintada.

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Em junho de 2005, o chefe do Grupo de Artillería de Salta, tenente coronel Roberto Vega, recebeu 15 dias de detenção porque, ao tomar juramento aos soldados no Día de la Bandera, na localidade de Campo Castañares, sustentou: ‘É a mesma bandeira pela qual vários soldados levam gravadas, em seus corpos, as feridas recebidas lutando em Manchalá contra o terrorismo apátrida que pretendia trocá-la por um trapo vermelho’.

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