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1. GÊNERO E A CONSTRUÇÃO DO CORPO VIOLENTADO

1.5. CONSTRUÇÃO DO CORPO VIOLENTADO

O fenômeno da violência sempre esteve presente em nossa sociedade, a forma como se apresenta varia de uma sociedade para outra, assim sendo, o formato como a violência se configura depende do arranjo histórico, cultural e social de cada sociedade. Nesse sentido, são consideradas práticas violentas e legitimadas pela coletividade conforme a sociedade. Procuraremos trazer as reflexões de gênero a partir de teóricas que pensam como a violência “achou” no corpo feminino o lugar construído para a agressão, uma vez que o aparato cultural sanciona este lugar como possível.

Por muito tempo vigorou no Brasil Colônia do século XVI até o início do século XIX as Ordenações Filipinas, código de Leis de Portugal, que dava domínio absoluto ao homem, logo, eles tinham total direito sobre a mulher. Por conseguinte, as mulheres estavam sujeitas ao poder disciplinador do pai ou marido, os homens eram suprimidos de pena, legitimava-se o uso da violência contra a mulher, desde que essa fosse “moderada”, entretanto, ao mesmo tempo, davam ao homem o direito de matar sua mulher caso a mesma cometesse adultério. Segundo Mariza Corrêa (1981) o novo código penal6 reconhece “a igualdade de todos perante a lei enquanto indivíduos, mas mantém a mulher numa situação de tutela e submetida ao único coletivo admitido em nossas leis: a família” (CORRÊA, 1981, p.15). Deste modo, o adultério como crime permaneceu no código brasileiro por muito tempo, o que legitimou assassinatos em detrimento da defesa de honra, assassinatos que pareciam caber à masculinidade.

Diante disto, a violência contra as mulheres em suas múltiplas formas reflete-se na violência doméstica contra as mulheres, dado que a violência contra a mulher fora justificada e legitimada sobre o pressuposto da defesa de uma honra masculina até o final do século XX7 É notório que a violência doméstica contra a mulher é decorrente, em

6A autora refere-se ao código penal de 1940.

7 Pimentel, Pandjiarjian e Belloque (2006) nos mostra que o argumento da legitima defesa da honra foi aceito até meados dos anos 2000; contudo este argumento só passa a ser desfeito em sua plenitude com a implementação da Lei 13.104/15, Lei do Feminicídio.

50 grande parte, do controle e dominação masculina, cujo poder e a defesa da honra configuram-se como uma violência estrutural, que controla, pune e violenta o corpo feminino. Como vimos, é a partir dos questionamentos e reivindicações do movimento feminista que se tem início de forma enfática a correlação entre a violência e o gênero.

Sendo assim, as reflexões das militâncias feministas ajudam-nos a perceber e problematizar a violência assinalada no feminino. Esta que é recheada de significados, bem como de distinções, apesar de suas similitudes. Podemos creditar as marcas da violência no feminino decorrente do diferentes tipos de violências: violência contra a mulher, violência doméstica, violência intrafamiliar e violência de gênero, deste modo, “diversos significados dessas categorias adquirem desdobramentos e implicações teóricas e práticas em função das condições e situações específicas de sua concretude” (BANDEIRA, 2014a, p 451), além de acentuar a própria persistência da violência a partir de sua multiplicidade.

Cecília MacDowell Santos e Wânia Pasinato (2005) contribuem significadamente para compreendermos como os conceitos de violência contra as mulheres e violência de gênero são formulados e utilizados. A literatura sobre violência contra as mulheres se inicia no Brasil na década de 1980 constituindo uma das mais importantes temáticas dos estudos feministas. Os estudos feministas são frutos de mudanças políticas e sociais do país que incide no desenvolvimento de mulheres e o processo de redemocratização.

Nos anos 80, uma das principais reivindicações e problematização do movimento feminista e, consequentemente, dos estudos feministas recaía sobre as questões sobre a violência, logo, os primeiros estudos apresentam como objeto “as denúncias de violência contra as mulheres nos distritos policiais e as práticas feministas não-governamentais de atendimento às mulheres em situação de violência” (SANTOS, PASINATO, 2005, p.02). Com a criação das delegacias da mulher na década de 80, as pesquisas realizadas consistiam em conhecer os crimes denunciados, o perfil das mulheres agredidas e seus agressores. Ressaltamos que essas pesquisas oferecem referencias teóricos para entendermos o fenômeno da violência contra as mulheres e a posição das mulheres em relação à violência.

Santos e Pasinato (2005) identificam três correntes teóricas que vieram a se constituir como referências a esses estudos: a primeira que denominam de dominação masculina. Nessa a violência contra as mulheres é definida como expressão de dominação da mulher pelo homem, “resultando na anulação da autonomia da mulher, concebida tanto como “vítima” quanto “cúmplice” da dominação masculina”. (SANTOS,

51 PASINATO, 2005, p.02). As autoras se referem à segunda corrente como dominação patriarcal, compreendida como influenciada pela perspectiva feminista e marxista, sendo assim uma expressão do patriarcado, “em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimada pelo controle social masculino”. (SANTOS, PASINATO, 2005, p.2). A terceira corrente é nomeada de relacional, visto que relativizam as noções de dominação masculina e vitimização feminina, a violência é compreendida nessa corrente teórica “como uma forma de comunicação e um jogo do qual a mulher não é “vítima” senão “cúmplice””. (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 02). A primeira corrente identificada como dominação masculina, segundo Santos e Pasinato (2005), é uma das principais referências que orienta as análises sobre a violência contra as mulheres nos anos 80. De acordo com essa perspectiva, a violência contra a mulher é resultado da ideologia que confere inferioridade ao feminino mediante o masculino, logo teóricos dessa corrente compreendem que a violência acaba por transformar as diferenças em desigualdades hierarquizadas com a finalidade de oprimir, explorar e dominar. Assim sendo, a mulher é silenciada através dos discursos masculinos sobre as mulheres, há o que podemos considerar um apagamento social delas enquanto sujeito.

A segunda corrente teórica que orienta-nos sobre trabalhos de violência contra as mulheres é a concepção feminista e marxista do patriarcado introduzida no Brasil por Heleieth Saffiotti. Essa concepção entende que a dominação masculina está vinculada aos sistemas capitalistas e racistas, visto que essa concepção acredita que o patriarcado não deve ser resumido a um sistema de dominação de ideologia machista, mas que ele é em si próprio um sistema de exploração. Contrariando a perspectiva de dominação masculina na qual a mulher é considerada “cúmplice” da violência, a teoria feminista e marxista do patriarcado considera que embora sejam as mulheres concebidas como “vítimas” da violência elas são definidas como “sujeitos” dentro de uma relação desigual de poder com os homens.

Sobre a teoria da dominação masculina e a teoria feminista e marxista do patriarcado, Santos e Pasinato (2005) compreendem que:

As pesquisas sobre violência contra as mulheres na década de 80 utilizam o conceito de violência de Chauí8, mas não incorporam sua

reflexão sobre a “cumplicidade” das mulheres na produção e

8Ver: CHAUÍ, Marilena, “Participando do Debate sobre Mulher e Violência”. In: Franchetto, Bruna, Cavalcanti, Maria Laura V. C. e Heilborn, Maria Luiza (org.). Perspectivas Antropológicas da Mulher 4, São Paulo, Zahar Editores, 1985.

52 reprodução da violência. Na trilha de Saffioti, concebem violência contra as mulheres como expressão do patriarcado e acabam assumindo, com ou sem ressalvas, uma posição vitimista em relação à mulher. (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 05).

Com isso, Santos e Pasinato (2005) assinalam que a teoria da dominação e a teoria feminista acabam por conferir em suas concepções a mulher o lugar vitimista. Já no que concerne a terceira corrente teórica dos estudos sobre violência contra as mulheres, esta irá relativizar a perspectiva dominação-vitimização. A principal expoente que exemplifica essa corrente é Maria Filomena Gregori. A corrente relacional rejeita a ideia de “violência como expressão de dominação e a dicotomia analítica autonomia- heteronomia” (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 07), visto que os estudos dessa corrente compreendiam o fenômeno da violência conjugal como uma forma de comunicação nas quais homens e mulheres davam significados e sentidos as suas práticas, o que para essa teoria correspondia mais a um jogo relacional do que uma luta de poder. Para Gregori (1993), a mulher participa de maneira ativa e violenta na relação, tendo em vista que, segundo a autora, a mulher tem autonomia, logo não a concebe como “vítima” da dominação masculina, embora a conceba como “cúmplice” da (re) produção e papéis de gênero que mantém a violência. O que a diferencia das correntes anteriores é que ela entende que a mulher é considerada protagonista da violência conjugal e “se representa como “vítima” e “não-sujeito”” (SANTOS, PASINATO, 2005, p. 07).

No mais, segundo Santos e Pasinato (2005), a cumplicidade não pode ser apreendida como simples instrumento de dominação. A perspectiva relacional foi fortemente criticada, principalmente, os estudos de Gregori, pois a sua perspectiva ao relativizar as relações de violência a compreende como algo que acontece fora de uma relação de poder assumindo uma igualdade social entre os cônjuges.

No final dos anos 80 as acadêmicas feministas começam a “substituir” a categoria “mulher” por gênero em consonância com os debates e estudos norte-americanos e franceses a respeito da construção social do sexo e gênero. Há uma ruptura com a perspectiva da violência sob a ótica patriarcal que dava margem a essencialização, naturalização e biologização da mulher. Logo, afirmar os estudos de gênero é, sobretudo, enfatizar a diferença entre o social e o biológico. Por conseguinte, a luz da perspectiva dos estudos de gênero, os estudos sobre a violência contra a mulher adotam o uso da expressão “violência de gênero” para se referirem a estudos tanto sobre mulheres quanto

53 homens, além disso, o termo também aparece para ampliar a categoria violência de modo mais geral.

Segundo Saffiotti (2001), a violência de gênero perpassa o exercício do papel patriarcal, no qual os homens possuem o poder de produzir a conduta das categorias sociais nomeadas, ganhando “alvará” ou, pelo menos, condescendência da sociedade para punir os que se apresentam como desviantes. Assim, cabe frisar que a violência de gênero concerne mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. Nesse sentido, homens afeminados e gays são considerados desviantes, logo, são alvos desta violência9.

Nesse contexto, compreende-se a violência de gênero como atos violentos produzidos em contextos e espaços relacionais, a qual as ações desta está eminentemente associada ao feminino, visto que a centralização deste tipo de violência está historicamente sobre os corpos femininos. Ressalta-se que a violência de gênero, proveniente da intimidade amorosa, nos mostra a existência do controle social sobre os corpos, a sexualidade e as mentes femininas, “equivale dizer que a violência física e sexual está sendo mantida como forma de controle, já que se ancora na violência simbólica” (BANDEIRA, 2014a, p. 459).

No percurso de pensar a violência de gênero, principalmente, nas relações íntimas a partir da violência simbólica como primeira personificação da violência sofrida pelos sujeitos nas relações de força, trazemos para o diálogo Suely Almeida (2007). A autora assinala que “dimensão simbólica é pontecializadora, por ser um problema circunscrito a um espaço fechado, ambíguo, fortemente estruturado no campo axiológico e moral” (ALMEIDA, 2007, p. 29). Assim sendo, a autora nos faz pensar que as categorias de conhecimento do mundo têm uma predisposição maior no emocional do que no cognitivo, fundando-se como um fenômeno social constante, invariável e articulado por facetas psicológicas, morais e físicas.

Em consonância com Almeida (2007), Bandeira (2014a) afirma que:

Suas manifestações são maneiras de estabelecer uma relação de submissão ou de poder, implicando sempre em situações de medo, isolamento, dependência e intimidação para a mulher. É considerada como uma ação que envolve o uso da força real ou simbólica, por parte de alguém, com a finalidade de submeter o corpo e a mente à vontade e liberdade de outrem. A maior parte das agressões sofridas pelas mulheres é decorrente de conflitos interpessoais, o que acaba por merecer pouca atenção e sua exposição causa embaraço. Estes traços

9Parece-nos que a aproximação performática de um indivíduo com o feminino é o suficiente para conferir a este um corpo violentado pelas múltiplas formas de se fazer e exercer a violência.

54 contribuem para a complexidade do fenômeno, uma vez que é inerente às situações entre homens e mulheres, que mantêm vínculos afetivos e profissionais. (BANDEIRA, 2014a, p.460).

Deste modo, conforme a autora, medo, isolamento, intimidação e dependência são resultantes de manifestações e relações de submissão e/ou poder. Por este ângulo, Bandeira (2014a) aponta as diversas interfaces onde as mulheres estão aprisionadas na relação de poder, em uma dominação, ou seja, as múltiplas formas de violência introjetadas na mulher, uma ação que abrange o uso da força física ou simbólica.

Portanto, ao longo do capítulos procuramos apresentar como o gênero e sua construção marca os limites da violência. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha formulada para o enfrentamento da violência tem alcance e desestabiliza norma sociais construídas e repetidas por anos. Perceber como as violências praticadas contra as mulheres interpela em suas experiências faz com que questionemos às ações do Estado na formulação de políticas públicas. Desse modo no capítulo seguinte procuraremos investigar o percurso e a nomeação de uma política pública como nome e figura de mulher.

55 CAPÍTULO II