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3.3 A CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE XINGÓ E A NOVA CANINDÉ DE SÃO FRANCISCO

Servindo de apoio ao processo de industrialização brasileira, projetos como as grandes hidrelétricas, além da produção de energia elétrica, tornaram-se o meio de expansão de novas técnicas para a produção nacional. Entretanto, os efeitos advindos dessa modernização ou dessa mudança trouxeram consigo problemas econômicos, sociais e ambientais, assim como culturais.

No caso da instalação de hidrelétricas, os impactos causados à área receptora são complexos por se tratar de obras de grande amplitude, que acabam ultrapassando os limites da área de implantação, como afirmam os especialistas ao tratarem desse tema.

No Brasil, houve um rápido crescimento e fortalecimento do setor elétrico, com a criação da Eletricidade Brasileira (ELETROBRAS), em 1962, propiciando a instalação de um grande número de hidrelétricas, sem que se pensasse na amplitude de seus impactos no longo prazo, mas apenas no curto e médio prazos. Acreditava-se que os benefícios gerados por elas iriam se sobrepor aos pontos negativos constatados ao longo do tempo, ou seja, os efeitos negativos estariam subordinados a um fator preponderante, “a questão energética” (SIGAUD, 1988).

Mesmo com a ampliação do setor elétrico ligado ao crescimento industrial, a integração dos interesses locais na implantação de hidrelétricas permaneceu, na maioria dos casos, apenas no discurso. O que ocorreu, na verdade, foi a integração técnica e econômica das empresas de estudos e projetos do setor de construção civil e das empresas fabricantes de equipamentos pesados (MIELNIK & NEVES, 1988).

Em lugar da integração dos interesses locais, o que restou às áreas receptoras foram as transformações impostas pelos grandes projetos, transformações essas mascaradas no momento da ampliação do setor elétrico nacional pelo mito do desenvolvimento mediante a produção de “energia limpa”, da geração de grande número de empregos e, conseqüentemente, do crescimento econômico das áreas de influência das hidrelétricas. Esse mito foi ainda reforçado quando o setor elétrico colocou, como alternativa, a substituição das hidrelétricas por usinas nucleares, consideradas de alto risco.

A ideologia do discurso de desenvolvimento empregada na implantação de grandes obras, como as hidrelétricas, fica evidente quando se faz referência ao impacto social e cultural contido nas mudanças impostas pelos grandes projetos. Martins (1993) deixa claro esse caráter ideológico quando aponta que não se trata de introduzir nada na vida de ninguém. Trata-se de projetos econômicos de envergadura, como hidrelétricas, rodovias, planos de colonização, de grande impacto social e ambiental, mas que não têm por destinatárias as populações locais. Seu pressuposto é o da remoção dessas populações.

Para Peixer (1993, p. 93), “as mudanças no cotidiano, percebidas com a chegada do „outro‟, geram momentos de instabilidade para os moradores, de redefinição de „seu‟ espaço social, dos usos e apropriação destes”.

Os problemas advindos da implantação dessas obras, tanto os sociais quanto os ambientais, são mais amplos do que se imagina. Um dos grandes impactos sociais provenientes da implantação de grandes projetos é a mudança na demografia das áreas de locação. A partir dessa alteração, surgem as demais, como por exemplo, as alterações na estrutura urbana, muitas vezes inadequada para receber esse novo contigente populacional e, ainda, as desapropriações, que levam a rupturas do processo de reprodução social dos ribeirinhos.

São rupturas consideráveis, que atingem sistemas físicos e bióticos, como os aspectos social, econômico e cultural das áreas de locação. Considera-se que tais rupturas surgem especialmente por projetos como o das grandes hidrelétricas, que se constituem em enclaves, ou seja, são implantadas no território, não nascem de seu processo de desenvolvimento, não expressam as forças sociais, políticas, econômicas endógenas.

Ressaltem-se, ainda, os impactos ambientais causados à área receptora com perdas irrecuperáveis em sua fauna e flora, bem como os impactos sócio-espaciais causados pelos grandes alagamentos que atingem propriedades rurais localizadas próximas às margens dos reservatórios, áreas cujos solos têm normalmente elevada fertilidade natural.

A partir dessa compreensão e análise teórica evidencia-se que desde a implantação da primeira Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso I, na década de 50, já existia a idéia de aproveitamento hidrelétrico de Xingó, como parte desse projeto de desenvolvimento nacional, segundo os propósitos capitalistas internacionais, motivando o crescimento industrial brasileiro. Para isso, uma grande produtora internacional de alumínio procurou fazer acordos com a CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) objetivando o consumo da energia elétrica que viesse a ser gerada por Xingó, mas tais acordos não se concretizaram (Figura 20).

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Figura 20: Vista Externa da Hidrelétrica de Xingó/ Canindé de São Francisco-SE.

Fonte: Trabalho de Campo/ Fevereiro de 2011.

A partir de 1970, Xingó passou a fazer parte efetivamente do inventário de recursos do Nordeste, coordenado pela então ELETROBRAS (Companhia de Eletricidade Brasileira). Como conseqüência, já haviam três eixos selecionados para a implantação da barragem no início da década de 1980:

a) Xingó III – eixo localizado na Fazenda Xingó, entre os Estados de Sergipe e Bahia;

b) Canindé I – eixo localizado entre as cidades de Canindé do São Francisco (SE) e Piranhas (AL);

c) Canindé II – eixo localizado distante 3km de Canindé I.

Considerando o que está posto e maiores facilidades de construção, uma vez que as diferenças de custo global eram significativos, a CHESF e a ELETROBRÁS decidiram pelo eixo Canindé I e pela manutenção do nome Xingó. Portanto, só após a construção das Usinas de Paulo Afonso, de Sobradinho e de Itaparica é que Xingó teve suas obras concretamente iniciadas, a 20 de março de 1987, embora tivesse sido prevista, a princípio, para 1983.

Durante a fase projetiva da Usina um dos itens importantes a definir se referia à escolha do sítio. De acordo com o estabelecido no Plano Diretor da Cidade de Canindé de São

Francisco, elaborado em 1988, “o sítio escolhido fica a cerca de 55km à jusante de Paulo Afonso e a 179km da foz do Rio São Francisco, no trecho final do canyon entre os municípios de Piranhas/AL e Canindé do São Francisco/SE” (ANDRADE, 1995, p. 18).

Com um reservatório totalmente encaixado no canyon e ocupando áreas dos Estados de Sergipe, Alagoas e Bahia, Xingó inundaria apenas o povoado Canavieiras, e, um total de 70 propriedades com inexpressivas atividades agropecuárias. Tida como a terceira maior hidrelétrica do Brasil, naquele momento, sua construção se realizaria basicamente em duas etapas, sendo que a conclusão da primeira etapa, com produção de 3.000 Mw, estava prevista para março de 1996, já o orçamento estava estimado em US$ 2,4 bilhões, que seriam financiados parte pelos bancos europeus e parte pelo Governo Federal.

A principal responsável pela execução da obra foi a Construtora Xingó, formada pelo Consórcio de três firmas: CBPO, CONTRAN e Mendes Júnior, tendo sido as mesmas escolhidas através de concorrência pública e iniciado a obra com cerca de 8.000 empregados, reduzidos, posteriormente, para 4.000 em função da crise financeira que vinha afetando naquele momento a construção dessa hidrelétrica, a qual abasteceria de energia importantes áreas do Nordeste.

A Usina de Xingó foi considerada, no período de concessão do projeto, a maior obra da engenharia civil no final do século XX, no Brasil. Ela foi concebida para gerar 5.000.000 (cinco milhões) de quilowatts, sendo que a primeira etapa, inaugurada em junho de 1994, iniciou a produção gerando próximo de 2.000.000 (dois milhões) de quilowatts. Este último valor representava 25% do potencial hidrelétrico de todo o Nordeste, o que dá uma dimensão da grandiosidade da obra.

A mesma exigiu modernas técnicas de engenharia, sobretudo no que diz respeito ao necessário desvio do rio e a construção da barragem. Para desviar o rio, foram construídos quatro túneis escavados na rocha. Em um deles, foi construída uma câmara de controle que permitiu uma vazão de 800m3 durante o enchimento do reservatório. Durante a operação final de enchimento deste, o fechamento do túnel constituiu uma operação pioneira no mundo, representando um grande desafio.

Em termos de conseqüências socais e econômicas, esperava-se que resultassem do crescimento das cidades e povoados localizados na área de influência de Xingó, em virtude do grande número de empregos ofertados, bem como da relocação de Canindé de São Francisco que foi uma decisão da Prefeitura dessa cidade, do Governo de Sergipe e da CHESF em acordo com a comunidade local.

A Antiga Canindé posicionava-se às margens do rio, logo após o término do “canyon” que se estende de Paulo Afonso (BA) até este trecho. Desta maneira, a topografia do vale, em toda a sua extensão no território de Canindé é bastante acidentada, fazendo com que o rio corra encaixado. Em decorrência deste fato, as águas correm entre pedras, com velocidade e, nas margens, não ocorrem várzeas representativas que possibilitam o desenvolvimento de uma agricultura dinâmica.

A economia da Antiga Canindé era tipicamente àquela desenvolvida em todo o Sertão banhado pelo Rio São Francisco: a pesca de subsistência e a pecuária extensiva, associada às lavouras de milho, feijão e mandioca (Figura 21).

Figura 21: Vista parcial da Antiga Canindé de São Francisco/SE.

Assim, ao se transferir Canindé de São Francisco, pretendeu-se criar um núcleo urbano com três funções básicas: sede do município, apoio ao Projeto Hidroagrícola Califórnia e apoio ao Projeto Xingó, uma vez que a antiga sede era imprópria ao estabelecimento de uma maior infra-estrutura e estava localizada em uma área de interesse da obra, com perspectivas de inundação pelo futuro reservatório de Pão de Açúcar.

Sendo a cidade sergipana mais distante da capital e separada de Aracaju por 213 km, a comunicação se estabelecia através da SE-208, que era parcialmente asfaltada, dificultando a passagem de transportes coletivos e, também, o abastecimento do comércio local, o qual se reduzia a seis pequenos estabelecimentos com venda de bebidas e gêneros alimentícios, não existindo nem mesmo feira livre.

Inicialmente, a CHESF planejou apenas a construção da Vila Satélite de Canindé, destinada à prestadores de serviços diversos atraídos por Xingó, ao excedente de mão-de-obra e operários contratados pelas empreiteiras. No entanto, junto a essa área já existiam 120 lotes destinados à futura relocação da Antiga Canindé, cuja transferência iria ser feita, a longo prazo, de forma individual ou parcelada.

Em outubro de 1983, o prefeito municipal entregou à CHESF um documento da população reivindicando a transferência imediata, o que atendia às aspirações da citada companhia. Assim, a decisão da transferência ocorreu em junho de 1984 e a inclusão de novos 201 lotes destinados aos colonos atraídos pelo Projeto Califórnia, em julho de 1984. A partir daí, com uma nova organização territorial (Figura 22), Canindé de São Francisco, que teve as casas de permuta sorteadas em outubro de 1986, passou a receber grande número de migrantes.

Figura 22: Aspectos da Nova Canindé de São Francisco/SE

Fonte: Trabalho de Campo, 2006.

Para isso, o Loteamento Canindé ficou sendo formado por 2.249 lotes distribuídos em 110 quadras. Já a cidade foi dividida basicamente em três áreas: Área da SUDAP – destinada aos colonos atraídos pelo Projeto Califórnia; Vila Satélite de Canindé – destinada aos migrantes atraídos por Xingó - e o Núcleo – destinado à população da Antiga Canindé.

A partir de então, verifica-se o interesse político e econômico que o Governo Estadual passou a ter por esse território em função de Xingó, demonstrando isso, inclusive, através da implantação do Projeto Irrigado nas proximidades da Nova Canindé, possibilitando a viabilização de dois projetos ao mesmo tempo: a ocupação da área urbana através do Projeto Canindé e a da área rural através do Projeto Califórnia.

Saliente-se, ainda, que a construção de obras públicas do porte de Xingó sempre foi muito constante em países como o Brasil, que tem como fonte principal de energia o aproveitamento hidroelétrico dos seus rios. Entretanto, para que esses empreendimentos sejam realizados, torna-se necessária a ocorrência de transformações das estruturas físicas e socioeconômicas da área escolhida para sua localização, pois como dizia John Friedman

(1970, p. 13), “toda inovação requer uma medida de organização e adaptação ou uma mudança em certos aspectos do meio onde ela é introduzida. Inovação e meio devem ser estruturalmente compatíveis”.

Como conseqüência, surgem inevitavelmente os impactos de natureza ambiental, econômica e sócio-urbana, que atingem a área em um período de tempo relativamente curto e refletem, naturalmente, a conjugação de uma série de interesses de ordem política e econômica, já que na realidade o desenvolvimento econômico depende dos aspectos intelectuais e políticos do processo, a expansão dos conhecimentos e habilidades dos líderes políticos para mobilizar recursos.

No que concerne ao aspecto cultural mais relevante na percepção da população ribeirinha do Alto Sertão do São Francisco e mais especificamente do município de Canindé de São Francisco destaca-se a forte presença do Rio São Francisco, que no passado fez parte da vida cotidiana da Velha Canindé de São Francisco, que o utilizava como fonte de sobrevivência, como via de escoamento das pequenas embarcações que percorriam seu leito, como área de lazer e ainda como ponto de encontro e desencontros e até como espaço de festas. Hoje é necessário resgatar essa referência cultural e melhor explorá-lo do ponto de vista das atividades de lazer e de recreação (competições esportivas, por exemplo). A figura 23 apresenta o curso do Rio São Francisco com suas águas tranqüilas, no trecho do Lago de Xingó, obra significativa para o desenvolvimento do setor elétrico da Região Nordeste e para a indústria turística do Estado e Território do Alto Sertão Sergipano, assim como para a sua população.

Figura 23: Curso do Rio São Francisco/ Trecho do Lago de Xingó

Fonte: Trabalho de Campo/ Fevereiro de 2011

Quando falamos do presente, a construção do Lago de Xingó e da Usina Hidrelétrica de Xingó, assim como, a implantação do Projeto Hidroagrícola Califórnia, representam uma ruptura bastante considerável com as antigas funções deste rio, pois determinaram novas funções do Rio São Francisco, conseqüentemente, novas espacialidades:

Ao contrário de ter um movimento autônomo, a construção de valores a respeito do espaço é componente fundamental do movimento social na medida em que a gestão do espaço, suas representações e imagens, bem como as políticas e projetos a ele associados, representam um dos condutos mais eficazes do poder. As representações, reunidas num conjunto de valores que se pode chamar de “visão de mundo”, são responsáveis pelas identidades grupais e, como tais, constituem fator central da estabilidade social (SANCHÉZ, 2003: 89).

Simbolicamente, o Rio São Francisco constitui-se em uma “dádiva de Deus”, sobretudo para os antigos moradores das regiões ribeirinhas, contemporâneas de um rio com fartura de peixes, com muita água, provocando inclusive, grandes cheias, e, ainda, considerado como a única via de comunicação e deslocamento. Para a população mais jovem, a geração de energia elétrica e a irrigação constituem as funções mais importantes do rio.

Assim, há uma diferença básica com relação ao nível de entendimento sobre o rio, que foi observada também com relação à origem geográfica da população, pois a Nova Canindé abriga hoje muitos imigrantes vindos de estados vizinhos, como é o caso dos estados de Alagoas, Bahia e Pernambuco, assim como de lugares mais longínquos, a exemplo do Ceará e do Pará.

O Rio São Francisco desempenhou, no passado, a importante função de via de transporte para muitos dos antigos moradores da Antiga Canindé e das regiões ribeirinhas das vizinhanças, tanto no Estado de Sergipe, como nos Estados de Alagoas, Pernambuco e Bahia. Esta função é entendida como um fato passado. Primeiro, pela significativa transformação vivida, em função das represas e barragens construídas, depois, com o advento das estradas asfaltadas e da construção de pontes sobre o rio, interligando estados e municípios diversos, diminuindo as distâncias e o aparente isolamento. Essa função territorial do rio foi perdendo, gradativamente, sua importância.