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1.4 Táxons como linhagens: a sistemática filogenética

1.4.2 Construindo cladogramas

Vejamos como é possível construir um cladograma sobre um certo número de táxons a partir da análise dos caracteres apresentados por seus organismos. O primeiro passo é escolher pelo menos três táxons para realizar a análise13: esses serão os táxons terminais, ou seja, aqueles que ocuparão os ramos ter- minais do diagrama arborescente (cladograma) que resultará da análise (KIT- CHING et al., 1998, p. 218). Depois, é preciso escolher um conjunto de ca- racteressobre os quais a comparação será conduzida. Apesar da extensa lite- ratura a respeito do conceito de caráter (KITCHING et al., 1998; WAGNER, 2001), ele não encontra uma definição precisa. Grosso modo, trata-se de uma característica que tenha distribuição relativamente uniforme entre os organis- mos de um táxon, mas que sirva para distingui-los dos organismos de outros táxons. Um caráter precisa ter pelo menos duas formas de manifestação al- ternativas, chamados estados do caráter. Um exemplo poderia ser o caráter vértebras, tendo como estados presença ou ausência.

Idealmente, todos os caracteres envolvidos na análise deverão ser tais que seus estados são homólogos entre si. Isso quer dizer que, se uma espécie ancestral apresentar determninado estado de um caráter, todas as espécies descendentes dela têm de apresentar esse caráter nesse mesmo estado ou em um estado derivado dele. Afinal,

Adotar a teoria da evolução como explicação para a diversidade biológica implica necessariamente em aceitar não somente que os táxons, mas também que suas estruturas se conectam no pas- sado. (AMORIM, 2002, p. 24)

A vantagem da análise filogenética é que, além de fornecer evidências sobre quais dos estados de um caráter são primitivos e quais derivados, ela informa, ao mesmo tempo, se alguns dos caracteres escolhidos são ou não homólogos (KITCHING et al., 1998, p. 15). Antes do método de Hennig, não

13A escolha dos táxons é importante para a análise, já que, como veremos adiante, a escolha

de um grupo externo adequado determinará o sucesso da fase de polarização dos caracteres, conforme explicaremos adiante.

havia um método para formular hipóteses a respeito de qual a forma mais primitiva de um caráter (AMORIM, 2002, p. 26).

A análise filogenética parte da suposição que os caracteres escolhidos para a análise são homólogos, até que se prove o contrário. Quer dizer, dados dois estados a e a0de um caráter, se supõe que eles fazem parte de uma sé- rie de transformações, ou seja, que um deles seja a forma original, e o outro seja resultado de modificações evolutivas ocorridas na estrutura em questão. Antes de realizar a análise, não se sabe qual a forma primitiva e qual a de- rivada — esquematicamente, não se sabe se a ⇒ a0 ou se a0⇒ a. O estado primitivo de um caráter será chamado de plesiomórfico, enquanto o derivado é o apomórfico. Considerando os animais (Animalia), sabe-se que o estado “presença de vértebras” é apomórfico em relação a “ausência de vértebras”. A determinação da ordem de uma série de transformações é chamada pola- rização. Vale ressaltar que os conceitos “apomórfico” e “plesiomórfico” são relativos a posições em uma série de transformações. Consideremos a série polarizada

a⇒ a0⇒ a00

Nesse caso, a0é apomórfico em relação a a e plesiomórfico em relação a a00. Antes de explicar como se realiza a polarização de uma série de transforma- ções, convém ressaltar uma peculiaridade do método de Hennig.

Figura 1.8: Especiação e transformações de caracteres. (Reproduzida de Hen- nig (1966, p. 89).)

Consideremos a figura 1.8, que representa uma história de especiação envolvendo cinco espécies (A–E) e duas séries de transformação (a ⇒ a0⇒ a00

ocorra em apenas uma das espécies-filhas (espécie C no painel 1 da figura). Com isso, pode resultar que a outra espécie-filha (B) conserve todos os carac- teres em um estado plesiomórfico, de modo que seja indistinguível da espécie ancestral (A). No exemplo da figura (painel 3), A seria indistinguível de B, e Dé indistinguível de C pois ambas apresentam os dois caracteres nos mes- mos estados. É importante ressaltar, então, que a figura representa a história de descendência entre A–E, e não é um cladograma. A reconstrução dessa história pelo método de Hennig não é capaz de apontar exatamente quais são os táxons ancestrais. Assim,

[. . . ] Hennig propôs que só podem ser conhecidas as relações colaterais, ou de grupos-irmãos, não de ancestrais-decendentes. Não há como estabelecer, mesmo que com um grau mínimo de certeza, quais são os verdadeiros ancestrais dos táxons escolhi- dos, o que faz com que também as espécies fósseis sejam tra- tadas como táxons terminais. Resultado da análise das similari- dades especiais [isto é, hipóteses de homologia], o cladograma pode ser utilizado apenas para determinar se um grupo taxonô- mico está mais próximo de outro em relação a um terceiro, e nunca se um grupo é o ancestral direto de outro a ele adjacente. Os ancestrais não aparecem nos cladogramas — eles são sempre hipotéticos. (SANTOS, 2008, p. 192)

Diante dessa consideração, vejamos um exemplo simples (baseado em WILEY; LIEBERMAN, 2011, p. 13) de reconstrução filogenética, para que o conceito de polarização de caracteres fique mais claro. Digamos que se queira reconstruir as relações filogenéticas entre tubarões, salmões e huma- nos. Para que possamos determinar quais caracteres desses organismos são apomórficos e quais plesiomórficos, é preciso escolher um grupo externo — um grupo de organismos que não seja o ancestral comum do grupo sob aná- lise (grupo interno), mas que seja considerado filogeneticamente próximo ao grupo interno. Tal proximidade pode ter sido estabelecida por outras análises filogenéticas, exame do registro fóssil, ou do desenvolvimento embrionário (RIDLEY, 2004, p. 434–6). Além disso, o grupo externo não pode ter um an- cestral comum com qualquer um dos membros do grupo interno de modo que esse ancestral seja mais recente que o ancestral comum a todos os membros do grupo interno. O ponto é que os estados de caráter apresentados pelo grupo externo serão considerados plesiomórficos, e a polarização dos caracteres no grupo interno será feita em relação a ele.

Para nosso exemplo, escolheremos as lampreias como grupo externo, e nos basearemos nos seguintes caracteres: membros (estados: nenhum, nada- deiras, pernas), arco branquial (estados: guelras, mandíbula) e esqueleto in- terno(estados: cartilaginoso, ósseo). Mapeamos os estados desses caracteres

membros arco branquial esqueleto interno

lampreia nenhum guelras cartilaginoso

tubarão nadadeiras mandíbula cartilaginoso

salmão nadadeiras mandíbula ósseo

humano pernas mandíbula ósseo

(a) 1 2 3 lampreia 0 0 0 tubarão 1 1 0 salmão 1 1 1 humano 2 1 1 (b)

Tabela 1.1: Matrizes de caracteres. (a) Caracteres e seus estados expressos em palavras. (b) Caracteres codificados e polarizados. Os números em face nor- mal (não-negrito) representam os estados polarizados: quanto mais próximo de 0, mais plesiomórfico.

apresentados por cada táxon em uma matriz de caracteres (Tabela 1.1(a)). Em seguida, pode-se realizar a codificação e polarização dos caracteres, de modo que os estados plesiomórficos (em geral, aqueles apresentados pelo grupo ex- terno) recebem o número 0, e os outros estados recebem números inteiros positivos segundo a ordem que se julga ser a ordem histórica de transforma- ção (Tabela 1.1(b)).

A série de transformação do caráter membros, por exemplo, foi polari- zada e codificada da seguinte maneira:

0 1 2

nenhum ⇒ nadadeiras ⇒ pernas

A codificação de caracteres é um passo importante, porque determina a ma- neira como os dados serão processados. A matriz de caracteres codificada é então submetida ao tratamento estatístico em um programa de computador usado para gerar cladogramas (v. lista em KITCHING et al., 1998, p. 221). Os principais métodos de inferência estatística utilizados atualmente na sistemá- tica filogenética são os da “distância”, parcimônia, e máxima verossimilhança (RIDLEY, 2004, p. 440ss).

Humano Lampreia Tubarão Salmão

Figura 1.9: Cladograma mais parcimonioso obtido a partir da matriz de ca- racteres apresentada na tabela 1.1.

Porém, os dados de nossa matriz de caracteres são suficientemente sim- ples para poderem ser analisados sem o auxílio desses programas, por um método chamado de argumentação de Hennig. Uma análise dos 15 clado- gramas possíveis (AMORIM, 2002, p. 63) mostra que o mais parcimonioso, ou seja, aquele que postula a menor quantidade de mudanças evolutivas para explicar os dados, é o da figura 1.9.