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1.5 Critérios para — e consequências da — individualidade

1.5.2 Localização espacial

Passemos à ideia de que os indivíduos são espaço-temporalmente restritos, enquanto as classes não. Certamente, essa posição só se sustenta se houver uma diferença entre os indivíduos que são membros de uma classe em deter- minado momento (a extensão da classe) e a classe em si, enquanto entidade abstrata. Para entender esse ponto, imaginemos que, por alguma razão, em determinado momento, todo o cloreto de sódio do universo encontre-se dis- sociado (átomos de sódio separados dos átomos de cloro). Embora não exista, naquele momento, nenhum cristal de cloreto de sódio — e com isso a exten- são da classe, naquele momento, seria nula —, não diríamos que a classe cristal de cloreto de sódioteria deixado de existir. Com efeito, se, após al- gum tempo, alguns átomos de sódio e cloro voltassem a se reunir, formando cristais de cloreto de sódio, utilizaríamos o mesmo nome para nos referirmos a essa substância.

15Uma objeção possível é que a definição é circular. Afinal, o nome “Charles Darwin” figura

no definiens e no definiendum. Entretanto, mostraremos adiante que essa circularidade é apenas aparente, já que expressões como “zigoto que atualmente deu origem a Charles Darwin” são, na verdade, nomes descritivos (EVANS, 1985b). É importante ressaltar, também, que não estamos defendendo que essa é a única definição possível para parte de Charles Darwin; uma definição como essa somente tem valor diante de um contexto teórico, e portanto de um objetivo cognitivo. No contexto teórico da sistemática filogenética, tais definições são úteis.

Localização espacial, então, parece ser uma propriedade da extensão de uma classe, mas não da classe em si. Mas o que dizer dos táxons? Até aqui, consideramos apenas o critério mínimo, proposto por Hennig, do nexo gene- alógico como condição necessária e suficiente para a individualidade de um táxon. Em outras palavras, ser um grupo monofilético é condição necessária e suficiente para ser um indivíduo, do ponto de vista evolutivo. Os grupos monofiléticos, as linhagens, são indivíduos pelo fato de serem entidades his- tóricas, irrepetíveis. Entretanto, para a maioria dos autores que aceita a tese da individualidade (BRANDON; MISHLER, 1996; ERESHEFSKY, 2001; HULL, 1976, 1994b; WILEY, 1981), concorda com Ghiselin que a simples restrição temporal não faz de algo um indivíduo — as entidades individuais devem também ser espacialmente localizáveis16.

Será o critério da localização espacial necessário para a individualidade? Suponhamos que mapeássemos todos os organismos pertencentes à espécie Panthera leoe apontássemos para o conjunto de organismos assim formado: essa é a localização espacial de Panthera leo (CAPONI, 2011c, p. 89)? Se aceitarmos que sim, então podemo dar razão a Ghiselin, Hull e os outros au- tores mencionados no parágrafo anterior, e concluir que as espécies podem ser localizadas espacialmente. Mas, se assim for, temos que admitir ainda que a localização espacial de todas as populações de todas as espécies que constituem um gênero correspondem à localização espacial desse gênero, em determinado instante do tempo (CAPONI, 2011c, p. 90). Isso seria tão ab- surdo quanto identificar a localização espacial da língua espanhola com o conjunto dos falantes de espanhol, ou o conjunto dos exemplares de O tempo e o ventocom a localização espacial dessa obra (CAPONI, 2011c, p. 85ss).

Pode haver um outro argumento para mostrar que os táxons não são espacialmente localizáveis. Não é em virtude da posição espacial que um organismo faz parte de uma espécie, mas das relações genealógicas (Hen- nig diria, tocogenéticas) que se estabelecem entre ele e outros organismos. A materialidade e a localização espacial dos organismos individuais é certa- mente necessária para que se estabeleçam relações genealógicas, mas, uma vez estabelecidas, elas subsistem independentemente da localização espacial das entidades envolvidas. Se um organismo é irmão de outro, a relação de irmandade entre eles não está em nenhum lugar em particular, mas tem uma duração no tempo.

Só poderíamos dizer que uma espécie tem localização temporal se a espécie fosse constituída apenas pelos organismos, independentemente de

16Às vezes, parece que esses autores utilizam a expressão “espaço-temporal” apenas pelo

fato de que, na física, as dimensões espaciais e a temporal não são separadas. Alguém poderia então objetar que estamos fazendo uma separação artificial, desautorizada pela física, entre es- paço e tempo. Porém, acreditamos que, na biologia, considerações relativísticas desse tipo são irrelevantes.

quaisquer relações genealógicas que pudessem existir entre eles. Pelo fato de que tais relações são efetivamente a trama que une os organismos nas es- pécies, e não sendo elas mesmas espaciais, as espécies teriam um componente não-espacial, o que seria suficiente para dizer que elas não são espaciais.

É possível levantar um contra-argumento da parte do defensor da locali- zação espacial das espécies. Pensemos em um organismo pluricelular: as cé- lulas desse organismo apresentam relações entre si, tanto sincrônicas quanto diacrônicas. As relações sincrônicas são as relações espaciais e estruturais entre as células. As relações diacrônicas, que Hennig chamaria de ontogené- ticas, são antes de tudo genealógicas — o organismo como um todo é uma única grande linhagem de células — mas também são causais, como nos fenô- menos de sinalização celular. De um modo geral, temos o mesmo dilema do caso das espécies: tais relações, embora dependam de entidades espaciais, não são espaciais. O zigoto é o ancestral de todas as células do organismo, mas essa relação de ancestralidade não está em nenhum lugar do espaço. O organismo não é nem um mero conjunto de células, nem uma mera soma me- rológica delas, mas um “todo estruturado” (CRANE, 2004). Porém, apesar de ser estruturado por relações que podem não ser, elas próprias, espaciais, difi- cilmente diríamos que o organismo não pode ser espacialmente localizado.

Há, é claro, uma grande diferença entre organismos e espécies: não há múltiplos “avatares” de um organismo coexistindo e ocupando lugares dife- rentes do espaço, mas uma espécie, em determinado instante do tempo, pode ser formada por diversas populações. Não obstante, pensamos que uma for- mulação mais precisa pode salvar a tese de que as espécies, e com efeito as linhagens em geral, têm uma localização espacial relativa a determinado ins- tante do tempo.

Dentre as definições genealógicas do conceito de espécie, a mais geral talvez seja o conceito geral de espécies como linhagens, formulado original- mente por Simpson (1961), mas defendido recentemente por Wiley e Lieber- man (2011) e De Queiroz (1999). Segundo esse conceito, “espécies são [. . . ] linhagens no nível populacional” (QUEIROZ, 1999, p. 53). Aceitaremos aqui essa definição, pois ela vai ao encontro da sistemática filogenética, da pers- pectiva genealógica sobre as espécies, e portanto da teses da individualidade dos táxons17. Espécies, de acordo com essa concepção, são linhagens de po- pulações; são sequências de populações em uma relação de ancestralidade- descendência.

Desse modo, as espécies são entidades estendidas no tempo: as popula- ções que a compõem em diferentes instantes do tempo são suas partes tem- porais. Uma parte temporal é algo que é parte de determinada entidade em

17Conforme aponta Ereshefsky (2011, p. 9), essa definição é insuficiente para diferenciar

determinado momento do tempo. A questão é que há certa ambiguidade entre localização espacial da linhageme localização espacial de uma parte tem- poral da linhagem. A espécie não está “totalmente presente” em determinado instante do tempo, pois há organismos que pertenceram a ela outrora, e or- ganismos que pertencerão a ela no futuro18. Assim, a referência de um nome como “Cygnus olor” (cisnes) pode ser ambiguamente entendida como a es- pécie enquanto entidade temporalmente estendida, ou como qualquer uma de suas “fatias” temporais (HULL, 1989a, p. 187-9). O problema da localização espacial de uma espécie surge apenas se confundirmos a localização espacial de uma parte temporal com a localização espacial da espécie como um todo.

Agora, podemos resolver o problema da seguinte maneira: a localização espacial de uma parte temporal da espécie equivale à localização espacial dos organismos que a constituem naquele determinado instante. Da mesma maneira que a localização espacial de um organismo, a localização espacial da espécie como um todo não pode ser determinada de modo independente do tempo. Não faz sentido, portanto, falar da localização espacial de uma espécie sem fazer referência a um instante do tempo.

Consideremos a figura 1.10, que representa um grupo monofilético de espécies cujo ancestral comum é a espécie A. Na figura, estão representadas três populações (ou metapopulações) que são partes temporais da espécie B: B1, B2e B3. Qual a localização espacial de B? Ora, ela corresponde à locali-

zação dos organismos que compõem B1em t2, B2em t3, e assim por diante. O

mesmo pode ser dito sobre o grupo monofilético formado por A e todos seus descendentes: sua localização é a mesma dos organismos que compõem B2e

Cem t3, por exemplo, ou ainda D3e E3em t7.

Voltemos àquela diferença entre espécies e organismos que menciona- mos anteriormente: enquanto um organismo está em uma região do espaço mais restrita, em determinado instante do tempo, uma espécie é uma entidade espacialmente difusa. O problema parece se agravar se considerarmos que uma espécie pode ser composta, em determinado instante do tempo, por mais de uma população. Porém, ser espacialmente contíguo não é uma condição necessária para que um indivíduo seja espacialmente localizável. Um país pode ter territórios não-contíguos sem que isso faça com que ele deixe de ter uma localização espacial (GHISELIN, 1974). Por fim, um último argumento breve em favor de que as linhagens são espacialmente localizáveis é o fato de as quarentenas serem úteis para controlar epidemias (GHISELIN, 1997, p. 74).

18A posição metafísica segundo a qual as entidades têm partes temporais, e não estão

“totalmente presentes” em determinado instante do tempo, é chamada quadridimensionalismo (CRANE, 2004; SIDER, 1997).

Figura 1.10: As espécies na dimensão do tempo. (Reproduzida de Hennig (1966, p. 59).)