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3.3 Fixação da referência nos códigos de nomenclatura vigentes

3.4.2 Resolvendo o problema qua

O que dissemos até aqui já nos permite abordar o enigma levantado por Le- vine (2001), no sentido de que dizer, com Ghiseli e Hull, que a referência do nome próprio de uma espécie seja determinada pelo simples contato osten- sional com um espécime-tipo é uma drástica subdescrição. Um defensor de Ghiselin e Hull poderia responder dizendo que as convenções de nomencla- tura envolvem sortais, e que esses sortais fornecem o critério de identidade que talvez seja o “algo a mais” pelo qual Levine clama. Afinal, os próprios códigos de nomenclatura estabelecem sufixos para os nomes que funcionam como sortais, isto é, determinam qual o grau da hierarquia no qual se situa o objeto nomeado (v. tabela 3.1).

Porém, conforme aponta Ereshefsky (2001, p. 258–9), dizer que uma especificação do grau hierárquico está envolvido na definição não resolve o problema. Em primeiro lugar, essa resposta pressuporia que há critérios de identidade claros (Ereshefsky fala em “uma concepção prévia”) relaciona- dos ao nível hierárquico superior envolvido na definição. Definir “Agamidae” como “a família que contém o gênero Agama” pressupõe que saibamos o que é uma família, qual o critério de identidade para famílias, e como esse ní- vel da hierarquia difere de outros. Assim, os atuais códigos de nomenclatura taxonômica retêm a noção de que a hierarquia lineana é teoricamente signi-

GRAU BOTÂNICA ZOOLÓGICA

Classe -opsida (plantas superiores) nenhum -phycaceae (algas)

-mycetes (fungos)

Ordem -ales nenhum

Superfamília nenhum -oidea

Família -aceae -idae

Subfamília -oideae -inae

Tribo -eae -ini

Tabela 3.1: Sufixos que determinam o grau hierárquico de um táxon, de acordo com os códigos de nomenclatura botânica e zoológica. (Adaptada de Ereshefsky (2001, p. 222).)

ficativa; porém, essa noção é altamente questionável (ERESHEFSKY, 2001, capítulo 6).

Outro problema é que essas definições não são informativas a respeito de qual a relação entre a entidade apontada (o tipo) e o táxon nomeado (QUEI- ROZ; GAUTHIER, 1990, 1992, 1994). Diante da atual compreensão filoge- nética, presume-se que se trate sempre de uma relação de inclusão de uma linhagem em outra, mas “seria útil enunciar a definição de cada nome de táxon em termos de uma relação especificada com um tipo” (QUEIROZ; GAUTHIER, 1992, p. 460). Segundo De Queiroz, um último problema fi- losófico em relação às definições ostensionais é que elas não são capazes de fornecer condições necessárias e suficientes para legislar a aplicação de um nome (QUEIROZ, 1992). Ou seja, as definições ostensionais não nos infor- mam quando, e somente quando, um nome de táxon pode ser aplicado (Cf. ERESHEFSKY, 2001, p. 26).

Essas considerações colocam em evidência o fato de que as chamadas “definições ostensionais” fornecem apenas critérios de aplicação, mas não critérios de identidade. Mas, para aplicar com sucesso o nome de um táxon, temos de conhecer os dois critérios. Acreditamos que uma descrição completa do que ocorre, de modo a resolver o problema qua, é a seguinte16. Primeiro, o autor do nome de um táxon fixa a referência do nome através de um tipo nomenclatural. Como subproduto dessa “definição ostensional”, pela media- ção do código de nomenclatura relevante, é gerado um critério de aplicação, que garante que o nome se refira ao táxon que contenha o tipo nomenclatu- ral. Desse modo, ao contrário do que afirmam Ereshefky e De Queiroz nas citações acima, os critérios de aplicação nos fornecem critérios necessários

e suficientes sobre quando aplicar um nome de táxon, o problema é que não nos dizem como identificar (ou reidentificar) seu referente.

É o contexto teórico que fornece então o critério de identidade sortal, que por sua vez traduz o que está do lado direito do bicondicional em um critério de aplicação. Esse critério de identidade permite que a comunidade reidentifique o referente por meio de um critério de identidade particular pro- visório do nome até reunir informações suficientes para postular um critério de identidade particular definitivo — até descobrir sua “estrutura escondida”. Consideremos um exemplo. Já mencionamos que a espécie Chamaeleo chamaeleonLinnaeus, 1758 é a espécie-tipo do gênero Chamaeleo. Isso sig- nifica que o critério de aplicação do nome “Chamaeleo” é o seguinte (usamos colchetes para tornar a estrutura lógica mais legível):

(13) Em qualquer mundo biologicamente possível w, para todo t em w: [o nome “Chamaeleo” pode ser aplicado a t] se e somente se [t mantém mesmoTcom o táxon da categoria de gênero cujo tipo nomenclatural

(em w∗) é a espécie-tipo Chamaeleo chamaeleon Linnaeus, 1758]. A expressão ao lado direito do bicondicional pode ser analisada, com a ajuda do critério de identidade sortal para táxons, de modo a gerar o seguinte critério de identidade particular provisório:

(14) Em qualquer mundo biologicamente possível w, para todo t em w: [t mantém mesmoTcom o táxon da categoria de gênero cujo tipo nomen-

clatural (em w∗) é a espécie-tipo Chamaeleo chamaeleon Linnaeus, 1758] se e somente se [t é o grupo formado pelo último ancestral co- mum atual de todos os táxons de Chamaeleo e todos seus descenden- tes].

A referência do nome do táxon é então determinada pelo seguinte enun- ciado:

(15) Em qualquer mundo biologicamente possível w, para todo t em w: [o nome “Chamaeleo” pode ser aplicado a t] se e somente se [t é o grupo formado pelo último ancestral comum atual de todos os táxons de Cha- maeleoe todos seus descendentes].

É um enunciado desse tipo que assegura a referência do nome de um tá- xon até que seu critério de identidade particular definitivo seja descoberto (se o for), ou seja, até que se determine com exatidão qual é o ancestral comum atual de todos os táxons de Chamaeleo. À primeira vista, esse enunciado pode parecer circular (“Chamaeleo” é mencionado à direita e à esquerda); porém, o critério de aplicação garante que o nome seja aplicado corretamente até que

a composição extensional (no mundo atual) de Chamaeleo seja descoberta. A partir daí, quem quer que seja o ancestral comum (atual) desses grupos será o ancestral comum de Chameleo em qualquer mundo possível (e sua composição extensional é contingente). Esse ponto fica claro na defesa que De Queiroz faz da metafísica do PhyloCode, que veremos a seguir. Porém, conforme veremos, o PhyloCode postula critérios de identidade particulares definitivos antes que a composição extensional dos grupos seja cohecida.