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3.6 Discussão: referência e identidade

3.6.1 Objeções e respostas

Esta objeção é levantada por LaPorte (2005): dado que diferentes conceitos de espécie determinam diferentes filogenias, e não há como decidir objetiva- mente qual o conceito de espécie correto, não há como decidir qual a filogenia correta. Em resposta, concordamos com Velasco (2008) de que as premissas de LaPorte podem ser verdadeiras, mas a conclusão não é.

Há uma única filogenia, no sentido de Hennig — uma única história das relações ontogenéticas, tocogenéticas e filogenéticas. E, como afirma Ve-

lasco,

Não criamos a Árvore da Vida; tentamos descobri-la. O fato de que dois conceitos diferentes de espécie levam a duas árvores diferentes simplesmente mostra que pelo menos uma dessas ár- vores está errada e que, portanto, pelo menos um desses concei- tos de espécie está errado (ou pelo menos é inadequado para a filogenética). (VELASCO, 2008, p. 413)

Como não temos acesso direto à história de relações tocogenéticas e, consequentemente, à de relações filogenéticas, temos de nos valer de ras- tros deixados pelos mecanismos de transmissão hereditária — os caracteres. Porém, há caracteres de diversas naturezas (morfológicos, genéticos, com- portamentais) que geram diferentes graus de fidelidade na reconstrução da filogenia, e qual o tipo de caráter mais fiel dependerá do caso analizado. Em alguns casos, em estudos envolvendo os mesmos táxons, identifica-se árvores filogenéticas diferentes para cada conjunto diferente de genes analisado. Por sua vez, até mesmo a árvore filogenética consensual no nível genético pode não concordar com a árvore dos caracteres morfológicos. Pode ser que, para determinado grupo de organismos que escolhemos para uma análise, indepen- dentemente dos caracteres e métodos utilizados, não encontremos nenhuma árvore consensual. Mas isso não significa que há várias filogenias verdadeiras, e sim que não encontramos a correta; por alguma razão, no decorrer do fluxo causal de transmissão hereditária, o sinal filogenético se perdeu em meio ao ruído.

Neste estudo, defendemos algo como um critério de identidade monista para os táxons; uma outra objeção semelhante pode vir de autores que de- fendem uma concepção pluralista sobre as espécies (REYDON, 2003; ERE- SHEFSKY, 2001): não há, na biologia, um único contexto teórico, portanto, não é possível estabelecer um único critério de identidade para táxons. A res- posta que daríamos a essa objeção é a mesma que adotamos no início deste capítulo: nossa proposta é agnóstica a respeito de se o critério que estamos propondo é o único relevante ou não. Podemos apenas dizer que ele se aplica na medida em que táxons forem concebidos como linhagens.

Consideremos agora a outra objeção, que talvez seja a mais séria. Eis a forma como ela é enunciada por Ereshefsky:

Se quisermos dar definições completas dos nomes de táxons, precisamos que os termos nessas definições sejam completos. Ou seja, os termos dentro dessas definições devem eles próprios ser definidos por condições necessárias e suficientes. Mas rara- mente, se é que em alguma ocasião, é possível fazer isso para qualquer definição de uma população. [. . . ] De modo semelhante,

as fronteiras entre as espécies durante a especiação são frequen- temente vagas, ao ponto de que nenhuma resposta determinada pode ser dada sobre se um organismo é membro de uma popu- lação ou outra. [. . . ] A questão aqui não é epistemológica, e sim diz respeito à natureza ontológica das fronteiras entre as popu- lações — elas são naturalmente vagas. (ERESHEFSKY, 2001, p. 264–5)

Vejamos inicialmente uma resposta que aborda o ponto específico da biologia presente na objeção de Ereshefsky, e depois outra relacionada a con- cepções de filosofia da ciência aí pressupostas.

Do ponto de vista biológico, a objeção é que, durante um evento de es- peciação, não há como determinar com certeza se um organismo faz parte de uma população ou outra, porque as fronteiras entre as linhagens se borram. Para entendermos a objeção, consideremos a figura 3.9, que ilustra a relação de escala entre a filogenia e a rede de relações tocogenéticas. O que Ereshef- sky está afirmando é que, se observarmos o momento de separação entre duas linhagens na escala da rede de relações tocogenéticas (entre os organismos), não veremos nenhuma separação nítida que nos permita agrupar esses orga- nismos nos três grupos que supostamente participam desse processo (espécie ancestral e espécies-filhas). Em analogia com um fenômeno biológico de ou- tra escala, poderíamos dizer que a separação de linhagens é, nesse aspecto, semelhante à divisão celular: no momento da divisão, não é possível estabe- lecer com clareza as fronteiras (espaciais e temporais) da célula-mãe e das filhas.

Não obstante, isso não nos impede de dizer que, durante certo intervalo de tempo, houve uma única linhagem e que essa mesma linhagem, após um processo de divisão no qual as fronteiras entre as linhagens são difusas, deu origem a duas outras linhagens. Mas só é possível dizer que se trata de duas linhagens em retrospecto; a sistemática filogenética se ocupa de eventos de divisão de linhagens ex post facto, isto é, depois que eles aconteceram. En- quanto um evento de especiação está ocorrendo, não temos como dizer “se um organismo é membro de uma população ou outra” ou, melhor dizendo, se é membro de uma linhagem ou outra, pois isso depende do que ocorre depois. Em um contexto diferente, Sober fornece uma resposta que poderia muito bem ser usada aqui:

Os fundadores [da espécie] foram os fundadores de uma nova espécie precisamente por causa do que ocorreu mais tarde, e não em virtude de algo especial neles. Do mesmo modo, um filho pode ser tão diferente de seus pais quanto você quiser. Se ele cai em uma nova espécie depende do que acontece mais tarde. (SOBER, 1984, p. 339)

Figura 3.9: A filogenia como um padrão de larga escala da rede de relações tocogenéticas. (Figura reproduzida de Velasco (2008).)

Nessa linha de raciocínio, Sober reconta uma esquete de um programa humorístico, na qual um personagem lê uma manchete que diz “Começa a Primeira Guerra Mundial!”.

O motivo pelo qual não é possível dizer se um organismo pertence a uma ou outra linhagem no momento de um processo de divisão de linhagens é uma questão de escala (espaçotemporal). Praticamente quaisquer fronteiras entre objetos, se olhadas em determinadas escalas, serão difusas (quais os limites do monte Everest?; e de um afluente do rio Amazonas?). Por isso, é impor- tante não perdermos de vista que a filogenia é uma representação em larga es- cala da história das linhagens, e é apenas olhando nessa escala que condições de identidade necessárias e suficientes podem ser estabelecidas. Populações e ancestrais comuns são, nessa escala, os átomos, isto é, as entidades primitivas para as quais critérios de identidade não podem ser fornecidos.

Isso nos leva à segunda resposta, que lê a objeção como situada no re- gistro da filosofia da ciência, e não mais no da filosofia da biologia. Nessa nova interpretação, a objeção é a seguinte: para que os critérios de identidade sortais e particulares propostos em determinado domínio estipulem condições de fato necessárias e suficientes, os termos que ocorrem nesses critérios, por

Cladograma Filogenia

Figura 3.10: Cladogramas como modelos. No tipo de cladograma que utiliza- mos neste trabalho (baseado em nó), cada nó representa uma linhagem, e as arestas representam relações de descendência entre as linhagens.

sua vez, têm de poder ser definidos por condições necessárias e suficientes também. Em outras palavras, para que as definições sejam verdadeiramente necessárias e suficientes, elas têm de ir “até o fundo”. O pressuposto por trás da objeção de Ereshefsky é o de que não há identidades primitivas; os cri- térios de identidade de todas as entidades envolvidas — do nível mais alto (táxon, linhagem) ao mais fundamental (ancestral comum, população, orga- nismo) — devem poder ser expressos, sob pena de que as definições de alto nível não serem “completas”.

Essa exigência nos parece demasiado estrita, pois perde de vista que os cladogramas são modelos, isto é, representações simplificadas e hipotéti- cas de alguns aspectos do mundo que são relevantes sob o ponto de vista de determinada teoria (figura 3.10). Como toda teoria científica, a sistemática filogenética assume certos tipos de entidade como primitivas, e nenhum cri- tério de identidade é fornecido para eles. A despeito da ontologia de Hennig supostamente descer ao nível das partes temporais dos organismos (os sema- forontes, como vimos na seção 1.4.1), não encontramos nessa teoria critérios de identidade para caracteres, organismos e populações. Temos de assumir, então, que essas entidades são primitivas na teoria. O mesmo não ocorre com as entidades chamadas “grupos monofiléticos”, que, aí sim, são definidos com base em condições necessárias e suficientes (v. seção 1.4.1, e também Hennig (1966, p. 73)).

Para usar uma linguagem do empirismo lógico, em uma formalização da teoria, podemos assumir termos como “população” e “ancestral comum” como termos teóricos primitivos. O encargo de determinar em que condições

estamos diante de populações e ancestrais comuns seria então transferido para algo como as regras de correspondência (CARNAP, 1966) entre termos teóri- cos e termos observacionais. Porém, para Carnap, as regras de correspondên- cia permitiriam determinar precisamente a extensão observacional dos termos teóricos (DUTRA, 2008, p. 138). No cenário que estamos descrevendo aqui, por outro lado, essa correspondência seria muito mais frouxa, dado que seria mediada pelas intenções da comunidade de investigadores, e sujeita a revi- sões. Desse modo, os critérios de identidade precisos para as entidades são dados no modelo; a correlação do modelo com os aspectos observáveis do mundo, e a avaliação de sua adequação, são feitas pela comunidade de cien- tistas. Em suma, o fato de aspectos da realidade serem vagos não impede que os cientistas modelem esses aspectos; um plano inclinado real é uma entidade vaga, mas isso não impede os físicos de criarem um modelo matemático de plano inclinado.