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O problema da referência dos nomes próprios na filosofia da

filosofia da linguagem

Se aceitarmos a ideia de que os táxons são indivíduos, então devemos admi- tir que seus nomes são próprios. Esse resultado é frequentemente enunciado (HULL, 1976; GHISELIN, 1997) como se fosse uma resposta definitiva para a pergunta sobre o que são os nomes das espécies. O problema é que isso equivale a supor que uma caracterização filosófica unânime a respeito dos nomes próprios está disponível, mas isso está longe de ser o caso. Essa su- posta solução, então, é na verdade o ponto de partida para uma série de outros problemas.

Dentre esses problemas, há um que é automaticamente importado da filosofia da linguagem no momento em que afirmamos que os nomes das es- pécies são próprios: trata-se do problema de como se dá a determinação da relação de referência entre o nome e o objeto nomeado4. A tarefa das teorias filosóficas sobre a referência é explicar sob que condições (necessárias e su- ficientes) um nome se refere a um objeto. Seguindo a formulação de Frank Jackson (2010, p. 4): seja “N” um nome, e x um objeto; uma teoria da refe- rência é aquela que preenche as reticências em “‘N’ se refere a x se e somente se . . . ”; e ainda: “[f]ornecer uma teoria da referência é [. . . ] fornecer as con- dições sob as quais um nome se refere ao quê se refere” (JACKSON, 2010, p. 4). Então, se os nomes dos táxons são próprios, o que faz com que um nome de um táxon em particular se refira àquele táxon?

Se, por outro lado, nossas considerações anteriores sobre o grau de en- volvimento teórico na determinação dos nomes dos táxons estão corretas, temos um outro problema que é exportado da filosofia da biologia para a fi- losofia da linguagem: como a mediação de uma teoria científica influencia

4Antes de avançarmos, também é importante ressaltar que problema da referência, e as cor-

respondentes teorias baseadas na contraposição entre ligação causal e descritiva do nome ao referente, não são os únicos pontos de partida possíveis para uma discussão sobre os nomes pró- prios (BRAIDA, 2004). Inclusive, é possível que a relação entre nome e referente sequer seja explicável em termos relacionais simplórios: esse ponto é levantado por filósofos como Wilfrid Sellars (DEVRIES, 2005, cap. 2) e Paul Horwich (HORWICH, 1998, 2005). As distinções entre remissão referenciale remissão inferencial, e dêixis e anáfora (BRANDOM, 1994, 2000), tam- bém podem colocar em evidência certos fenômenos relativos ao uso dos nomes próprios que as teorias da referência não captam. Dada a importância dos nomes próprios dos táxons nas inferên- cias filogenéticas, um estudo sobre a dimensão inferencial desses nomes pode ser particularmente interessante. Entretanto, esse é um tema para uma investigação futura.

os fenômenos de fixação e transmissão da referência? Gostaríamos de tra- çar aqui uma distinção entre nomes desse tipo, que poderíamos chamar de nomes próprios teóricos, e os nomes próprios ordinários — cujos referentes são objetos que conseguimos identificar sem recurso a nenhuma teoria (di- gamos, pessoas, organismos individuais, lugares, cidades, rios). A pergunta, então, é: essa distinção se sustenta? Há alguma diferença significativa entre o comportamento referencial de nomes próprios teóricos e o de ordinários5?

Aparentemente, na literatura clássica em filosofia da linguagem, nomes próprios teóricos e ordinários vêm sendo tratados de forma idêntica, com al- gumas teorias da referência sustentando que o modo de referir de ambos é sempre mediado por alguma forma de representação do objeto, e outras de- fendendo que isso nunca ocorre. O primeiro grupo de teorias, associado aos nomes de Frege, Russell, Wittgenstein e Searle, é a chamada teoria descri- tivista6. Segundo essa teoria, cada nome próprio está associado a algo como um conjunto de representações do portador que determina a referência do nome. Nessa perspectiva, para usar a fórmula de Jackson (2010, p. 4), “‘N’ se refere a x se e somente se ‘N’ está associado a uma propriedade P que apenas x tem”. Na verdade, conforme veremos, nenhum dos defensores do descritivismo entende que uma única propriedade é associada ao nome. De qualquer modo, a satisfação de uma ou mais das propriedades P1, P2, etc.,

associadas ao nome, é suficiente para determinar a referência do nome. Fi- lósofos de inspiração fregeana, como Dummett e Geach, escrevem que são os critérios de identidade para o objeto nomeado, mais do que qualquer outra coisa, que estão associados ao nome.

Por outro lado, há a teoria causal-histórica, que de certo modo remonta a J. S. Mill, mas foi defendida mais recentemente por Kripke, Donnellan, e Putnam. De acordo com a teoria causal, um nome próprio não tem qualquer conteúdo descritivo, e não há nenhuma forma de mediação representacional entre o nome e o objeto. Kripke levantou a distinção entre fixação e trans- missãoda referência; para ele, a fixação da referência de um nome próprio ocorre por meio de um “batismo” e ela é subsequentemente propagada entre uma comunidade de falantes por meio de uma cadeia causal de comunicação. Nas palavras de Jackson (2010, p. 4), de acordo com a teoria causal, “‘N’ se

5Evidentemente, a mesma questão poderia ser também colocada para uma teoria da referên-

cia para os nomes de classes naturais: há alguma diferença entre o comportamento referencial dos nomes de classes naturais científicas (que, se existirem, seriam coisas como “massa”, “carga”, “espécie”), e o dos nomes de classes naturais do senso-comum?

6Utilizaremos aqui a denominação “descritivismo” apenas devido à consagração que esse

termo recebe na literatura. Não queremos implicar, como é o costume, que todos esses filósofos entendiam os nomes próprios como sinônimos de descrições definidas. Talvez “representaci- onismo” ou “teoria representacional da referência” fossem nomes melhores, já que a forma de representação envolvida, sobretudo na versão de Frege dessa teoria, não envolve necessariamente descrições linguísticas.

refere a x se e somente se x tiver sido batizado com o nome ‘N’ no passado, e os falantes tiverem concordado em utilizar ocorrências de ‘N’ de tal e tal modo”.

A grande novidade da teoria de Kripke é a tese de que nomes próprios são designadores rígidos, ou seja, designam a mesma entidade em todos os mundos possíveis. Contra o descritivismo, Kripke argumenta que essa relação se dá independentemente da satisfação de quaisquer propriedades apresenta- das pelo portador do nome. Além disso, como consequência, não há qualquer critério de identidade associado a um nome próprio — é justamente para a teoria causal-histórica que o problema qua se coloca (DEVITT; STERELNY, 1999; THOMASSON, 2007).

À primeira vista, pode parecer que o problema qua tenha mais relação com a questão da fixação da referência, ou seja, sobre como um nome pró- prio é introduzido na linguagem. Porém, como vimos nos exemplos sobre o Nilo e Caístro, uma correta identificação do referente de um nome é impor- tante também para a transmissão da referência desse nome, para que ela seja comunicada de um falante a outro. Enquanto talvez não haja problemas em transmitir nomes de rios e pessoas de um falante a outro, a transmissão de nomes de táxons parece envolver critérios de identidade menos imediatos e mais dependentes de uma teoria científica.

A diferença entre o descritivismo e a teoria causal é explicada por Grush (2000) utilizando a seguinte metáfora. Imaginemos que a relação de referên- cia é semelhante a uma relação de representação; um nome é como um retrato, e o objeto referido é como a pessoa que posou para o retrato. A questão “o que determina a referência?”, relativa ao componente explicativo, corresponde a “quem está representado no retrato?”. Chamemos de conteúdo descritivo do retrato o conjunto de propriedades que podemos atribuir à pessoa retratada: digamos, cabelos castanhos, olhos verdes, etc. O descritivista responderia que a pessoa que está representada no retrato é quem quer que se encaixe melhor no conteúdo descritivo apresentado pelo retrato; um defensor da teoria causal diria que a pessoa representada é quem quer que estivesse na frente da câmera quando o retrato foi tirado, mesmo se o retrato em si tenha sido distorcido por lentes e filtros (ou pintado por um pintor cubista).

Apesar de serem apresentadas como rivais, a diferença entre as duas te- orias parece ser uma questão de ênfase. Para a determinação da referência, o descritivismo enfatiza o papel dos critérios de identidade de um objeto, enquanto a teoria causal enfatiza o papel da história do uso de um nome. Te- orias “híbridas” da referência, que levam em consideração esses dois aspec- tos, são possíveis e foram desenvolvidas alternativamente por Devitt (1981) e Evans (1985a). No fim deste capítulo (seção 2.4.4), apresentaremos a versão de Evans.

remos aqui uma ordem vagamente cronológica, inspirada nos livros de intro- dução à filosofia da linguagem (ABBOTT, 2010; LYCAN, 2008). Na primeira metade deste capítulo (seção 2.3), começaremos por Mill, do lado da teoria causal, e depois apresentaremos alguns dos autores classicamente considera- dos descritivistas (Frege, Russell, Searle). A partir da década de 70, o cenário da filosofia da linguagem passou a ser praticamente dominado pela teoria causal-histórica de Kripke. Na segunda metade do capítulo (seção 2.4), exa- minaremos as teorias de Donnellan, Kripke e Putnam, e a crítica de Evans. Terminaremos com um balanço sobre como cada uma dessas teorias resolve- riam o problema qua.