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1.4 – O conteúdo como mercadoria e o cenário onde a mudança está ocorrendo

Para se compreender a produção de conteúdo para a televisão no Brasil, faz-se necessária uma breve explanação sobre o movimento que tem determinado a forma como o conteúdo tem sido produzido e vendido como mercadoria. Segundo Bolaño e Brittos (2005), uma terceira fase do capitalismo é desenhada a partir das últimas três décadas do século XX. Na confluência da denominada globalização com o neoliberalismo, ambos se fundem e, de forma estratégica, moldam o capitalismo contemporâneo, direcionando à adoção de medidas como a desmontagem de grande parte das atividades estatais, com seu repasse à iniciativa privada, como condição necessária para a plena efetivação do movimento globalizante.

Ainda segundo Bolaño e Brittos (2005), ao se observar a globalização sob uma ótica mais ampla, nota-se que ela se insere num panorama de expansão do capital, gradativamente sendo abertos e ocupados novos espaços pelas corporações transnacionais. A política neoliberal ganha terreno, desde a década de 1970, com processos de liberalização, privatização e desregulamentação em diferentes espaços, o que permite novos lugares para os capitais.

De um ponto de vista estrutural, a globalização deve ser entendida como a forma atual de um processo mais antigo de transformações profundas do capitalismo em nível mundial, no interior do qual os aspectos econômicos, ligados à expansão do capital financeiro internacional e de transnacionalização do capital produtivo,

articulam-se a outros de ordem política e cultural. Assim, os processos culturais e comunicacionais, embora circulem majoritariamente sob a forma de mercadoria, podem ser desenvolvidos sob diversas formas de financiamento:

“[...] sob o capitalismo, os meios da produção cultural podem ser fornecidos tanto na forma mercadoria como parte de acumulação do capital (ex.: discos); quanto parte do processo de realização de outros setores da economia capitalista (ex.: publicidade); quanto diretamente através da renda dos capitalistas (ex.: patrocínio das artes); quanto através do Estado”. (GARNHAM, 1990)

No audiovisual, o momento é de transição, admitindo-se a sobreposição progressiva de variáveis como segmentação, pagamento pelos serviços, amplitude de produtos ofertados e digitalização. Conforme Giuseppe Richeri (citado em BOLAÑO; BRITTOS, 2005), o setor televisivo enfrenta atualmente muitas dificuldades, destacando-se: o contínuo incremento dos custos de produção, também porque os programas devem ter cada vez mais atrativos técnicos e expressivos para conquistar a audiência, em uma situação de crescente concorrência; o forte aumento dos preços dos direitos de transmissão, sobretudo para os produtos de ficção e para os eventos; a progressiva fragmentação do público, em razão do aumento dos canais e das dimensões dos distintos mercados nacionais, que limitam a capacidade de pagar os programas com publicidade; e o crescimento das normas que reduzem as fontes de financiamento do setor. “Além do mais, o aumento do número de canais e da disputa entre os fornecedores culturais estimula a necessidade de diferenciação do produto, para que o bem simbólico seja assimilado, aceito e consumido por um dado tempo pelo receptor, o que contribui para o incremento dos custos, uma verdade válida para todos os mercados televisivos” (BOLAÑO; BRITTOS, 2005).

1.4.1 – O mercado brasileiro pré-digitalização: a TV de massa

“Nessa realidade, moldada pelo capitalismo, as corporações que dominam a produção audiovisual buscam fidelizar o espectador através de ações diversas, dividindo-se o desenvolvimento de programação basicamente entre a tradicional

emissão massiva, em que um mesmo produto tenta (com possibilidade de êxito remota) atingir todos os públicos simultaneamente; e a via da segmentação, em que os produtos são criados, realizados e reunidos em um ou vários blocos a partir de sexo, idade, escolaridade e preferência de consumo, que demarcam distinções de classe social.” (BOLAÑO; BRITTOS, 2005).

Dentro deste contexto de emissão massiva, as emissoras/programadoras precisam atrair o maior número possível de expectadores para justificar os investimentos que as mantém, provenientes de verbas publicitárias. A emissora/programadora recebe recursos financeiros pela inserção de publicidade ao longo de sua programação diária. Esses recursos permitem o pagamento dos custos de produção de conteúdo e operação da montagem, distribuição e transmissão da programação. E exatamente este acaba sendo o movimento que tem imperado nos mercados de televisão aberta: criar um terreno fértil para recursos publicitários em detrimento da qualidade do intelectual do conteúdo

No Brasil, o mercado de televisão aberta pré-digitalização está estruturado em seis grandes redes, cuja produção de conteúdo é predominantemente nacional. A maioria da programação destas redes é produzida de forma verticalizada, ou seja, as atividades de produção de conteúdo, programação, distribuição e transmissão ao expectador são realizadas por uma única empresa.

Elas são apresentadas em ordem de importância, na tabela 1. É clara a supremacia da Globo em todos os indicativos, também se destacando a situação do SBT, muito à frente das demais e mais próxima da Globo. A posição da Record, apesar de superior à que dispunha dez anos atrás, está bem atrás do SBT, enquanto a Bandeirantes hoje ocupa o quarto lugar, em todas as variáveis.

Rede Nº de geradoras

Nº de municípios*

Presença nos

domicílios com TV (%) Controle

Globo 117 5443 99,59 Família Marinho

SBT 97 4862 97,27 Senor Abravanel**

Record 68 3925 90,26 Edir Macedo

Bandeirantes 42 3158 87,90 João Carlos Saad

Rede TV! 38 3480 81,93 Amílcare Dalevo Jr.

CNT 18 232 35,46 Família Martinez

Total - 5562*** 100**** -

Tabela 1 - Principais redes comerciais abertas do Brasil

(Fontes: Grupo de Mídia de São Paulo. Mídia dados 2004. São Paulo, 2004. pp. 150-151)

* Considera-se o número de unidades locais que podem sintonizar as redes através de transmissões em VHF ou UHF. ** Senor Abravanel é o nome civil de Silvio Santos, que utiliza esse cognome artisticamente.

*** Esse número corresponde ao total de municípios brasileiros, sendo todos atingidos pelo sinal de um canal aberto. **** Todos os domicílios com TV recebem a programação de alguma emissora aberta brasileira.

Para Mota (2005), com a implantação da TV Digital haveria uma transformação da TV aberta em informação digital que pode ser entregue utilizando metade, um terço ou mesmo um quarto do espaço utilizado pelas atuais concessões. O primeiro impacto então se daria com a ampliação da oferta de faixas e o conseqüente aumento de concessionários que podem ser públicos, estatais ou privados.

Atualmente, nos grandes centros brasileiros, não há espaço no espectro para que outras radiodifusoras operem na televisão aberta. Segundo o Professor Murilo César Ramos, da Universidade de Brasília “A digitalização é, de fato, uma possibilidade do espectro ser ampliado para outras vozes” (INTERVOZES, 2005). Este é o ponto principal dos que vêem além dos determinantes tecnológicos da TV Digital: a abertura causada pela digitalização do sistema de televisão abriria espaço para outros produtores de conteúdo. Sendo assim, outros direcionadores para a produção do conteúdo poderiam prevalecer, desvinculados da ordem ditada pelo capital.

Porém, um fator que pode limitar a participação de outras emissoras na faixa VHF, ao menos em um primeiro momento está na forma com que o espectro está alocado. Já que o espaço de cada uma das emissoras lhe foi concedido através de lei, pressupõe-se que caso não haja uma mudança nestas leis, cada uma deve continuar com seu espaço assegurado. Porém existem canais que não são utilizados atualmente devido a uma particularidade do sinal analógico. Em uma dada cidade os canais de 6 MHz precisam ser precisam ser ocupados de forma alternada para que o sinal de uma emissora não interfira em outra. Isso se deve à dificuldade de se filtrar o sinal analógico para que ele não ultrapasse o limite dos 6 MHz. Este problema é representado pela figura 7.

Figura 7 – Divisão do espectro somente com sinais analógicos

Com a introdução da TV Digital, ainda haverá a necessidade se continuar a se enviar o sinal analógico para os usuários. Portanto, o sinal digital precisará ser alocado nos canais que não estão sendo utilizados para a transmissão do sinal analógico, conforme a figura 8.

Figura 8 – Divisão do espectro com sinais analógicos e digitais

Isto impediria que novas emissoras fossem alocadas nestes canais, porém, esta é uma situação que ainda não foi testada no Brasil. Não se sabe se haverá interferências no sinal digital pelo sinal analógico. Caso a alocação do espectro não seja realizada desta forma, haveria então a necessidade de se explorar a faixa de UHF dependo, para isto, de regulamentação da ANATEL.

Contudo, ainda poderia haver a participação de outros emissores com a digitalização do sinal. Para isto, devemos considerar que ao transmitir digitalmente um programa com a mesma definição que temos na televisão atualmente, é necessário muito menos espaço, graças à compressão dos sinais de áudio e vídeo.

Com o sinal digital comprimido em bits, sobraria mais espaço para outras finalidades. As emissoras teriam agora 20 Mbps (Mega bytes por segundo) de taxa de transmissão de informação digital para ser usada como se queira. Segundo o CPqD (2005) as formas de utilização deste espaço podem ser representadas por três cenários: incremental, diferenciado e cenário de convergência.

Figura 10 – Cenários após a digitalização do sinal (Fonte: Folha de S.Paulo, 2005)

O primeiro cenário, o incremental, reflete o que ocorre atualmente no Japão. Monoprogramação e alta resolução e transmissão para dispositivos móveis. Neste cenário sem interatividade, as grandes beneficiadas seriam as atuais redes de televisão, pois através da transmissão em alta definição todo o espetro espectro seria ocupado (não sendo considerados neste momento os avanços que podem

ocorrer na área de telecomunicações). Isso, somado à forma com que o espectro na faixa do VHF é alocado, tiraria a possibilidade de outros emissores participarem e um outro player importante também seria prejudicado: as empresas de telefonia. Isto se daria com disponibilização de TV aberta pelos celulares, não permitindo assim que estas gerem receita através da transmissão de vídeo.

No segundo cenário, o diferenciado, seria aberta a possibilidade de uma mesma rede transmitir em vários canais. Novamente, o quadro de oligopólio das grandes redes permaneceria, mas haveria espaço para no espectro para interatividade. Neste quadro, as empresas de telefonia agora poderiam gerar receita através do canal de interatividade, mas não haveria espaço para novos emissores e nem para novos players neste cenário.

O terceiro e último cenário, o da convergência, só seria possível com uma mudança na legislação que aloca o espaço no espectro para cada emissora. Neste cenário, a centralização das promovida pelas grades redes atualmente perderia força. Elas seriam as grandes prejudicadas com perda de receita, audiência e espaço no espectro. Abrir-se-ia espaço para novos players e novos emissores públicos e comunitários além de produtores independentes. Porém, quem mais se beneficiaria deste cenário são as teles. Isso se daria por meio do canal de interatividade, como no cenário anterior, mas, principalmente, através da possibilidade delas se tornarem produtoras de conteúdo.

E como podemos perceber através do que se veicula na mídia, a devesa do primeiro modelo, tendo como principal bandeira a melhoria da imagem e do som para o telespectador tem imperado, tanto por parte do governo quanto pelas grandes redes. É notório que qualquer melhoria na qualidade de imagem e som é bem vinda, mas isto não pode vir às custas de outras aplicações que trariam muito mais vantagens à população brasileira. Segundo Negroponte (1995), não podemos utilizar a tecnologia certa para resolver os problemas errados como vários outros países já fizeram.Para ilustrar este desvirtuamento das discussões, o mesmo autor apresenta uma situação bem representativa. “Quando você assiste à televisão, você se queixa da resolução da imagem, do formato da tela, ou da qualidade do movimento? Provavelmente não. Se você se queixa de algo, com certeza é da

programação”. E só com mais emissores poderemos almejar alguma mudança no conteúdo. Podemos concluir dizendo que a tecnologia não é a vilã deste filme. Ela está sendo usada para mascarar o que será feito dela.

Agora, quanto ao movimento de verticalização discutido anteriormente, segundo o CPqD (2005) o que tem ocorrido ao redor do mundo indica uma outra realidade. Embora existam exemplos de regulamentação específica para disponibilização de conteúdo de produtores independentes e algumas emissoras públicas sejam inclusive fundamentadas no modelo de terceirização da produção, a maioria das emissoras/programadoras que estão atuando em TV Digital terrestre terceirizam apenas uma pequena parte da produção de conteúdo, mantendo a maior parte sob seu controle, por meio da mesma estrutura verticalizada existente atualmente na televisão brasileira.