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O conteúdo do princípio da moralidade

No documento Antonio Cecilio Moreira Pires (páginas 164-168)

8. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA APLICAÇÃO

8.3. O conteúdo do princípio da moralidade

O princípio da moralidade, com a Constituição de 1988, foi efetivamente consagrado como um dos diretivos da Administração Pública, embora tenhamos a plena convicção de que antes de nossa Lei Maior explicitá-lo, ele já deveria nortear toda a atividade administrativa.

Todavia não é simples discorrer sobre o princípio da moralidade que, diga-se desde logo, não se trata da moral comum, mas, da moral administrativa.

A moralidade administrativa teve a sua origem no direito administrativo francês, na obra de Maurice Hauriou. Em 1903, o autor já prelecionava que a moralidade administrativa se tratava “de uma noção puramente objetiva que o juiz administrativo aprecia soberanamente, segundo as circunstâncias, o meio, o momento”248.

246 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativ,.45

247 VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no direito administrativo brasileiro, p. 38.

248 HAURIOU, Maurice e BEZIN, Guillaume. La declaration de volonté dans le droit administrative français. Revue Trimestrielle de droit civil, 3/576, 1903, apud GIACOMUZZI, Guilherme. A moralidade

Alexandre de Moraes, dizendo sobre a dificuldade de se conceituar a moralidade administrativa, preleciona:

Pelo princípio da moralidade administrativa, de difícil conceituação doutrinária, não bastará ao administrador o estrito cumprimento da estrita legalidade; deverá ele, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública249.

Entende o autor que o princípio da moralidade encontra-se intimamente ligado à legalidade, colocando-o como pressuposto de validade dos atos emanados da Administração Pública.

É de se concluir que a observância do princípio da moralidade, ao final, concede ao princípio da legalidade uma nova coloração que vai muito além da mera legalidade formal. Diogo de Figueiredo Moreira Neto observa em seu magistério:

A autonomia deste princípio, já de há muito defendida entre nós por Helly Lopes Meirelles e José Cretella Júnior, foi inquestionavelmente reforçada pela explicitação conferida pela norma ordem constitucional, no Capítulo reservado à Administração Pública, (art. 37, caput), afirmando a moralidade como um aspecto específico e singular do princípio da licitude.

Com efeito, a Constituição de 1988, não só nesta como em muitas outras normas constitucionais, entre princípios e preceitos, dirigidos ao Estado, à sociedade ou a ambos, tratou de aspectos da licitude, ora enunciando seu referencial de valor (substantivo), ora definindo os instrumentos que devem garanti-la.

[...]

A moralidade administrativa, entendida como espécie diferenciada da moral comum, também atua como uma peculiar derivação dos conceitos de legitimidade política e de finalidade pública, tal como assim estudadas, pois é a partir da finalidade, sempre legislada, que ela é prevista em abstrato, e a partir da legitimidade, como resultado da aplicação, que ela se define em concreto250.

administrativa e a boa-fé da Administração Pública (O conteúdo dogmático da moralidade administrativa). São Paulo: Malheiros, 2002, p.68.

249 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. 4ª ed. atualizada até a Ecnº 53/06. São Paulo: Atlas, 2007, p. 84

250 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.Curso de direito administrativo. Parte introdutória, parte geral e parte especial. 15. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 104-105.

Necessário se faz dizer que não basta, pura e simplesmente, a legitimidade do agir do Estado, como também se revela insuficiente a mera conformidade do ato com a lei formal.

Dessume-se, portanto, que a atividade administrativa não pode ficar atrelada à mera subsunção do ato à letra fria da lei. Não basta ser legal; deve ser legitimo, na medida em que deve observar os valores protegidos por nosso ordenamento jurídico. Legitimo é mais do que legal. Será ilegítimo, portanto, a prática de atos divorciados de sua finalidade. Mais uma vez Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Para que o administrador pratique uma imoralidade administrativa, basta que empregue seus poderes funcionais com vistas a resultados divorciados do específico interesse público a que deveria atender. Por isso, além da hipótese de desvio de finalidade, poderá ocorrer imoralidade administrativa nas hipóteses de ausência de finalidade e de ineficiência grosseira da ação do administrador público, em referência à finalidade que se propunha atender.

Portanto, para que o administrador vulnere este princípio basta que administre mal os interesses públicos, o que poderá ocorrer basicamente de três modos: 1º - através de atos com desvio de finalidade pública, para perseguir interesses que não são aqueles para os quais deve agir; 2º através de atos sem finalidade pública; 3º através de atos com deficiente finalidade pública, reveladores de uma ineficiência grosseira no trato dos interesses que lhe foram afetos” (grifos do autor)251.

Márcio Cammarosano, entendendo existir uma maior abrangência do princípio da moralidade, ensina:

Para o Direito só é relevante a ofensa a ele perpetrada. Mas sua reação é mais acentuada diante da invalidade (ofensa jurídica) decorrente de ofensa a valor ou preceito moral juridicizado. E é mais acentuada porque o próprio Direito assim reconhece.

Na medida em que o próprio Direito consagra a moralidade

administrativa como bem jurídico amparável por ação popular, é

porque esta outorgando ao cidadão legitimação ativa para provocar o controle judicial dos atos que sejam inválidos por ofensa a valores ou preceitos morais juridicizados. São esses valores ou preceitos que compõem a moralidade administrativa. A moralidade administrativa tem conteúdo jurídico porque compreende valores juridicizados, e tem sentido a expressão moralidade porque os valores juridicizados

foram recolhidos de outra ordem normativa do comportamento humano: a ordem moral. Os aspectos jurídicos e morais se fundem, resultando na moralidade jurídica, que é moralidade administrativa, quando reportada à Administração Pública.

O princípio da moralidade administrativa está referido, assim, não diretamente à ordem moral do comportamento humano, mas a outros princípios e normas que, por sua vez, juridicizam valores morais252.

De qualquer sorte, ainda que possamos identificar sensíveis diferenças acerca do entendimento do princípio da moralidade entre os autores citados, vale dizer que, para nós, dito princípio, em nenhum momento, se confunde com a legalidade, ainda que intimamente ligados, assim como também mantém uma íntima relação com o princípio da razoabilidade. Corroborando o nosso entendimento Uadi Lammêgo Bulos observa:

O quid caracterizador da moralidade administrativa, por certo, está na aplicação justa, honesta e razoável da lei. Não basta, apenas, aplicá-la formalmente; é mister que se avalie o fato circundante, porque o cumprimento imoral de uma norma jurídica equivale ao seu próprio descumprimento. Daí se dizer que a moral jurídica é bilateral, imperativa, geral, sendo um corolário da aplicação equânime da lei253.

Com essa mesma ótica o escólio de José Roberto Pimenta Oliveira:

Para o cumprimento do dever de moralidade administrativa, é pressuposto necessário – mas não suficiente – da conduta pautar-se pelo princípio da razoabilidade, ou seja, legitimar-se à luz do dever de idoneidade axiológica, assimilado na relação e correlação estabelecida no respectivo processo de formação entre os pressupostos da ação, conteúdo e fim público colimado (apreendido em sua inserção sistemática na ordem jurídica), em consonância com o plexo de valores e princípios constitucionais254.

Parece-nos que a lição do mestre é bastante elucidativa. O cumprimento do princípio da moralidade além de pautar-se pela necessária razoabilidade, deve-se pautar por uma idoneidade valorativa, em que a ação deve buscar necessariamente o fim público desejado.

252 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 113, grifos do autor.

253 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 796.

254 OLIVEIRA, JOSÉ ROBERTO PIMENTA. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro,p. 259

Contudo, ainda que a finalidade legal no contexto do princípio da legalidade se afigure importante, não podemos deixar de registrar, como muito bem acentua Márcio Cammarosano que seria inadequado restringir a abrangência do princípio da moralidade tão somente aos fins almejados255. A moralidade administrativa deve ser entendida, portanto, dentro de um contexto maior, abrangendo todo um plexo de normas que juridicizem valores morais.

No documento Antonio Cecilio Moreira Pires (páginas 164-168)