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3. Possibilidades de gerenciamento da aprendizagem

3.2. Conteúdos conceptuais

Barcelos (2008) define experiência como a maneira de se perceber e de se posicionar no mundo, resultado do processo permanente de adaptação das pessoas ao contexto em que se encontram. Afirma serem as crenças um conjunto de construções da realidade, feitas ao longo de suas experiências existenciais, na eterna busca humana de fazer sentido da realidade. Pode-se inferir, então, que a autora entende crença como um construto de mediação entre a mente humana e a experiência17. Em função dos

17

princípios de interação e continuidade de Dewey (1933), experiências delineiam crenças que delineiam experiências, numa inter-relação contínua.

Sob tal perspectiva, parece razoável afirmar que crenças podem ser tanto consideradas um tipo de experiência humana, como também, um aspecto de outras experiências. É o ponto de vista de observação dos fenômenos que determina uma ou outra caracterização, visto que experiências e crenças são instâncias de manifestação da própria existência humana e, apesar de não coincidentes, os dois construtos coexistem e se influenciam indefinidamente.

Esta pesquisa tem o foco voltado para as experiências de uma estudante de Inglês como L2. Em princípio, a busca pelo relato de experiências dessa estudante foi frustrante, pois, mesmo quando diretamente questionada sobre suas experiências, a informante insistia em falar quase que somente sobre suas crenças. Foi preciso algum tempo, e certa ajuda, para que se desse a compreensão de que as experiências precisam, na grande maioria das vezes, ser inferidas das crenças emergentes no discurso dos estudantes. As experiências são tão encharcadas de crenças que, não raro, elas se confundem com as próprias crenças, no discurso.

Para Barcelos (2006), crenças são as construções que fazemos sobre a realidade. Construções essas “co-construídas em nossas experiências resultantes de um processo interativo de interpretação e (re)significação. Como tal, crenças são sociais (mas

também individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais” (p. 18). Por mediarem

nossas ações, as redes de crenças concorrem para conferir certo grau de coerência, de pertinência ao menos, à experiência e ao discurso das pessoas.

Para dar conta da estrutura organizacional das crenças na cognição humana, Barcelos (2004a, p. 137-8) explica que as crenças se interrelacionam numa “rede intricada de fios” que ligam experiências – “aspectos do contexto em momentos

específicos” – a cada uma das crenças. Por entender que os conteúdos conceptuais ora

filtram, i. e., mediam as diversas experiências que vivenciamos18, ora se constituem em tipos de experiência propriamente ditos, acolho tal construção metafórica – „rede de

fios‟.

Revendo a literatura, a pesquisadora (2006) pontua que Riley (1989)19 concebe o termo “redes de crenças” (p. 18) e que Pajares (1992)20 e Woods (1996; 2003)21

utilizam “emaranhados de crenças” (p. 35), sendo que, na teorização desses últimos

autores, dentro de tais emaranhados, umas crenças seriam mais „centrais‟ e outras mais

„periféricas‟. Tal categorização parece sinalizar que estes pesquisadores privilegiam

alguns conteúdos conceptuais – as crenças centrais –, no que se refere à sua organização e importância na cognição humana, da mesma forma como o fazem Benson & Lor (1999).

De acordo com estes últimos (op. cit.), alguns conteúdos conceptuais são manifestações contextualizadas de outros. Também acredito que os conteúdos conceptuais organizam-se por meio de redes, ou seja, as crenças se interligam umas às outras, moldando-se em função das demandas do contexto, o que faz com que as combinações de crenças sejam dinâmicas e mutáveis, conforme observa Barcelos (2004a; 2006), ao discorrer sobre a natureza das crenças.

18

Os termos mediam e filtram são tomados aqui na perspective de Dufva (2004), que percebe as crenças como artefatos de mediação e empoderamento, na medida em que, inclusive, prestam-se ao gerenciamento da aprendizagem pelo estudante.

19 RILEY, P. Learners‟ representations of language and language learning. Mélanges Pédagogiques

C.R.A.P.E.L., v. 2, p. 65-72, 1989.

20PAJARES, F.M. Teachers‟ beliefs and educational research: cleaning up a messy construct. Review of

Educational Research, v. 62, n. 3, p. 307-32, 1992 (referência indicada em BARCELOS, 2006).

21

WOODS, D. Teacher cognition in language teaching: beliefs, decision-making, and classroom

practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1996 (referência indicada em BARCELOS, 2006).

WOODS, D. The social construction of beliefs in language classroom. In: KALAJA, P.; BARCELOS, A.M.F. (orgs.). Beliefs about SLA: new research approaches. Dordrecht: Kluwer, p. 201-29, 2003 (referência indicada em BARCELOS, 2006).

Existem crenças que consideramos essenciais, por elas justificarem uma grande e/ou significativa parte de nossa cognição e/ou conteúdo emocional. Por vezes, em função de sua intensidade e importância, confundem-se com o conhecimento que temos sobre as coisas e até com a nossa própria identidade. Em muitos casos, constituem conteúdo inconsciente (BARCELOS, 2000), o qual não nos permite perceber facilmente os motivos pelos quais assimilamos crenças e quais são os seus efeitos em nosso cotidiano.

Há também crenças cuja importância nos é aparentemente secundária. Essas crenças emergem em nossas vidas infinitas vezes, tem caráter efêmero e podem se manifestar de várias formas. Elas se referem a questões que não envolvem conteúdo emocional e nem identitário. Talvez, por isso mesmo, sejam relativamente descartáveis e situadas. Barcelos (2007), com base na proposição feita por Rokeach (1968, apud BARCELOS, 2007), discute a categorização desses dois tipos como crenças centrais e crenças periféricas, considerando sua natureza, ou seja, sua relevância, seu impacto em nossa cognição.

Segundo a autora (op. cit.), as pessoas teriam mais facilidade de acessar e mobilizar as crenças periféricas, por serem mais superficiais, geradas de maneira arbitrária e estabelecerem menos conexão com outras crenças. Já as crenças centrais teriam raízes profundamente alojadas em nós. Nesse sentido, no que se refere à mudança de crenças, as crenças centrais ofereceriam menor sujeição ao processo, por estarem intimamente ligadas à nossa identidade e emoção (BARCELOS, 2007).

Pelo fato de constituírem-se em conteúdos tão intrinsecamente ligados à emoção, identidade, autoestima e pelo delinear da cognição e ação humanas, é preciso reconhecer o poder das crenças para empoderar estudantes no processo de aprendizagem, sem se incorrer no erro de subestimá-las, deixando de atentar para o seu

poder de inibição, quando se constituem em empecilhos para o processo, exemplificando o que Barcelos (2004b) denominou a natureza paradoxal das crenças.

Lantolf & Pavlenko (2001) enfatizam que, em se tratando de aprendizagem de L2, o que efetivamente conta para os estudantes não é o que eles produzem linguisticamente, mas sim o que acreditam ser significativo em termos de aprendizagem, ou seja, suas crenças sobre o assunto. Nesse sentido, os autores (op. cit.) discorrem sobre a importância do contexto na determinação, pelos estudantes, desse conteúdo que para eles é significativo e justificam sua preocupação com base nas implicações de tal determinação, tendo como norte o conceito sociocultural de aprendizagem de L2, traduzido por Breen (2001, p. 7): “aquisição de novas formas de

mediar nossas interações conosco e com os outros.”22

Para Lantolf & Pavlenko (2001), o que quer que seja que os estudantes considerarem significativo para a sua

aprendizagem irá “moldar sua maneira de agir, de definir o contexto em que agem e por que eles agem da maneira como o fazem” (op. cit., p. 5).23

Evidentemente, o verbo

„agir‟ refere-se ao agenciamento dos estudantes, suas atitudes com relação ao processo

de aprendizagem.

Na mesma linha, Breen (1985, 1998, 2001) também sinaliza que a aprendizagem de L2 está intimamente relacionada ao contexto em que ocorre, independentemente de ser tomada sob a perspectiva de cada um de seus aspectos individualmente.24 Em consonância com tal circunstância, Barcelos (2004b, p. 189) ressalta que as crenças na aquisição de L2 “deveriam ser investigadas de maneira interativa e orgânica, onde as

22

Tradução minha para: …acquiring new ways of mediating ourselves in our relationships with others

and to ourselves. (no original)

23

Tradução minha para: …what is significant for the learners will shape how they act, how they define the

context in which they act, and why they act in the ways they do. (no original)

24

São contundentes as contribuições de Donato (1994) e dos pesquisadores na vertente sociocutural, Goodwin & Duranti (1992), Kalaja (1995), Canagarajah (1999), Barcelos (2000, 2001-2008), Arruda (2008).

crenças e ações se interconectam e inter-relacionam umas com as outras”25, ou seja, em função do contexto em que são vividas as experiências de aprendizagem, através das quais as crenças se manifestam.

A pesquisadora (2007) chama a atenção para o fato de que mudar uma crença nem sempre significa mudança das ações relacionadas àquela crença e que a mudança nas ações também nem sempre denuncia que houve uma mudança nas crenças diretamente relacionadas àquela ação. Nem sempre agimos de acordo com as nossas crenças, uma vez que nossas ações são também determinadas por aspectos contextuais, que nos escapam ao controle, e também por questões individuais, tais como conduta fossilizada26, questões emocionais etc. A esse desencontro entre cognição e ação, Barcelos (2006) denominou „dissonância entre crenças e ações‟27.

Coterall (1995, 2005) ressalta que o desencontro das crenças entre professor e estudantes, especialmente no que se refere à aprendizagem e ao ensino de L2 e a seus respectivos papéis, pode inibir, ou mesmo impedir, o desenvolvimento de sua autonomia. A autora sugere (op. cit.) que os professores busquem conhecer a abordagem de aprender dos estudantes e façam com que eles conheçam a sua abordagem de ensinar, para poderem gerenciar melhor a aprendizagem. Além disso, reforça sua colocação sugerindo que, quando isso não acontece, os estudantes tendem a resistir à prática do professor, prejudicando os processos e/ou a evadir, desistindo de sua aprendizagem.

A pesquisadora (2004, p. 4) acredita que os professores precisam incentivar os estudantes a refletirem sobre essas questões, pois a reflexão, no contexto formal de

25

Tradução minha para: Beliefs about SLA should be investigated interactively and organically, where

beliefs and actions interconnect and interrelate with each other. (no original)

26

No sentido que lhe confere Barcelos (2006, p. 28).

27

Para maiores detalhes, favor ver Barcelos (2006, p. 31), quadro sobre as explicações teóricas para a relação de dissonância entre crenças e ações.

aprendizagem de L2, leva à ação - “a reflexão é um elemento essencial no aumento da habilidade dos estudantes em tornarem-se mais autônomos.”28. No entanto, a reflexão deve ser introduzida de forma gradual e os professores precisam servir de modelo para que os estudantes compreendam como vivenciar processos de ensino e aprendizagem mais reflexivos. Essa mudança de papéis de professores e estudantes em direção a experiências mais autônomas de ensino e aprendizagem de L2 precisa ser co-construída pelos envolvidos, em sua experiência diária.29

Aragão (2008) vai um pouco além, atrelando completamente a reflexão à autonomia, o que nos remete à possibilidade de mobilizar crenças por meio de um trabalho reflexivo para promover o desenvolvimento de autonomia.30 O pesquisador (op. cit.) ressalta que a reflexão faz com que as pessoas assumam mais responsabilidade por seus atos, na medida em que vão conhecendo e compreendendo as consequências de suas emoções e ações. Em suas palavras temos que

quando refletimos, vivemos uma transformação em nossa conduta e podemos observar e agir de uma forma que antes não podíamos. Na reflexão não se volta ao mesmo ponto de partida, mas se desloca num fluir contínuo transformando a experiência anterior e aí surge uma nova temporalidade, uma nova compreensão pessoal e dimensão relacional e situacional. Como seres humanos, nossa experiência é uma história de transformações contínuas na reflexão e na ação e é por isso que surgem novos domínios de fenômenos no seu devir. (p. 315)

A pesquisa de Arruda (2008) apresenta um diagrama sobre o processo de ressignificação de crenças (ARRUDA & BAMBIRRA, 2006) (ANEXO 01). O diagrama foi inspirado na perspectiva sob a qual Miccoli (2008) e Barcelos (2008)

28

Tradução minha para: Reflection is an essential element in increasing learners‟ ability to operate

independently. (no original)

29

Ver também Crabbe (2003).

30

Na mesma linha, Wenden (2001) ressalta a importância de o estudante lançar mão de seu conhecimento metacognitivo – em que ela explicitamente inclui as crenças – para empreender aprendizagem autônoma, através da reflexão e Dufva (2004), que sugere o gerenciamento da aprendizagem de L2 através da mobilização das crenças pelo próprio estudante.

percebem a experiência e na definição de Barcelos (2006) para o construto das crenças, e definição de sua natureza31. A importância desse diagrama para suas autoras está em evidenciar a interação e a reflexão como essenciais ao surgimento de possibilidades de ressignificação das experiências. Não há como se falar em processos que engendrem mudança sem se conceber a experiência da reflexão como inerente a eles32. No terreno das crenças, em especial, entendem Arruda & Bambirra (2006) que a reflexão é imprescindível para que as mudanças se concretizem, de uma maneira ou de outra.

O objetivo principal do diagrama de Arruda & Bambirra 2006 é fornecer subsídio visual para orientar a reflexão no contexto de ensino e aprendizagem de L2, seja ela prospectiva ou retrospectiva. Uma vez pilotado com sucesso pela pesquisa de Arruda (2008), entendo que o diagrama é igualmente eficiente para conduzir a reflexão de estudantes acerca de suas experiências de aprendizagem de L2, de uma maneira geral. Lembrando que as crenças são um tipo de experiência, o diagrama em questão também pode ser representado conforme a Figura 01, para melhor atender ao foco desta pesquisa – a reflexão dos estudantes em processo de aprendizagem autônoma.

Basicamente, a adaptação feita no diagrama está na introdução dos elementos centrais relacionados ao gerenciamento da motivação33, viés escolhido para discutir o desenvolvimento de autonomia na aprendizagem de L2, no lugar dos elementos relativos ao produto da reflexão realizada durante um processo de ressignificação de crenças (ANEXO 01).

31

O embasamento teórico que sustenta a elaboração e a proposição do diagrama (ANEXO 01) encontra- se apresentado nos itens 3.2 (Crenças e valores individuais) e 4 (Experiências de aprendizagem de L2) do capítulo de Revisão da Literatura: Construção do marco teórico da pesquisa.

32

Barcelos (2006, p. 26) reconhece tal importância e chama tais momentos de momentos catalisadores de

reflexão ou gatilhos.

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FIGURA 01 – Diagrama de reflexão do estudante em processo de aprendizagem autônoma / Adaptado de Arruda & Bambirra (2006)

A leitura do diagrama da Figura 01 deve ser feita em função das setas, da seguinte forma: ao refletir sobre o gerenciamento motivacional, faz-se necessária a reflexão prospectiva para a implementação de metas e submetas. Tais metas e submetas são os elementos chaves que viabilizam o gerenciamento da motivação e passam a nortear o investimento a ser feito na aprendizagem de L2. Na medida em que elas não sejam alcançadas naturalmente ao longo do processo, é necessário que se faça uma

reflexão retrospectiva, ponderando aspectos positivos e negativos vivenciados e decidindo se as submetas e/ou as metas pré-estabelecidas devem ser mantidas com modificações, ou se devem ser abandonadas e substituídas por outras.